DESCARGAS ATMOSFÉRICAS Prevenção em ambientes abertos: os sistemas de alerta de trovoadas Ao contrário da proteção de estruturas, a prevenção contra descargas atmosféricas em campo aberto apenas recentemente começou a contar com normas técnicas, como a recém-publicada IEC 62793. Este artigo traz uma visão geral dos dispositivos de detecção, sua classificação, aplicações e desempenho necessário, com ênfase nos sistemas de alerta antecipado de raios, e trata também do possível impacto da nova norma no Brasil. Paulo Fernandes Costa, da Senior Engenharia e Serviços Ltda. Aprimeira norma de proteção de edificações contra descargas atmosféricas, a NFPA 78, foi editada nos EUA em 1904, baseada nos trabalhos e pesquisas de Benjamin Franklin (atualmente, essa norma evoluiu para a série NFPA 780 - Standard for the Installation of Lightning Protection Systems, que já está em sua edição referente a 2017). Do ponto de vista de proteção de edificações contra descargas atmosféricas, portanto, são disponíveis normas há mais de um século. Porém, o mesmo não acontece no campo da proteção de pessoas contra descargas atmosféricas em ambientes abertos de grandes dimensões, onde a instalação de sistemas de proteção contra descargas atmosféricas é reconhecidamente difícil, onerosa, e muitas vezes impossível. É, portanto, auspiciosa a publicação, em maio de 2016, da norma internacional IEC 62793: Protection against lightning Thunderstorm warning systems [1], elaborada a partir de pequenas modificações da norma europeia EN 50536 [2], de 2011. A norma IEC regulamenta a especificação, os testes e orientações de aplicação dos dispositivos de alerta de trovoadas, a serem instalados no próprio local que se deseja proteger. Tais dispositivos têm sofrido intenso desenvolvimento tecnológico [3, 4] e estão disponíveis em vários tipos. Um deles é o de alerta antecipado, que permite avisar pessoas que se encontram em locais abertos do risco próximo de queda de descargas atmosféricas, a tempo suficiente para que elas dirijam-se a abrigos adequados. Neste artigo, trataremos especificamente desta aplicação. Estatísticas de descargas atmosféricas no Brasil Atingido anualmente por quase 58 milhões de descargas atmosféricas, o Brasil é o país de maior densidade de raios do mundo, seguido por Congo, EUA, Austrália e China, nessa ordem. Em média, verificam-se aqui 130 mortes e 500 feridos por ano. Cerca de 85% das mortes e dos ferimentos ocorrem em áreas abertas, com pessoas trabalhando, praticando esportes ou em atividades de lazer. Tendo em vista que a densidade é 6,8 raios por km 2 /ano no País, e supondo ainda que uma pessoa que trabalhe em
campo aberto possa ser afetada por uma descarga que caia a 20 metros dela, e que essa pessoa está exposta em um terço das horas do ano, o risco calculado para ela é de 280 x 10 5, que é 280 vezes maior do que o risco aceitável pela norma NBR 5419:2015 Proteção contra descargas atmosféricas, que é 10 5. Verifica-se, pois, que na maior parte do Brasil, pessoas em campo aberto estão expostas a riscos inaceitáveis no que diz respeito a descargas atmosféricas. Principais situações de risco Pessoas em atividades de trabalho Canteiros de obras de construção em geral (edifícios, obras industriais, estádios, subestações de energia e similares); construção e inspeção de linhas aéreas de transmissão e de distribuição de energia, de ferrovias, de sistemas de telecomunicação (notadamente das torres); operação de minas a céu aberto; agropecuária (semeadura, trato e colheita); atividades florestais; entregas e atendimentos com veículos abertos (motos e bicicletas); estacionamentos abertos, industriais ou comerciais; pátios de armazenamento de veículos ou outros equipamentos; e pesca profissional. Pessoas em atividades de lazer ou eventos públicos Praias e balneários, marítimos ou não; acampamentos; clubes esportivos e condomínios onde se praticam esportes a céu aberto; campos de futebol; iatismo ou pesca esportiva em mares, rios e lagos; campos de golfe; praças, arenas e estádios (jogos, shows, missas, cultos, etc.); comícios em ambientes abertos; cemitérios; passeios e eventos esportivos com motos e bicicletas; piqueniques, rapel, montanhismo, canoagem e atividades similares; zoológicos; procissões religiosas e manifestações de rua. As pessoas em ambientes abertos podem ser vitimadas por descargas atmosféricas de forma direta (figura 1-a), por tensão de toque em mastros e em árvores (figuras 1-b) e por tensões de passo (figura 1-c). A figura 2 mostra que uma descarga incidindo diretamente no solo pode tornar uma grande área no seu entorno sujeita ao risco de tensão de passo. Fig. 1 Riscos para pessoas em ambientes abertos
