PESQUISAS SOBRE A EJA NA INTERFACE ENTRE CURRÍCULO E EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS E BIOLOGIA: PRIMEIRAS INCURSÕES ANALÍTICAS SOBRE A CONSTRUÇÃO CURRICULAR NO COLÉGIO DE APLICAÇÃO JOÃO XXIII/UFJF Ana Carolina Costa Resende (Bolsista BIC UFJF) Ágnes de Souza Nascimento (Bolsista TP UFJF) Jéssica Cristina Rodrigues Azevedo (Bolsista BIC UFJF) Mariana Cassab Torres (Faculdade de Educação - UFJF) Resumo: O objetivo desse trabalho é compartilhar os itinerários iniciais de duas pesquisas ocupadas em investigar a construção curricular em Ciências e Biologia na EJA. Nesse movimento, a narrativa produzida privilegia discutir: (i) os percursos teórico-metodológicos relacionados ao trabalho de investigar na interface entre EJA/Currículo/Educação em Ciências e Biologia; (ii) os desafios que cercam os processos de formação de pesquisadoras da área de educação que trazem para o plano de sua ação investigativa marcas de uma identidade forjada no campo epistemológico distinto das Ciências Biológicas e (iii) as primeiras incursões interpretativas produzidas no âmbito das pesquisas. palavras-chave: Currículo; Educação de Jovens e Adultos e Epistemologia científica. Introdução Nas últimas décadas a Educação de Jovens e Adultos (EJA) configura-se como um campo de investigação comprometido com o desenvolvimento de reflexões críticas acerca de uma variedade de temáticas que tocam especificamente essa modalidade de ensino (SOARES, 2011; SILVA E ARRUDA, 2012 E RUMMERT E VENTURA, 2007). Dentre os focos de pesquisa é possível sublinhar pesquisas que investem no estudo histórico da EJA (STRELHOW, 2010; SAMPAIO, 2009); na legislação específica da área (HADDAD, 2007); nas práticas pedagógicas desenvolvidas (OLIVEIRA, 2012) e nos variados aspectos que tocam seus educandos e educadores (VARGAS e GOMES, 2013), entre outras. Enfim, é um campo em expansão tanto no que diz respeito à produção de políticas públicas, tanto como objeto de pesquisas acadêmicas. Essa ampliação gradativamente atinge a área específica de Educação em Ciências e Biologia (BARBOSA E CHAGAS, 2014; CASSAB, 2016; COSTA E STRIEDER; 2008; FERNANDES E VIOLA, 2009; SUIZANI E CASSAB, 2014 E VILANOVA E MARTINS, 2008). Todavia, mesmo diante desse movimento de expansão, ainda é preciso ampliar os diálogos entre a bibliografia específica da EJA e da Educação em Ciências e Biologia e também a delimitação de objetos de investigação que transcendam das questões de cunho metodológicas. Ademais, quando interpelamos a produção do campo de Educação em Ciências e Biologia na EJA a partir dos estudos do currículo, evidenciam-se outras lacunas do conjunto de pesquisas, como a inexistência de olhares investigativos que se ocupam dos processos de construção curricular nessa modalidade de ensino. Diante dessa assunção reconhecemos a importância das pesquisas em questão, que sensibilizadas pelo quadro ainda dramático de analfabetismo e de jovens fora da escola ou com trajetórias escolares conturbadas, 3972
assumem o compromisso de adensar cada vez mais a produção acadêmica nessa área de pesquisa. O objetivo desse trabalho é compartilhar os itinerários iniciais das pesquisas A construção social dos currículos de Ciências e Biologia na Educação de Jovens e Adultos: saberes e fazeres docentes e O Ensino de Ciências na Educação de Jovens e Adultos: uma leitura curricular, ambas desenvolvidas pelo Grupo de Pesquisa, Práticas e Estudos da EJA (GRUPPEEJA/ FACED/UFJF). Assim, a intenção é apresentar os itinerários de pesquisa construídos até essa etapa inicial da investigação: os processos de delimitação do objeto da pesquisa, os caminhos metodológicos assumidos, a produção de seu corpus empírico e as primeiras incursões da análise. As pesquisas como um todo visam compreender os processos de construção curricular do Ensino de ciências e Biologia na Educação de Jovens e Adultos. Assim se ocupam em questionar: (i) quais são os percursos formativos dos docentes da EJA, especialmente no que toca sua formação específica para o trabalho com essa modalidade de ensino? (ii) quais são as finalidades educativas e sociais atribuídas pelos docentes ao ensino de Ciências e Biologia na EJA? (iii) quais critérios balizam a seleção dos conhecimentos que são trabalhados no currículo em ação do ensino de Ciências e Biologia na EJA? Quais forças