O estatuto do corpo no transexualismo

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Transcrição:

O estatuto do corpo no transexualismo Doris Rinaldi 1 Lacan, no Seminário sobre Joyce, assinala a estranheza que marca a relação do homem com o próprio corpo, relação essa que é da ordem do ter e não do ser. O corpo, nós o temos; este é o sentido da expressão latina hábeas-corpus. Apesar disso, ele nos escapa o tempo todo. O que se passa quando essa estranheza assume a forma radical expressa na demanda de mudança de sexo pela via cirúrgica de retificação do corpo, como no caso do transexualismo? Se meu corpo é meu, porque eu não poderia mudar de sexo? Esta é a pergunta que está na base de considerações médicas, éticas e jurídicas sobre o fenômeno atual do transexualismo e que legitima e impulsiona intervenções no campo da saúde pública, como as que tivemos notícia em nosso país, quando uma decisão do Tribunal Superior 2, em junho de 2007, estabeleceu o prazo de 30 dias para que o Sistema Único de Saúde (SUS) passasse a realizar cirurgias de transgenitalização, conhecida como mudança de sexo 3. O argumento usado foi de que a cirurgia para transexuais pelo SUS é um direito constitucional, que abrange princípios do respeito à dignidade humana, à igualdade, à intimidade, à vida privada e à saúde 4. Um ano depois, em 06/06/2008, o Ministro da Saúde, anunciou que assinaria até o final do mês a portaria que determina que a cirurgia para mudança de sexo faça parte da lista de procedimentos do Sistema Único de Saúde (SUS) 5. Desencadeada em resposta às demandas do movimento social de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (GLBT), a oficialização desses procedimentos nos termos de uma política governamental segue orientação adotada em outros países, sustentando-se em duas ordens de princípios: de um lado, princípios democráticos universais que asseguram a todos a propriedade do corpo, o direito à intimidade e à vida privada, e, de outro, o princípio que particulariza a população designada como transexual, sua marca registrada, que é a convicção inabalável de pertencer ao Outro sexo. Entre o ter e o ser, qual é a lógica que preside a disseminação de tratamentos de 1 Psicanalista de Intersecção Psicanalítica do Brasil 2 Decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª região, que abrange todo o território brasileiro. 3 Globo On-line - 16 de agosto de 2007. 4 Idem 5 Portal do Ministério de Saúde: www.saude.gov.br

mudança de sexo que cristaliza, na atualidade, como indicam alguns autores 6, o transexualismo como um sintoma social? Esta pergunta conduz à questão central deste trabalho, relativa ao estatuto do corpo no transexualismo. Relatos clínicos de casos de transexualismo, marcados pela angústia de despedaçamento e pelas passagens ao ato, evidenciam o horror e repugnância que o corpo provoca nesses sujeitos. A cirurgia surge como a possibilidade de reintegrá-lo ao verdadeiro ser do sujeito, ser este definido a partir da certeza de pertencer ao Outro sexo, que, todavia, se sustenta no próprio imaginário do corpo. Como vimos em algumas biografias de transexuais 7, há uma tentativa de eliminar a desarmonia entre o corpo e o ser do sujeito, ou seja, eliminar essa estranheza que o corpo provoca em todo sujeito, na esperança de passar da ordem do ter um corpo a de ser um corpo, onde se evidencia a prevalência do imaginário. Tentativa vã, porque as mudanças anatômicas não são suficientes para atender à demanda transexual, que se desdobra em outra, de mudança jurídica do pré-nome nos documentos de identidade, em um apelo a uma nomeação simbólica, legitimada socialmente. Desde sempre o desconhecimento que temos de nosso corpo desafia a ciência e está na origem da própria psicanálise, que descobre o inconsciente pela fala das histéricas a partir dos enigmas de suas manifestações somáticas. Como diz Lacan, o inconsciente de Freud é justamente a relação que há entre um corpo que nos é estranho e algo que faz círculo ou mesmo reta infinita,... e que é o inconsciente. (Lacan, (1975-76) 2007:145) Ao mesmo tempo, somos capturados pela imagem de nosso corpo e a adoramos. A prevalência da imagem corporal na formação do eu e seu papel de matriz para a constituição do sujeito, são destacados por Lacan desde o texto sobre o Estádio do Espelho. Também para Freud o eu é uma imagem corporal 8, mas a metáfora da cebola que utiliza é bastante eloqüente para dizer de que é feita esta imagem. Revestida de muitas cascas e pétalas, ao despetalar-se evidencia o vazio que a funda, o vazio do ser. É neste vazio do ser que o corpo se apresenta como a nossa única consistência, que só ganha sentido, contudo, a partir da linguagem, ao ser falado pelo Outro. Lacan ao final de seu ensino utiliza a expressão falasser ( parlêtre) para designar o inconsciente, porque a fala é o único lugar em que o ser tem um sentido (Lacan, 6 Por exemplo, Frignet, H. O transexualismo, Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2002. 7 FREITAS, M.C. Meu sexo real: a origem somática, neurobiológica e inata da transexualidade, Petrópolis, RJ: Vozes, 1998. 8 Freud, S. O ego e o id (1923) 1988:40.