Fig. 2 Exemplo de distribuição da corrente do raio no solo Aplicação da norma IEC 62793 A IEC 62793 estabelece os requisitos para todos os dispositivos de alerta de ocorrências de descargas atmosféricas instalados em determinada área, denominada área-alvo. As tecnologias de detecção são diversas: medição da radiação eletromagnética emitida pela descarga, movimento de cargas elétricas, detecção do encontro do líder descendente com o líder ascendente (ou vice-versa) e medição do campo elétrico no local (vide tabela I, adiante). A norma não se aplica aos sistemas globais de detecção que fazem uso de satélites, radares em terra e centros de computação associados, e que geralmente são situados longe do local a ser monitorado, como por exemplo a rede BrasilDAT do Grupo de Eletricidade Atmosférica do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Elat/Inpe), no Brasil. Enfocaremos aqui, como mencionado, apenas a tecnologia, prevista pela norma, que permite a detecção antecipada da queda de descargas na área-alvo. Ela permite emitir alerta a tempo suficiente para que sejam tomadas medidas de proteção preventiva de pessoas, animais, bens e/ou serviços. Para melhor compreensão da tecnologia, a seguir é feita uma explanação sobre a evolução das tempestades com a presença de nuvens eletricamente carregadas. Evolução de uma tempestade com nuvens carregadas Tempestades nas quais as nuvens não estão carregadas não são acompanhadas de descargas atmosféricas. As tempestades com nuvens carregadas são geralmente chamadas de trovoadas. O carregamento elétrico das nuvens é ainda o processo menos conhecido das descargas atmosféricas. Embora existam pelo menos três teorias a respeito, é suficiente saber que, pela diferença de temperatura entre a base e o topo da nuvem (que podem estar distantes mais de 10 km entre si), ocorrem correntes de convecção que provocam atrito entre as partículas no interior dessa nuvem, levando a uma separação das cargas elétricas: negativas na base e positivas no topo. Logo, em uma nuvem uniforme, na qual o topo não seja deslocado em relação à base, o campo elétrico provocado no solo é voltado para a terra. A partir do momento em que uma nuvem principia a carregar-se, o campo elétrico no solo abaixo dela começa a se elevar, e temos as fases ou estágios abaixo descritos, os quais estão ilustrados na figura 3: Estágio 0 tempo bom; Estágio 1 a nuvem começa a carregar-se; Estágio 2 início das atividades de descargas atmosféricas, com a formação de uma primeira descarga, quer seja intranuvem, quer seja nuvem-solo. Estágio 3 maturidade das descargas; e Estágio 4 dissipação da tempestade.
Fig. 3 Estágios de uma tempestade com nuvens carregadas (trovoada) Os estágios de 1 a 4 são empregados na classificação dos dispositivos de detecção, como será visto a seguir. Classificação segundo a norma IEC 62793 A tabela I mostra a classificação dos dispositivos de detecção locais, conforme a IEC 62793. Como se verifica na tabela, os dispositivos são divididos nas classes principais A, B, C e D, de acordo com os estágios de eletrificação que detectam na nuvem. Tab. I Classificação dos dispositivos de detecção IEC 62793 [1] Técnica Fenômeno físico detectável Freq. Etapas Classe principal Classe secundária Faixa de detecção típica (km) FSM Processo de eletrificação CC 1-2-3-4 A - 20 MDF Movimento de cargas elétricas VLF 2-3 C II Sem limite MDF, TOA TOA RFI RF Radiação eletromagnética (correntes de raio) Encontro do líder descendente com o líder ascendente Encontro do líder descendente com o líder ascendente Radiação eletromagnética (correntes de raios) FSM Field Strength Measurement TOA Time-Of-Arrival MDF Magnetic Direction Finding RFI Radio Frequency Interference RF Radiação eletromagnética (Corrente de Raios) CC Corrente contínua LF 2-3 C II 600 a 900 VHF 2-3 B III 200 VHF 2-3 B III 300 Aplicação Faixa curta. Sistema de alerta antecipado Baixas eficiência de detecção e precisão de localização. Faixa de detecção muito baixa. Faixa extensa e alta precisão de localização para detecção de CG (*) Faixa média e alta precisão de localização para detecção tanto de CG quanto de IC (*) Faixa média e alta precisão de localização para detecção tanto de CG quanto de IC(*) LF 3 D - 100 Finalidades meteorológica VLF Frequências muito baixas LF - Baixas frequências VHF Frequências muito altas CG Cloud-to-Ground Descargas nuvem-solo IC Intra-Cloud Descargas intranuvem A seguinte avaliação é possível pela observação da tabela I: Os dispositivos das classes B, C e D não podem ser utilizados para detecção antecipada, pois identificam a descarga atmosférica já em fases adiantadas: nos estágios 2 e 3, no caso das classes B e C, e no estágio 3 na classe D. Somente os da classe A, que se baseiam na medição do campo elétrico no local (na tabela, FSM, de Field Strength Measurement), detectam os quatro estágios da eletrificação (1,2,3,4). Esta é, portanto, a única classe que pode ser utilizada para detecção antecipada de queda das descargas em um local monitorado (early warning systems).