seletivas estão em disputa nesses processos de seleção cultural dos conhecimentos e práticas que dão existência ao ensino de ciências e biologia na EJA? (iv) que conhecimentos escolares são valorizados e quais são desconsiderados? (v) quais práticas são desenvolvidas pelos professores no interior da disciplina escolar? Até o momento, as pesquisas são realizadas em parceria com o Colégio de Aplicação João XXIII, que desde 1996 oferece a modalidade EJA. A intenção é compreender como as construções curriculares dos professores de Ciências e Biologia na EJA se constituem em meio a cultura escolar dessa instituição singular. A expectativa futura é ampliar a investigação para outras escolas a fim de investigar como culturas escolares e sistemas educativos distintos incidem sobre as produções curriculares efetuadas pelos educadores. Do ponto de vista de suas balizas teórico-metodológica, as referidas investigações se movimentam a partir das teorias do currículo, fundamentalmente autores que se identificam com perspectivas críticas. Nessa linha irá se apoiar em autores como Miguel Arroyo (2011) e Goodson (1997) e os estudos sobre conhecimento escolar e cultura escolar (FORQUIN, 1993; JULIA, 2002; LOPES, 1999). Com base nesses referenciais, interroga-se o arquivo de pesquisa a partir das noções do currículo como um artefato social que, portanto, não é construído de forma neutra e imparcial. Pelo contrário, é sujeito a relações de poder assimétricas. Isto é, o currículo é entendido como um território em disputa (ARROYO, 2011). Também orienta nosso olhar investigativo a identificação de uma produção própria e singular da escola em relação aos saberes e práticas, em outros termos, o reconhecimento de uma epistemologia propriamente escolar. Para fim de organização do texto, o leitor será convidado, na primeira seção dessa produção, a conhecer os primeiros passos da pesquisa e os desafios e descobertas desse momento inicial de aproximação ao campo específico do estudo. Em seguida, é feita uma problematização acerca da parceria com o Colégio de Aplicações João XXIII e a caracterização geral da EJA na escola. Por fim, o texto problematiza a construção metodológica dos roteiros de entrevista e os primeiros ensaios da análise. A última seção dedica-se às conclusões finais do trabalho. 3973
Estratégias metodológicas e o desafio de se formar como pesquisadoras na área da educação Como se produz conhecimento científico na área da Educação? Foi em face desse questionamento que a equipe do GRUPPEJA iniciou suas atividades no âmbito das pesquisas. Composto por bolsistas que cursam a licenciatura e o bacharelado em Ciências Biológicas e mais recentemente alunas do curso de pedagogia e da enfermagem ficou evidente a necessidade de um investimento em reflexões teóricas e metodológicas referentes ao nosso objeto de investigação. Assim, nosso movimento inaugural envolveu uma primeira aproximação ao campo das teorias do currículo. Para isso o GRUPPEEJA tomou como referência para estudo e debate o livro Documentos de Identidade: uma introdução às teorias do currículo, do autor Tomas Tadeu Silva (1999), já que essa é uma obra que traça um panorama bastante didático da área do currículo. Com sua leitura o grupo foi provocado a olhar para o currículo como uma construção que reflete relações de poder. Outra obra selecionada e estudada no coletivo foi o livro Currículo, território em disputa, de Miguel G. Arroyo (2011). Nessa etapa da pesquisa foi adotada como estratégia metodológica a realização de estudos coletivos semanais, nos quais um membro da equipe assumia a tarefa de mediar o debate através da elaboração de uma ficha de leitura. Todo o grupo também era estimulado a produzir questionamentos que articulassem a leitura empreendida ao objeto de nossa investigação. A partir desse exercício foi produzido um banco de perguntas com o objetivo principal de estimular nossa capacidade de elaborar perguntas científicas nas áreas das humanidades, avessas a juízos de valor e prescrições. Enfim, a estratégia metodológica utilizada na incursão desse primeiro momento da pesquisa envolveu leituras, debates e diálogos, sempre coletivos, a fim de formar um novo olhar investigativo nas acadêmicas que tinham sua trajetória de formação inicial forjada na epistemologia das Ciências da Natureza. Paralelamente às