MEMÓRIAS DO FAIAL 1944/45 E O PRESENTE



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Transcrição:

MEMÓRIAS DO FAIAL 1944/45 E O PRESENTE Solicitado a fazer o meu juízo do que foi e porquê a permanência das Forças Armadas Portuguesas nos Açores, durante o período da Segunda Grande Guerra Mundial (1939/1945), sobretudo as do Exército, como elemento do mesmo, visto ter sido um dos mobilizados durante parte do tempo em que aquela Guerra durou, prestando os seus serviços na Ilha do Faial, não pude deixar de satisfazer tal pedido. Corro, no entanto, o risco de alguma imprecisão, dados os longos anos já passados sobre tal evento e como tal da idade e fraco jeito de escritor, do que desde já apresento as minhas desculpas. Entremos pois no porquê. Rebentou a guerra e como tal Portugal não pôde ficar indiferente a tal facto e como velho aliado de Inglaterra, não podia deixar de respeitar esse facto a que se associou também os Estados Unidos da América. Dada a posição privilegiada do Arquipélago Açoreano, como fronteira da Europa e na rota favorável ao movimento das Forças Americanas, necessário se tornava o nosso auxílio, disponibilizando-o com a concessão de aqui se instalarem as Bases, Aérea na Ilha Terceira Lages e Naval na Ilha do Faial e no seu magnífico Porto, embora prevendo o risco que se iria correr da acção das forças inimigas, em especial da Alemanha, cuja força se fez sentir com os seus navios, submarinos e até aviões. O Comando da Base Naval dos Estados Unidos estava instalado numa parte não danificada de um cruzador que havia sido torpedeado nas proximidades da Ilha e que foi rebocado para a doca, ficando ancorado junto aos armazéns do Porto da Horta. Como tal, houve pois que reforçar as forças portuguesas para segurança, não só dos Aliados, como da própria população local. Neste contexto foram mobilizados os efectivos necessários e possíveis para tal efeito. Para a Ilha do Faial foram enviados então efectivos de Infantaria, Artilharia, Engenharia, Saúde e Apoio Logístico, devidos. A Infantaria era, evidentemente, em maior número pois se tornava necessário ocupar as zonas mais favoráveis a qualquer desembarque 1

de forças inimigas. A seguir, a Artilharia, para não permitir acções inimigas contra o porto, principalmente, e fogos, quer marítimos quer aéreos, sobre o território, e as restantes para os auxílios necessários às suas missões. No respeitante à Artilharia, foi criada uma Bateria Independente de Defesa da Costa ( B.I.D.C.3 ) cujas posições se situavam no Monte da Guia e na ponta da Espalamaca, que foi guarnecida, dada a urgência, por peças que haviam pertencido a um velho navio, já retirado do serviço activo O Vasco da Gama. A sua guarnição era, naturalmente, constituída por militares de incorporação regional. As instalações continham as plataformas onde se instalaram as peças, e, em posições enterradas, as casernas para a sua guarnição, instalações sanitárias e paióis para as munições. Um pouco afastadas estavam a cozinha e o refeitório. Após completadas as instalações, foram executados fogos reais para regimagem das peças e deu-se infelizmente um incidente, uma das peças da Espalamaca que, pela sua idade, fendeu a culatra móvel, que rapidamente foi recuperada no Continente, voltando com a disposição de só ser utilizada em caso de urgência, pois poderia repetir-se a avaria e em tal circunstância se houvesse vítimas, seriam consideradas como consequências de guerra. As guarnições da Guia e Espalamaca eram constituídas, cada uma, por dois oficiais subalternos, seis sargentos ou furriéis e vinte praças, que ali permaneciam. Há alguns anos tive a oportunidade de revistar as referidas posições que naturalmente estavam desactivadas, mas um pouco degradadas. O Comando da Bateria estava no aquartelamento da cidade, com o pessoal necessário para os seus serviços administrativos, logísticos e reserva de pessoal das posições sendo seu Comandante, um Capitão. Aí também era feita a Escola de Recrutas. Dispunha ainda duma charanga cujos ensaios e orientação eram feitos por um ilustre regente de uma das filarmónicas locais, o Maestro Symaria. Os componentes faziam parte do efectivo da Bateria, dada a grande propensão para a música, das populações locais. Eu, o autor deste artigo, vim para a Bateria como subalterno ( Alferes ) em Fevereiro de 1944, tendo embarcado no navio de passageiros 2