Os dispositivos da classe A cobrem com exatidão áreas com dimensões nas quais o sistema global apresenta baixa assertividade. Seu alcance é da ordem de 20 km, e permitem monitorar com precisão áreas dentro desse raio. Para apresentar exatidão em alvos de pequenas dimensões (100 km 2, por exemplo), um sistema global necessitaria de radares em terra próximos a estes alvos, de modo a complementar as informações dos satélites, e isso raramente acontece. Para monitorar com dispositivos classe A vários alvos próximos, distantes de 10 a 15 km um do outro, a melhor solução é montar uma rede de sensores que se comunicam entre si, garantindo bom desempenho de emissão de alerta para toda a área monitorada. A despeito de não poderem ser utilizados para detecção antecipada de raios, os dispositivos da classe D, que detectam radiação eletromagnética, podem complementar as informações das medições do campo elétrico, fornecendo a distância das quedas das descargas atmosféricas ao alvo monitorado, e dessa forma informar sobre a aproximação das trovoadas. Eventualmente, podem ser utilizados como backup. Dispositivos de medição de campo elétrico Existem atualmente apenas duas tecnologias disponíveis para medição do campo elétrico atmosférico: moinho de campo e medidor eletrônico de campo elétrico. Elas são apresentadas a seguir. Moinho de campo É baseado em uma tecnologia antiga de medição. Utiliza um equipamento rotativo, especificamente um motor elétrico de corrente contínua com escovas, mancais, rolamentos, etc., conforme ilustrado na figura 4. A desvantagem dessa tecnologia decorre da sua natureza mecânica, requerendo manutenções frequentes para prevenir e corrigir falhas. Fig. 4 Moinho de campo Sistema eletrônico de medição de campo elétrico De tecnologia recente, este equipamento oferece maior confiabilidade pois é completamente eletrônico, sem partes móveis. A figura 5 mostra um exemplo. Fig. 5 Sistema de medição totalmente eletrônico Desempenho recomendável para detectores de campo elétrico O sistema de medição de campo elétrico local, que pode ser formado utilizando mais de um sensor, deve atender no mínimo os seguintes requisitos:
Disponibilizar informações antecipadas que permitam tomadas de decisão antes da ocorrência de descargas atmosféricas na área monitorada (detecção local na área de prevenção em um raio de 20 km, em todos os estágios da tempestade, com margem de dezenas de minutos para a realização de ações preventivas); Auxiliar as tomadas de decisões em situações que envolvam pessoas em áreas abertas; Evitar perdas materiais e danos a seres vivos; Prevenir perdas de continuidade em operações e processos industriais; Funcionar como complemento às instalações de SPDAs; Permitir a configuração de níveis de alarme, com os valores recomendados da tabela II para aplicação inicial em qualquer instalação, podendo esses valores ser ajustados em função da necessidade do usuário ou do local de instalação [5]; Permitir a programação das seguintes ações automáticas quando da detecção de riscos: envio de mensagens SMS, acionamento de alarme sonoro e/ou visual, acionamento de geradores, e desligamento de equipamentos sensíveis. É ainda recomendável que o sistema disponha de módulo eletrônico com saídas a relés de contatos livres, para acionamento de alarmes sonoros e indicação de falha de comunicação. Tab. II Valores limites para configuração dos níveis de alarme do sistema de alerta de trovoadas Nível de alarme Valor do campo elétrico Descrição Nível 0 < 3 kv/m Sem alerta Nível 1 3 a 4 kv/m Alerta Nível 2 4 a 7 kv/m Emergência Tempestade > 7 kv/m Risco máximo Legislação brasileira aplicável Os riscos oferecidos aos trabalhadores pelas descargas atmosféricas são considerados como riscos elétricos e, portanto, regidos pela NR-10 Noma Regulamentadora nº 10 [6] do Ministério do Trabalho. Essa norma prescreve, no item 10.2.4, subitem b, que para o controle desses riscos deve ser incluída no prontuário das instalações elétricas a documentação das inspeções e medições do sistema de proteção contra descargas atmosféricas e aterramentos elétricos. Já em seu item 10.1.2, a NR-10 estabelece que sua aplicação deve ser feita observando-se as normas técnicas oficiais estabelecidas pelos órgãos competentes e, na ausência ou omissão destas, as normas internacionais cabíveis. Por sua vez, a NR-31 [7], que regulamenta a segurança nas atividades de agricultura, pecuária, silvicultura, exploração florestal e aquicultura, define as condições de trabalho e alguns