leituras e estudo de bibliografias referentes ao campo do currículo, foi feito um levantamento bibliográfico relacionado a publicações de estudos na EJA. Na intenção de aprofundar a inserção na discussão teórica do campo e subsidiar a produção da pesquisa. Semanalmente cada membro da equipe também escolhia e resenhava criticamente um desses artigos. O levantamento de documentos referentes às políticas educacionais para EJA e, especificamente, para a Educação em Ciências e Biologia, institui-se como outra frente de ação. O exame das políticas se deu em meio à mobilização da produção analítica de autores do campo da EJA, na tentativa de estimular leituras críticas acerca das políticas. Seminários foram protagonizados pelas bolsistas com a intenção de discutir coletivamente algumas dessas políticas, como Proposta Curricular 1 segmento (BRASIL, 2001) e 2 segmento (BRASIL, 2002). Por esses caminhos, a equipe procurou lidar com os desafios relacionados à capacidade de questionar, problematizar e discutir textos das áreas do currículo e da EJA, uma vez consideradas as diferenças epistemológicas entre as áreas da Biologia e das Humanidades. 3974
A Educação de Jovens e Adultos no Colégio de Aplicação João XXIII: primeiras incursões Conforme discutido na seção anterior, nessa primeira etapa da pesquisa, o grupo empreendeu-se em um grande esforço de adensamento teórico e metodológico da investigação. Outro esforço que mereceu grande atenção da equipe foi o processo de construção da parceria com o Colégio de Aplicação João XXIII. A referida escola se configura como uma importante parceira no desenvolvimento dessa pesquisa por ser uma instituição vinculada à Universidade Federal de Juiz de Fora, por sua importância no âmbito do ensino de Ciências na cidade e por apresentar experiências curriculares na EJA que ainda não foram objeto de interesse acadêmico e científico. Além disso, no âmbito do conjunto de escolas de aplicação, o João XXIII é um dos poucos que oferece tal modalidade de ensino. Definida a escola campo, a equipe empreendeu-se em um movimento de aproximação e construção de uma relação de confiança com a instituição. Foram realizadas reuniões entre os membros do GRUPPEEJA e da equipe responsável pela EJA na escola. Esses encontros aconteceram na FACED/UFJF e no colégio. Tiveram como objetivos apresentar a proposta da pesquisa para a coordenação da escola, reconhecer os sujeitos parceiros da pesquisa e estabelecer vínculos de confiança e cooperação com a instituição. A partir desses diálogos nos foram disponibilizados alguns documentos que integram nosso arquivo de investigação. Até o momento esse inclui: i) Projeto Político Pedagógico da escola ii) Projeto Político Pedagógico da EJA (2012); iii) Regimento Interno do colégio; iv) documento que caracteriza a EJA no Colégio, no que toca o perfil dos seus educandos, os índices de evasão e infrequência e os desafios a serem enfrentados pela escola; v) sete entrevistas realizadas com os três professores-bolsistas, uma professora-orientadora de Ciências e Biologia e três gestores da EJA e vi) materiais referentes às práticas pedagógicas elaboradas por professores da EJA da escola, entre outros. Essas fontes ricas e diversificadas ainda estão em processo de análise. Todavia, nos interessa evocar nessa produção específica aspectos históricos e curriculares da EJA na escola, que merecem destaque nesse primeiro movimento de construção e análise de nosso objeto de investigação. Segundo o Projeto Pedagógico da EJA (2012), a Educação de Jovens e Adultos na escola teve início em 1996, com o objetivo de atender as reivindicações de funcionários da Universidade Federal de Juiz de Fora que buscavam uma oportunidade de finalizar seus estudos. A primeira mudança no curso ocorreu em 1997, quando surgiu a necessidade de garantir a certificação da escolaridade da mesma. No ano seguinte, a EJA passou a ser reconhecida como Curso para Educação de Jovens e Adultos, passando a constar no Regimento do Colégio, tornando-se, formalmente, mais um segmento oferecido pela escola. Em 2006, a partir do novo Regimento Interno, o Curso para Educação de Jovens e Adultos retoma seu nome originário (EJA), consolidando-se como um segmento destinado à Educação de Jovens e Adultos. A partir de 2007, as vagas foram estendidas à comunidade externa devido ao crescimento da demanda. Mais adiante, em 2012, a EJA sofreu uma importante reestruturação curricular. O ensino passou a ser organizado a partir de Períodos de Estudos Focalizados. Isso significa que cada período de estudos abrangia um conjunto de disciplinas, no qual a ênfase (quantitativo de aulas) recaía sobre uma determinada disciplina ou sobre um grupo de disciplinas. Ou seja, um desenho curricular bastante inovador e 3975