Carvalho Araújo em Lisboa, no dia 10 e chegado à Horta a 25. Regressei ao Continente em Novembro de 1945 finda a comissão de serviço. Ao apresentar-me na Bateria, fiquei surpreendido com a instalação do Comando no edifício que acabara de ser construído para o Dispensário Anti-Tuberculose, à falta de outro, em virtude do antigo, que ficava ao lado da Igreja de Nª Sª da Conceição, ter sido destruído pela explosão de umas granadas que estavam a ser levadas para o paiol e que causou alguns mortos que ainda hoje são lembrados no dia do aniversário da tal explosão, ao que me constou. Durante a viagem de Lisboa para a Horta, como o Carvalho Araújo escalava todas as ilhas, desde Santa Maria ao Faial, fiquei com uma impressão muito agradável das suas paisagens e habitantes. A minha permanência na Horta não coincidiu pois com o início das mobilizações; os primeiros, por falta de instalações, dormiam em tendas de campanha e tiveram o trabalho de tudo organizar, até conseguirem habitações próprias. Ainda hoje existem vestígios de Casamatas construídas para abrigo e vigilância da costa, na Praia do Almoxarife (encontra-se bem visível, mesmo junto à praia, na direcção do molhe), na base do Monte da Guia ( junto ao mar e virada para o canal ), Feteira e nalguns sítios mais. O contacto das forças mobilizadas e convívio com a população local processou-se de uma forma amigável dada a simpatia e amabilidade das suas gentes, sendo notório o grande número de casamentos que houve, contando com o meu também. Familiarizamo-nos facilmente com os seus usos e costumes, pelo que não é de estranhar que tais uniões se tenham verificado. A Bateria dispunha de uma Messe, situada ao nº 12 da Rua de Jesus, na qual comiam os Oficiais e na altura em que cheguei, também ali tomavam as refeições o Coronel Comandante Militar do Faial e o seu Chefe de Estado Maior. Os Oficiais e Sargentos oriundos do Continente, alojavam-se em casas particulares que alugavam quartos. Quando se iniciaram as desmobilizações, o Comando da Bateria transferiu-se para o Quartel do Carmo, até então ocupado pelo Comando do Regimento de Infantaria 20 ( RI 20 ). 3

Aos poucos, à medida que havia casas vagas, os militares mobilizados e das diferentes unidades, iam-se alojando nas mesmas; havia pois ocupações por todas as casas disponíveis desde a Conceição até às Ângustias e até no Castelo de Santa Cruz, onde actualmente se encontra a Pousada. Nas Ângustias estava a Bateria Antiaérea de referenciação e na Calçada da Conceição, a Bateria Antiaérea de 4cm. Fora da cidade estavam alojados: na Feteira, a Companhia de Engenharia ; no Monte Carneiro, a Bateria de Artilharia Antiaérea de 9 cm ; a Bateria de Artilharia Ligeira de 7, 5 cm, na Cruz do Bravo onde perto (Rua do Lameiro Grande), se construiu uma Carreira de Tiro e o Hospital Militar que mais tarde se tornou no Hospital das doenças infecto-contagiosas. Esta Bateria construiu para instalação das suas peças, na vertente para os Flamengos, perto do Largo Jaime Melo, abrigos enterrados e camuflados, de que ainda há vestígios; nos Flamengos e Santo Amaro estavam unidades de Infantaria; junto à Caldeirinha do Dr. Neves, o Depósito de Subsistências. Na cidade, no Largo do Bispo D. Alexandre, estava o Casão Militar com os artigos militares e civis (actual edifício do Grémio Artista Faialense). Num dos edifícios, o principal da então Colónia Alemã dos Cabos Submarinos ( actualmente departamentos governamentais), que fora extinta ao rebentar a 2ª Grande Guerra Mundial, na Rua Marcelino Lima, foi criada a Messe de Oficiais, para todos os oficiais da Guarnição Militar do Faial. Do lado oposto, à esquerda quem sobe a Rua Cônsul Dabney, encontravam-se os edifícios onde funcionava a Companhia Inglesa de Cabos Submarinos (actualmente Hotel Fayal, Escola Básica 2 e outros). Além das Forças Militares do Exército, havia também Forças Navais encarregadas da vigilância naval e era constituída por quatro patrulhas e um navio de bóias, este encarregado de abrir e fechar uma rede de segurança do porto, colocada entre a ponta da doca, junto ao farol, e a muralha, em terra. Havia ainda o Capitão do Porto e a guarnição da Estação Rádio Naval. 4