requisitos relacionados com a presença de descargas atmosféricas: a) O empregador deverá interromper as atividades na ocorrência de condições climáticas que comprometam a segurança do trabalhador (NR.31.31.15.1); b) Deverá orientar seus empregados quanto aos procedimentos a serem adotados na ocorrência de condições climáticas adversas (NR.31.31.19.1); c) Deverá promover melhorias nos ambientes e nas condições de trabalho de forma a preservar o nível de segurança e saúde (NR.31.13.3.3). Outras Normas Regulamentadoras, como a NR-9 (Programa de Prevenção de Riscos Ambientais) e NR-18 (Condições e Meio Ambiente de Trabalho na Indústria da Construção), também apoiam o controle de riscos ambientais aos trabalhadores. Verifica-se, pois, que existem bases legais para aplicação imediata da norma internacional IEC 62793 Protection Against Lightning Thunderstorm Warning Systems, recentemente publicada, para garantir a proteção de pessoas contra descargas atmosféricas em ambientes abertos onde a instalação de SPDA é economicamente inviável ou impossível. Observa-se que, no Brasil, o município de São Paulo possui há 15 anos uma lei que obriga à adoção de detecção antecipada de descargas atmosféricas em ambientes públicos abertos. Trata-se da Lei Municipal nº 13 214, de 22 de novembro de 2001, que dispõe sobre a obrigatoriedade de instalação de para-raios ou sistema de detecção nas áreas ali especificadas e dá outras providências. A lei foi regulamentada pelo decreto 42 479/02, que, em seu artigo 1º, dispõe: Os locais abertos destinados a grande concentração de pessoas, tais como parques, praças públicas, pátios de estacionamento, clubes de campo, áreas para práticas esportivas, cemitérios e similares, deverão ser dotados de sistema de proteção contra descargas
elétricas atmosféricas e seus reflexos ou de sistema de detecção de proximidade de descargas elétricas atmosféricas, capaz de alertar a população da iminência da ocorrência de raios, em tempo suficiente para a evacuação da área com segurança. Conclusões Atualmente, a previsão antecipada da queda de descargas atmosféricas em locais abertos já é possível a custos suportáveis, utilizando-se equipamentos de detecção instalados no próprio local. Há uma norma internacional, a IEC 62793, respaldada pela NR-10, que regulamenta tais equipamentos, e já existem sistemas desenvolvidos que atendem essa norma. Aliás, esses produtos já existiam antes da publicação da norma, pois foram desenvolvidos segundo a norma europeia EN 50536 [2], de 2011, que foi a base para a IEC 62793. Daqui em diante, preveem-se no Brasil grandes mudanças nas questões jurídicas relacionadas com mortes e ferimentos ocasionados por descargas atmosféricas em ambientes abertos, a exemplo de uma condenação ocorrida em 2013, na qual uma empresa de segurança e uma construtora foram solidariamente condenadas a indenizar a viúva de um vigia morto por um raio em um canteiro de obras [8]. Pelo visto, foi-se o tempo em que juízes chegavam a tratar a questão como atos de Deus, isto é, ocorrências imprevisíveis da natureza. Referências [1] IEC 62793 Protection against lightning Thunderstorm warning systems, Edição 1.0, maio/2016 [2] Cenelec European Standard EN 50536 Protection against lightning thunderstorm warning systems, julho/2011. [3] Torralba, C.; Costa, T.L.F.; Costa, P.F.: Technological innovations in early detection of thunderstorm in open environments with radius smaller than 20 km. International Conference on Grounding and Earthing & 7th International Conference on Lightning Physics and Effects. Porto de Galinhas, Brasil, junho/2016. [4] Fernandes Costa, P.; Almeida Ferreira, M.; Cabral Salame, Y.: Preventive lightning protection using local static electric field measurements without mobile elements: first Brazilian experience. International Conference on Grounding and Earthing & 6th International Conference on Lightning Physics and Effects. Manaus, Brasil, maio/2014. [5] http://at3w.com/upload/pdf_producto/at-520_e.pdf [6] NR 10 Segurança em Instalações e Serviços em Eletricidade, dezembro/2004. [7] NR 31 Segurança e Saúde no Trabalho na Agricultura, Pecuária, Silvicultura, Exploração Florestal e Aquicultura, março/2005 [8] http://www.tst.jus.br/es/noticias/-/asset_publisher/ 89Dk/content/empresas-pagam-viuva-de-vigia-quemorreu-eletrocutado-por-raio-em-canteiro-de-obra/pop_up?_101_INSTANCE_89Dk_viewMode=print Trabalho apresentado no Enie 2016 XVI Encontro Nacional de Instalações Elétricas, São Paulo, 23 a 25 de agosto de 2016.