original passou a ser implementado se comparado a outros currículos da EJA e também às outras modalidades de ensino. Até o final de 2015, quando novamente há uma reforma curricular significativa, a grade de ensino da EJA se encontrava dividida em dois níveis: o fundamental com cinco períodos e o médio com quatro períodos. Cada período com duração de seis meses. Outras inovações importantes diziam respeito a uma organização curricular não seriada, ou seja, o educando possui autonomia para definir a ordem de realização de cada período e a presença dos Tópicos. Os tópicos tinham como objetivo favorecer uma diversificação curricular oferecendo cursos, tais como: Tópicos em Educação Ambiental, Tópicos em Educação para a Saúde, Tópicos em Relações Humanas (Relações de Gênero, Sexualidade, Relações Étnico-raciais, Relações Geracionais, Diversidade Cultural e Linguística e Direitos da Pessoa com Deficiência), entre outros. Esse desenho curricular permitia que o educando escolhesse qual ênfase desejava cursar em cada semestre, supondo uma sequência que não é previamente fixada, pelo contrário, possibilitando o educando construir seus percursos formativos de acordo com seus interesses, afinidades e possibilidades no período. Além disso, a proposta estruturada dessa maneira abria a possibilidade de se instituir a Escola Aberta para a Educação de Jovens e Adultos. Nessa havia a opção do educando se vincular a um determinado Período de Estudos Focalizados ou apenas em alguma disciplina de seu interesse mesmo que não tivesse como objetivo obter a certificação do Ensino Fundamental e/ou do Ensino Médio. Em 2016, esse desenho curricular acima descrito é totalmente abandonado. Uma nova configuração restitui a seriação e a existências de todas as disciplinas tradicionais do currículo em todos os semestres. Essa movimentação curricular ainda está sendo analisada no interior da pesquisa Outro aspecto que merece destaque em relação à forma que a EJA está estruturada na escola refere-se ao regime de trabalho de seus docentes. Os educadores que lecionam na modalidade da EJA ainda se encontram em processo de formação acadêmica, vinculados através do bacharelado ou licenciatura à UFJF. Esses professores bolsistas recebem orientação periódica de professores efetivos da escola - os professores orientadores - e estão subordinados ao trabalho da gestão específica da EJA na escola. A construção do arquivo da pesquisa e os primeiros ensaios de análise Ao longo e a partir desses itinerários, o arquivo da pesquisa vem sendo constituído. Por hora, o corpo empírico produzido na investigação foi agrupado em quatro categorias, caracterizadas pelos seus sentidos pedagógicos, administrativos e contextuais. O primeiro grupo refere-se a documentos de abrangência mais geral, que se ocupam em normatizar a organização e funcionamento das escolas no sistema público de ensino brasileiro, como leis, decretos e pareceres, especialmente aquelas que se referem à modalidade da EJA especificamente. Dentre os documentos inventariados podemos destacar: Plano Nacional de Educação (Brasil, 2014); Proposta Curricular 1 segmento (BRASIL, 2001) e 2 segmento (BRASIL, 2002); Coleção Cadernos de EJA (Brasil, 2007) e Plano Nacional do Livro Didático da EJA - PNLD EJA (BRASIL, 2014). O exame desses documentos se deu em meio à leitura cruzada de artigos do campo da EJA que se ocupam em analisar criticamente às políticas educacionais para essa modalidade, como é o caso do texto A 3976