As relações entre militares e marinheiros eram boas e por vezes alguns oficiais eram convidados a irem almoçar a bordo, assim como eles também vinham à nossa messe. Com as Forças Aliadas, a nível de Comandante da Bateria e Subalternos, não havia quaisquer contactos, pois a demora deles era curta, apenas vinham reabastecer os seus navios, embora os americanos fossem, por vezes, autorizados a vir a terra. Os contactos com familiares e amigos eram feitos através dos Correios e para tal, a fim de evitar possíveis referências a quaisquer assuntos confidenciais, foi criado um serviço militar de censura a toda a correspondência enviada e recebida. Os passageiros dos navios de carreira com o Continente, como medida de segurança, só podiam desembarcar no porto de destino. Estradas ou caminhos, havia nessa época muito poucos. A superfície era coberta de bagacina, uma espécie de areão extraído das encostas, de cor avermelhada, que com o trânsito, se ia moendo e fazia levantar imensa poeira. As deslocações na superfície da ilha, eram nessa época feitas a pé, a cavalo ou burro, carros de bois ou cavalos de pequenas dimensões e havia também carreiras para as freguesias efectuadas pelos designados Carrões que transportavam aproximadamente doze pessoas. Os automóveis particulares eram raríssimos, talvez uma dúzia. As forças militares dispunham de pouquíssimas viaturas automóveis, pois inicialmente as destinadas ao transporte de géneros alimentícios, materiais de construção, armamentos e munições se faziam em pequenos carros e carroças puxados por cavalos. A própria B.I.D.C. 3 possuía somente uma moto com side-car, uma camioneta e um pequeno carro de cavalos, com quatro rodas. Carne não faltava, mas a aquisição de peixe pela população local era diminuta, pelo que se adquiriu, entretanto, um barco de pesca, pois muitos dos soldados incorporados naturais de S.Miguel, eram pescadores, um dos quais arrais, e conseguiam pescar com regular abundância, nas suas saídas para o mar. Um dos factos que impressionou os militares, foram os tremores de terra, a que os continentais não estavam habituados e a maioria até desconhecia a sua existência. Embora muitos sismos fossem sentidos, não houve, naquele período de guerra, sismos de 5

intensidade que causassem danos, contudo registe-se uma curiosidade: uma grande maioria dos militares alojados nos Flamengos, alarmados com a frequência de abalos sísmicos, passaram a dormir com os capacetes, junto a si, na cama, porque houve um período de actividade mais extensa, na qual se soube, através de notícias do Observatório Meteorológico, ter-se registado num dia, mais de cem tremores de terra, a maior parte dos quais não foram sentidos. Entre os militares de Infantaria, alojados nos Flamengos, havia um número razoável de jogadores de futebol, alguns deles pertencentes às melhores equipas do Continente, que resolveram formar uma equipa de futebol, que algum tempo após a sua criação, se filiou na Associação de Futebol da Horta e com bom sucesso. Do convívio dos militares mobilizados e a população local, como já referi, houve bastantes casamentos e namoros e não deixou de haver poetas que demonstrassem a sua veia com alusões a eles. Dois ou três episódios engraçados: 1. Houve um Furriel Miliciano que namorava uma moça de quem gostava imenso e que entretanto foi desmobilizado. Do Continente, continuava a manifestar o seu interesse nela e como tal escrevia-lhe amiudadas vezes, sem contudo receber qualquer resposta. Estava na Horta um primo desse furriel também mobilizado, a quem este escreveu pedindo para lhe dar notícias da moça. Em resposta, o primo enviou-lhe a seguinte quadra: Manda ao diabo as paixões Não te faltam para aí mulheres A Dora já não te adora Porque adora um alferes o que foi verdadeiro e com o qual ela veio a casar. 2. Um outro Furriel Miliciano que era sobrinho do então Governador Civil da Horta, que eu não cheguei a conhecer, mas segundo constava era um galã, despertou naturalmente o interesse de muitas moças da Horta a tal ponto que ( e não admira a ignorância delas em relação à hierarquia militar ), quando se relacionavam com um Alferes, perguntavam a este quando era promovido a Furriel. 6