(1975) 2003:.561). Em relação ao corpo, enfatiza que estamos em cheio no engano, pois acreditamos que o temos, mas na realidade não o temos. O corpo só se torna ser pelas palavras que o recortam e fragmentam seu gozo. O real da pulsão fura a imagem do corpo e é pela palavra que podemos contornar seus furos. Sua consistência, na verdade, só pode ser mental, onde a sexualidade, ao se dizer, mente e deixa um resto. Por isso o corpo escapa a todo instante. Ter um corpo, portanto, significa poder fazer alguma coisa com ele. O corpo serve de apoio para o gozo. É isso que se coloca como impasse para o transexual, pois ele não sabe o que fazer com seu corpo. No caso do transexual masculino, ele não sabe o que fazer com o seu órgão (pênis), que lhe provoca nojo e repulsa. Poderíamos supor que isto traz algum gozo, mas parece tratar-se, para ele, mais de uma excrescência do que de instrumento de gozo. É isso que quer eliminar pela cirurgia para fazer existir A mulher que acredita ser. Ao recobrir o real do sexo com o imaginário do corpo tenta fazer existir a relação sexual. Um órgão é um instrumento que só existe por sua função, que é sempre significante. Lacan no Seminário 19, Ou Pior, diz que o transexualista comete o erro comum do discurso sexual, fundado na universalidade do falo. Nesse discurso o falo é tomado como significante, a partir do semblante anatômico que define a diferença sexual a partir do ter ou não ter, ou seja, entre falo e castração. A loucura do transexualista, contudo, é justamente querer liberar-se desse erro, o erro comum que não vê que o significante é o gozo e que o falo não é deste senão o significado (Lacan, 8/12/1971). Ele não quer ser significado falo pelo discurso sexual. Em sua demanda de cirurgia, não é do órgão que ele quer livrar-se, mas do significante. Ao querer aceder ao outro sexo por meio de uma retificação no corpo, ele se equivoca, diz Lacan, por querer forçar o discurso sexual que, como impossível, é a passagem ao Real, por querer forçá-lo pela cirurgia (idem). Quais as conseqüências de uma prática médica que toma ao pé-da-letra esta demanda e intervem nos corpos desses sujeitos, principalmente quando se institui como um procedimento oficial de saúde pública, legitimando através da ciência a tentativa de modificar o real enigmático do sexo pela via do imaginário? Em uma sociedade em que a fetichização dos corpos é largamente difundida, em que proliferam as técnicas que visam driblar o inevitável da morte e as marcas da vida, na tentativa de construção de um imaginário sem furos, será que o transexualismo e a sua loucura pode ser pensado como um sintoma social, no sentido que Lacan identificou

em Marx, como signo de alguma coisa que não vai bem no real? (Lacan, 10/12/1974) Se o corpo para o falasser só pode ser tocado pelo sintoma, será o transexualismo, tal como é abordado hoje, um sintoma por excelência da atualidade, na sua demanda de manipulação do corpo que implica uma passagem ao real? Referências Bibliográficas FREITAS, M.C. Meu sexo real: a origem somática, neurobiológica e inata da transexualidade, Petrópolis, RJ: Vozes, 1998. FREUD, S. O ego e o id (1923) Obras Psicológicas Completas, Rio de Janeiro: Imago, Ed. 1988. FRIGNET, H. O transexualismo, Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2002. LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do eu In: Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1998. Seminário 19, Ou Pior (1971-72), inédito. Seminário 22, RSI (1974-75), inédito. Seminário 23, O Sinthoma (1975-76), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed. 2007. Joyce, o sintoma ( 1975) In Outros Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed. 2003..