Produção de Propostas Curriculares Nacionais de EJA e os Desafios da Prática Docente (SANTOS, 2011). O segundo grupo agrega documentos de caráter mais administrativos, como boletins informativos e ofícios, emitidos pela direção geral da escola, regimento geral do colégio, projeto político pedagógico (PPP) da EJA no João XXIII, entre outros. Até o momento foram analisados o PPP e o Regimento Interno na intenção de entender os contornos da cultura escolar do Colégio João XXIII; Projeto Pedagógico da EJA e o documento de diagnose sobre a EJA na escola - "Reflexões sobre a EJA no João XXIII". A localização e a socialização de documentos escritos que versem sobre a EJA na escola tem sido um dos desafios da pesquisa. O terceiro grupo abrange documentos que fazem menção aos conteúdos e práticas eleitos na composição do currículo de Ciências e Biologia na EJA, assumindo, por conseguinte, uma dimensão mais pedagógica são os cadernos escolares, livros didáticos utilizados pelos docentes, os programas de curso, trabalhos e avaliações. No âmbito dessas fontes, durante uma das entrevistas realizadas, uma professora orientadora disponibilizou um rico material, que acaba de ser inventariado. Esse inclui produções como, materiais de práticas, apostilas montadas pelos professores bolsistas, registros de atividades, planos de aula, entre outras produções. O quarto grupo refere-se às entrevistas realizadas junto aos profissionais envolvidos com o ensino de Ciências e Biologia na EJA, que em sua amplitude, tende a acentuar aspectos pedagógicos e institucionais relacionados à construção curricular na EJA. O levantamento dos sujeitos da entrevista foi feito junto à equipe do Colégio de Aplicação do João XXIII, que forneceu seus contatos. Nesse encontro, a professora relatou aspectos da EJA na escola e indicou nomes e contatos de algumas pessoas envolvidas com o currículo de Ciências e Biologia na EJA. O total de onze nomes foi cogitado. Para a realização das entrevistas, a equipe dedicou-se a construção de três tipos distintos de roteiros semiestruturados, voltados aos diferentes atores sociais da escola, a saber: a) professoresbolsistas; b) professores orientadores e c) gestores da escola envolvidos com a EJA. Durante a construção desses roteiros, retornamos às fichas de leituras e ao banco de perguntas em um exercício de incorporar as reflexões teóricas no processo de delimitação de nosso objeto de pesquisa. Os roteiros foram construídos e comentados coletivamente, ampliando o escopo de perguntas originalmente elaborado. Esse exercício coletivo de construção do roteiro foi uma experiência muito rica para a formação das bolsistas do estudo como pesquisadoras. Até o presente momento, sete entrevistas já foram realizadas, mas apenas três entrevistas com os professores-bolsistas da escola foram analisadas. As outras entrevistas estão em processo de transcrição. As primeiras incursões analíticas permitem identificar algumas questões centrais para o trabalho de construção curricular. A primeira é a questão da formação específica dos educadores para atuar na EJA. Uma das entrevistadas destaca a importância de ter vivenciado em seu contexto de formação inicial experiências formativas voltadas especificamente para essa modalidade de ensino. Ainda assim, conforme também indicam Soares (2011) e Ribeiro (1999), afirma considerar incipiente sua formação e desafiante o ensino científico nessa modalidade. Outra questão que a interpretação das entrevistas permite problematizar diz respeito aos 3977
processos de seleção curricular. Segundo a professora, no começo do ano letivo é realizado o levantamento das temáticas de interesse dos educandos. É a partir desse movimento, que o planejamento das atividades ao longo do semestre é produzido. A tentativa é levar em conta o interesse e as concepções prévias dos seus estudantes. Ou seja, a seleção curricular é balizada por critérios como o interesse dos educandos. No âmbito dessa discussão, uma das educadoras destaca a complexidade que envolve construir o currículo a partir dessa perspectiva. Em sua narrativa, ela salienta a dificuldade dos educandos se posicionarem ou o desafio de está efetivamente aberta às suas falas. Esse processo de construção curricular baseado no interesse dos estudantes, portanto, se realiza de acordo com a disponibilidade de diálogo que há entre a turma e o educador. Para a docente há diferenças entre trabalhar com os educandos mais jovens, que demonstram menos interesse e retorno às motivações oferecidas em sala de aula, do que os educandos mais velhos, que cursam a formação no ensino médio. Outro critério de validação da construção curricular é selecionar saberes que dialoguem com o cotidiano dos educandos. Esse inclusive é uma orientação