3. Nessa época, e em especial na ilha de S. Miguel, existia o uso de carneiros e cães para puxarem uns pequenos carros de duas rodas, com que iam às compras, havendo mesmo uns postais ilustrados que os mostravam. Houve então um dos tais poetas que enviou para o Continente a um amigo ou parente, um desses postais com o seguinte dizer: Nesta ilha de verdura Forrada de nevoeiro Como se vê na gravura Nem se pode ser carneiro Sobre outro ponto de vista, dentro do campo militar houve também vários episódios que ficaram célebres. Num deles, respeitante a uma peça de Artilharia Antiaérea que havia sido enviada para S. Miguel para ser reparada, não foi enviada a capa de protecção da mesma. O organismo que a recebeu tinha por designação abreviada a sigla C.A.P.A. ( Companhia Auxiliar do Parque da Artilharia ) e este pediu à origem, em mensagem telegráfica, o seu envio nos seguintes termos: Mandem urgente capa peça avariada e em satisfação de tal pedido foi lhe enviado o caixote em que tal peça havia sido recebida. Outro exemplo: A Bateria de Artilharia de 7,5 cm que se encontrava na Cruz do Bravo como já foi referido, construiu um abrigo enterrado e camuflado para instalar as suas peças e nesse trabalho, como é evidente, foram os próprios soldados da Bateria que executaram esse trabalho. No final, o seu fardamento foi-se deteriorando até se tornar incapaz. O Comandante da Bateria fez uma requisição de novos fardamentos, justificando a sua urgência. Como não obteve qualquer resposta nem recebeu os uniformes requisitados, após longa espera, o Comandante fez novo pedido devidamente justificado e referindo a demora de satisfação do primeiro, ao Comando Militar dos Açores em S. Miguel. A este novo pedido juntou uma fotografia com os militares envergando os fardamentos deteriorados e acabou o seu ofício com o seguinte dizer: Como vê pela fotografia junta, eu não sou o Comandante de uma Bateria de soldados, mas sim o Comandante de um Bando de Maltrapilhos 7

Escusado será referir que rapidamente lhe foram enviados os fardamentos solicitados. Outro caso: Um Alferes Miliciano, mobilizado para uma Unidade de Infantaria do Faial, não era portador de qualquer vestuário civil porque a própria família o havia induzido nesse sentido, pois não faziam ideia do que eram as ilhas dos Açores. Ao desembarcar ficou impressionado com o aspecto da população local, pois teve o seguinte desabafo onde estão os negros? Outro lapso havido com o desconhecimento dos Açores ou hábitos correntes: Um Sargento que trabalhava na Secretaria do Comando Militar dos Açores, ao preencher, por rotina provavelmente, a guia de marcha de um militar de S. Miguel para outra ilha, escreveu : Marcha desta Ilha de S. Miguel para, via ordinária ( esta designação correspondia a deslocação a pé, de comboio ou de viatura auto, no Continente). Seja-me permitido acrescentar certos pormenores acerca da vida da população faialense, que me impressionaram bastante dada a pequenez da área da ilha: A imponência da Igreja Matriz e dos edifícios que a ladeiam, onde funcionavam então, na ala esquerda, o Governo Civil, a Câmara Municipal e o Tribunal, substituído este, muito mais tarde, pelo edifício situado no final da Avenida, e na ala direita, a Junta Provincial, Museu, Direcção e Repartição de Finanças. O interior da Igreja Matriz, pelos seus altares magníficos e pela sua arquitectura, honram os seus fundadores. Outros templos como as Igrejas do Carmo, de S. Francisco e de Nossa Senhora das Angustias, e até algumas outras localizadas nas Freguesias, como por exemplo a Igreja da Praia do Almoxarife. O número elevado de casas comerciais, o que justificava o bem trajar dos habitantes (senhoras em especial) e sobretudo o enorme edifício de dois pisos dos Armazéns Faialenses, situado no inicio da Rua Serpa Pinto; neste havia de tudo e sobressaía uma ampla escadaria, que a meia altura se ramificava para o piso superior. Na calçada da rua, subsiste actualmente o nome do estabelecimento. 8