recebida do professor permanente da escola que coaduna com o indicado nas diretrizes nacionais para EJA. A falta de materiais e metodologias para ensinar Ciências e Biologia na EJA e a invisibilidade dessa modalidade de ensino são outros aspectos mencionados pelos entrevistados. A fala de uma das professoras vai ao encontro da assunção de Arroyo (2011), quando afirma que professores não encontram apoio nas políticas educativas, curriculares e no material didático para enfrentar as condições do triste viver dos educandos e a tarefa de educá-los. Como sugere uma das entrevistadas, nem ela e nem a escola estão preparados para lidar com a vida e as expectativas dos educandos da EJA. Nesse sentido, não só a seleção dos conhecimentos é uma questão que toca o trabalho do educador, as questões metodológicas também são encaradas como um grande desafio. Uma das educadoras destaca a exigência que o trabalho na EJA traz em relação à mobilização de metodologias diversificadas na abordagem dos conteúdos. Sua preocupação se volta para a busca de formas criativas de abordá-los, ainda que identifique que os educandos não se opõem a metodologias tradicionais, tais como o "cuspe e giz". Nessa linha, faz uma explícita crítica à sua formação que não a ensinou a trabalhar de forma diversificada e criativa com os saberes. A questão da criatividade é algo bastante valorada pela docente. Considerando o contexto de trabalho na escola, o primeiro aspecto evocado pelos professores bolsistas é o regime de trabalho do educador da EJA, que diferente do docente do "ensino regular", é um professor bolsista. Ou seja, não tem garantido todos os seus direitos trabalhistas e nem sua permanência no corpo docente da escola. Todavia, apesar dessa condição, os professores entrevistados consideram que muitos dos bolsistas são entusiastas com a EJA na escola. Gestores também destacam o potencial formativo dessa experiência para o professor ainda em formação. Nas entrevistas os educadores também mencionam a infraestrutura material da escola (com salas adequadas e disponibilização de materiais) e, especialmente, o apoio e os princípios pedagógicos compartilhados pela coordenação da EJA, quais sejam: (i) garantir autonomia ao trabalho do professor e (ii) considerar as especificidades dos educandos, em especial, o fato de a maioria ser aluno trabalhador. 3978
Por fim, outras dimensões que incidem sobre o trabalho na sala de aula da EJA, que são evocadas por educadores no decurso das entrevistas, referem-se: a heterogeneidade das turmas, a formação e experiência dos docentes, o apoio do professor orientador, o processo de rejuvenização e evasão e seus impactos no planejamento e cotidiano das aulas. No momento o grupo trabalha no sentido de adensar a intepretação a partir da produção de categorias de análise e do diálogo com o estudo teórico. Considerações finais A intenção dessa produção foi narrar os primeiros itinerários de duas pesquisas que se dedicam ao estudo da educação científica na EJA. Nesse movimento compartilhar as estratégias de estudo e pesquisa tem sido fundamental para a formação de pesquisadoras da área de educação que tem seu percurso formativo marcado pela epistemologia da Biologia. Durante essa trajetória os principais desafios encontrados pelas bolsistas relacionam-se com a apropriação da linguagem das ciências humanas que difere da linguagem científica biológica e todo o aparato conceitual do campo do currículo; a montagem dos roteiros de entrevista, principalmente no que toca a formulação de perguntas que não envolvam juízos de valor e prescrições em relação ao trabalho docente e a construção do arsenal interpretativo da pesquisa. Nessa etapa, a equipe foi provocada a perceber o quanto é complexo saber questionar e desenvolver essa disposição, como inclusive aliar o estudo teórico à construção do objeto e à produção da interpretação das fontes. Esse é um grande desafio que tem exigido uma articulação contínua entre o estudo de nossos referenciais teóricos e o exame das fontes construídas. Quanto à análise preliminar realizada no âmbito das pesquisas, as falas docentes vão ao encontro dos muitos desafios relacionados ao trabalho na EJA, como a heterogeneidade das turmas em termos etários, vivências na escola e expectativas quanto sua escolarização, a rejuvenização, evasão e infrequência dos educandos e desvalorização do educador, no que toca inclusive sua formação específica para o trabalho com essa modalidade de ensino (SOUZA, 2012; SILVA, 2012; SOARES, 2011). Com relação aos princípios apontados pelas Diretrizes Nacionais voltados para a EJA, percebe-se que alguns ganham destaque nas construções curriculares em Ciências e Biologia produzidas pelos professores bolsistas do Colégio João XXIII, tais como a valorização dos saberes dos educandos, autonomia docente, a interdisciplinaridade e a criatividade. O trabalho embora seja um princípio norteador é tratado indiretamente e de forma incidental. No caso específico de uma das professoras entrevistadas, é marcante sua visão positiva em relação aos educandos da EJA, que talvez se relacione à sua atuação militante em movimentos sociais e estudantis. Ela destaca a importância de desconstruir os preconceitos em relação ao educando da EJA, conforme defende Arroyo (2011) ao afirmar o quanto a escola pública e seus sujeitos são alvos de visões negativas e preconceituosas. Por fim, esperamos que ao longo dos percursos de investigação que o GRUPPEEJA tem construído coletivamente possamos contribuir para o adensamento de subsídios teóricometodológicos para essa área. Consideramos também que a socialização e problematização dos 3979
itinerários produzidos na pesquisa são fundamentais no processo de formação de futuras pesquisadoras da área de Educação em Ciências focalizados nas questões da EJA. Ou seja, para o grupo tem sido formativo explicitar as dimensões epistemológicas que balizam o trabalho nessa área do saber, especialmente se considerado as diferenças que existem entre produzir conhecimento científico na área das humanidades e na área das Ciências da natureza. Referências ARROYO, M. G. Currículo, Território em disputa. Petrópolis: vozes, 2011. BARBOSA, J. S. e CHAGAS, P. C. M. Concepções dos alunos da Educação de Jovens e Adultos sobre a disciplina de Biologia. Anais do VIII Encontro Nacional de Pesquisa em Educação de Ciências (ENPEC). Rio de Janeiro, 2011. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Proposta Curricular para a educação de jovens e adultos: segundo segmento do ensino fundamental - 5ª a 8ª série.introdução./ Secretaria de Educação Fundamental, 2002. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Proposta Curricular para educação de jovens e adultos: ensino fundamental: proposta curricular -1º segmento. coordenação e texto final (de) Vera Maria Masagão Ribeiro. Brasília, 2001. 239p. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão. Guia dos Livros Didáticos do PNLD EJA 2014. Natal: EDUFRN, 2014. BRASIL, Ministério da Educação. Coleção cadernos de EJA, 2007. Disponível em <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=13536%3amateriaisdidaticos&catid=194%3asecad-educacao-continuada&itemid=913> Acesso em 23 de nov de 2014. CASSAB, M. Educação de Jovens e Adultos, Educação em Ciências e Currículo: diálogos potentes. Educação em Foco (Juiz de Fora), v. 21, p. 13-38, 2016. COSTA, S. J. D e STRIEDER, D. M; O ensino de ciências e a educação de jovens e adultos caminhos para a formação da cultura científica. Unoeste: Cascavel, 2008. FERNANDES, G. W e VIOLA, M. F; Concepções de professores sobre o ensino de ciências na educação de jovens e adultos. Universidade Presbiteriana Mackenzie: São Paulo, 2009. FORQUIN, J. C. Escola e cultura: as bases sociais e epistemológicas do conhecimento escolar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993. GOODSON, I. Tornando-se uma matéria acadêmica: padrões de explicação e evolução. A construção social do currículo. Lisboa: Educa, 1997. HADDAD, S. A ação de governos locais na educação de jovens e adultos. Revista Brasileira de Educação. Vol.12, n.35, 2007. pp. 197-211. JULIA, D. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da Educação, n. 1, jan.-jun./2001, pp. 9-43. LOPES, A. Conhecimento escolar: ciência e cotidiano. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999. OLIVEIRA, M. O. M. Tornar visível o cotidiano da escola: experiências na EJA. Revista da FAEEBA Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 21, n. 37, p. 163-172, jan./jun. 2012. RIBEIRO, V. M. A formação de educadores e a constituição da educação de jovens e adultos como 3980
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