O edifício da Sociedade Amor da Pátria, que os seus sócios muito prezavam e onde se organizavam grandes festas, bailes, reuniões e espectáculos e muito honraram os Oficiais das Forças Armadas, pois lhes permitam a sua frequência. Outras Associações locais também tinham os seus Clubes, nomeadamente a do Sporting ( localizada num recinto amplo nas traseiras do edifício das Finanças) que organizava festas, bailes e cinema ao ar livre no verão. Restaurantes e cafés também existiam bastantes, e na época, entre estes últimos, o mais frequentado pelos Oficiais era o Internacional, no Largo do Infante, hoje bastante melhorado. Na cidade, junto à praia da Conceição, funcionava o Matadouro Municipal, no local onde hoje se encontra a Piscina Municipal. No Pasteleiro funcionava uma Fábrica de transformação de Peixe e Fornos de Cal. Na base do Monte da Guia, junto a Porto Pim, existia a Fábrica de transformação da Baleia, cujas instalações foram há alguns anos recuperadas e transformadas em Museu ( Centro do Mar ). No lugar do Varadouro, as termas para tratamentos por banhos, muito procuradas pela excelente qualidade das suas águas quentes. Dispunham de um bom balneário com várias cabinas, de enfermeiro e um médico que orientavam os tratamentos a aplicar. Posteriormente entrou em decadência e o balneário fechou, mas consta que se pretende reabilitar o espaço e as funções de então. Junto a este balneário já existia então uma central hidroeléctrica, cujo funcionamento se devia à água colhida em depósitos no alto da encosta acima do lugar do Areeiro. Na Freguesia do Capelo, o Farol dos Capelinhos, instalado num bom edifício que veio a ser parcialmente destruído pelos efeitos do Vulcão em 1957/58. Na costa norte, o miradouro da Costa Brava, sobranceiro à Fajã com a sua extensa praia. No centro da ilha, a Caldeira, com a sua magnifica cratera. Tive conhecimento que, antigos militares que aqui haviam estado mobilizados, saudosos dos tempos aqui vividos, visitaram a ilha bastantes anos depois, dando força ao ditado recordar é viver. Os 9

que casaram com açoreanas, também o fizeram, e fazem, com certa regularidade. Na época em que me encontrava na Horta, não existia a actual e magnífica Avenida Marginal e entre a muralha para o mar e as casas de habitação havia uma rua onde mal cabia um automóvel; do lado do mar, havia um areal onde foi criada uma pequena praia muito concorrida, aproximadamente desde a actual marina até ao designado canto da polícia. A actual Marina, foi construída há quase vinte anos. Boa previsão. Entre o Continente e os Açores, as deslocações apenas eram então feitas por navios de passageiros, o Lima e o Carvalho Araújo e mais um navio de carga menor, o Corvo. Ainda durante a minha estada no Faial, passou a haver um meio aéreo - o Clipper, hidroavião americano que veio a terminar com o desenvolvimento havido com os meios aéreos, que vieram por sua vez acabar com os meios marítimos de passageiros e então criado o Aeroporto da Horta e outros, nas várias ilhas. Para terminar, permitam-me que mencione uma realização notável, a da fundação da Casa dos Açores do Norte, que teve lugar no dia 16 de Março de 1980, a cujas cerimónias assisti, a convite. Foram nesse dia abertas as inscrições para sócios, a adesão foi notável e inscrevime nessa data, passando a ser o sócio número noventa e quatro. Das suas actividades, nas quais participei com a família algumas vezes, destaco as Festas em honra do Divino Espírito Santo. Escrito em Agosto de 2005 Amândio Augusto Trancoso Coronel de Artilharia 10