A cor como linguagem: reflexões sociológicas sobre as dinâmicas cromáticas nos revestimentos e acabamentos históricos de Coimbra



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Transcrição:

Simpósio Património em Construção: Contextos para a sua preservação A cor como linguagem: reflexões sociológicas sobre as dinâmicas cromáticas nos revestimentos e acabamentos históricos de Coimbra Paulo Peixoto Professor Auxiliar, Universidade de Coimbra, Portugal, pp@uc.pt Pedro Providência Arquiteto, Mestre em Recuperação do Património Arquitetónico e Paisagístico, Coimbra, Portugal, pedro_providencia@hotmail.com José Aguiar Professor Associado, Faculdade de Arquitectura, Lisboa, Portugal, jaguiar@fa.utl.pt RESUMO: Além das suas funções mais rudimentares e tradicionais, centradas na preservação dos edifícios, a cor vai-se assumindo, num longo processo histórico, como uma linguagem complexa. A cor comunica, assumindo progressivamente usos sociais diversos. Enquanto elemento fundamental da identidade cultural local, a cor reflete processos de desigualdades económicas, de distinção e de imitação social, de efeitos de moda e de gosto, de circulação de modelos culturais e estéticos e de mecanismos de legitimação profissional e política. A evolução da zona histórica de Coimbra exemplifica o valor social da cor e a sua conversão em linguagem complexa e heterogénea. PALAVRAS-CHAVE: dinâmicas cromáticas; zona antigas; Coimbra; identidade local; hipercentralidade. O VALOR SOCIAL DA COR Ainda que os anos iniciais do século XX tenham trazido os primeiros debates relativos à relação cor e cidade, a cor tem sido uma variável negligenciada nos processos de descrição dos estilos e dos períodos históricos, particularmente no domínio da arquitetura, do urbanismo e da sociologia urbana. Contudo, a cor tem um valor social e um poder explicativo que são inegáveis no domínio das leituras da cidade. De um ponto de vista histórico, o uso da cor passa de um contexto determinado predominantemente pela obrigatoriedade de recurso aos pigmentos e materiais locais para um contexto em que, progressiva e paulatinamente, a diversidade de materiais e de técnicas de construção multiplica as escolhas e diversifica os usos e o valor social da cor. Boeri (2010:459) [1] salienta que, hoje como no passado, a cor é um elemento importante de reconhecimento, de sentimento de identificação, de legibilidade e de qualidade da cidade, destacando o poder da cor enquanto instrumento capaz de transformar e de influenciar a perceção e a experiência do espaço. Analisando planos cromáticos de cidades italianas, Boeri relaciona a sua emergência com a necessidade social e económica de preservação de edifícios, mas também de disciplinamento e de valorização estética do espaço. Poderíamos circunscrever o valor e os usos sociais da cor a este universo de funções enunciado por Boeri, mas isso limitaria a análise da cor enquanto linguagem complexa dos contextos espaciais, culturais e temporais. Tanto mais que, nas diversas realidades urbanas, as componentes cromáticas dos edifícios raramente obedecem a planos cromáticos racionais e com capacidade para perdurar no tempo, estando, ao invés, sobretudo, subordinadas às condições 247

Lisboa LNEC 25 e 26 de Novembro de 2011 económicas dos indivíduos, ao Colore Loci e disponibilidade local de materiais de cor no lugar, às vontades e aspirações das pessoas, assim como a crescentes efeitos de modelação. Nessa medida, é importante sublinhar que a cor dos edifícios está sujeita a mecanismos de distinção e de imitação social, a efeitos de moda e de gosto, a imperativos comerciais, assim como a programas políticos e a desideratos de legitimação técnica e profissional. Vários autores (Riley, 1995 [2]; Gage, 1999 [3]; Xiaomin e Yilin, 2009 [4]) destacam que a cor é um dos primeiros elementos de perceção do espaço e de fixação de ritmos relevando, com esse argumento, a função psicológica da cor - que permite fomentar, posteriormente, a atribuição de valor simbólico e funcional aos edifícios e ao espaço. Neste contexto, Cristina Boeri salienta que, através da impressão projetual que fomenta, a cor é um fator determinante da hierarquia visual do espaço, conferindo, por exemplo, sentidos de continuidade e de descontinuidade. O valor social da cor, no seu caráter multifacetado, tem legitimado o argumento que os planos cromáticos são instrumentos de planeamento cada vez mais importantes. DA COMPLEXIDADE CROMÁTICA À COR COMO PATRIMÓNIO HISTÓRICO Se cada época e cada local possui a sua cultura cromática, desde os efeitos de moda e de prestígio de determinados pigmentos até à instrumentalização da cor pelo poder político, a regionalidade da cor foi sendo progressivamente ameaçada (Aguiar, 2003) [5]. O processo de industrialização, democratizando o acesso à cor, não só deixou de fazer com que ela se libertasse da dependência dos materiais localmente disponíveis como facilitou (por via da disponibilização e da redução de preços) os fenómenos de imitação social. Isso não significa que a questão da geografia da cor, tal como é concebida por Jean-Philippe Lenclos [6], tenha perdido relevância. A influência da geografia e da cultura locais na cor pode ter-se esbatido e ter sido elidida na epiderme dos edifícios mas não deixa de impor a sua marca e a sua presença. Porém, a tendência crescente para a heterogeneidade e a complexidade cromática é um fenómeno inequívoco. Fenómeno que, sublinhe-se, não vai apenas ocorrer nas novas áreas urbanas, disseminando-se também pelas zonas mais antigas das cidades, onde intervenções mais planeadas e criteriosas se mesclam com outras claramente marcadas pelo improviso e pelos assomos, individuais e políticos, do que, ironicamente, poderíamos chamar conquista do direito à cor. Mais recentemente as cores sintéticas vieram acentuar essa tendência, fomentando fenómenos de globalização, quer no domínio da disponibilidade de tintas, quer da divulgação de paletes cromáticas. Neste contexto, os efeitos de modelação vão-se sucedendo, traduzindo-se, por um lado, na disseminação de programas formatados de intervenção e, por outro lado, em efeitos de escalada e de exacerbação cromática pouco criteriosa. Em Portugal, programas como A Séptima Colina, Lisboa a Cores o Gaia bonita, Coimbra tem mais encanto ou o Porto com pinta respondem, com maior ou menor fidelidade, ao repto de modelos que circulam globalmente e que pretendem associar à intervenção cromática de algum destaque político (um «ravalement») e usos sociais concretos, relevando e dramatizando o valor social da cor. Um desses modelos, como alguns outros de intervenção patrimonial e de requalificação urbana, foi desenvolvido em Barcelona. Referimo-nos concretamente ao projeto Barcelona, posa t guapa, inaugurado no início dos anos 1990. Este modelo tem sido replicado também fora da Europa, como, por exemplo, no Brasil (Recife, Rio de Janeiro, Fortaleza). Não deixa 248

Simpósio Património em Construção: Contextos para a sua preservação de ser interessante constatar, no âmbito da discussão que este texto promove, que, de um modo sui generis, o modelo de intervenção encare a cor como uma património histórico. A intervenção cromática que o modelo propõe visa reforçar os valores paisagísticos, o sentimento de identificação com a realidade urbana local e, ao mesmo tempo, fomentar os valores cívicos que sejam capazes de fortalecer as relações de cidadania, tornando-as socialmente mais equilibradas. A assunção que os edifícios pintados são capazes de adquirir um valor emblemático e de gerar significados sociais, como se o visual garrido fosse a condição fundadora de novas sociabilidades e de sentimentos identitários, tem um interesse que se estende para lá dos objetivos dos programas locais que se inspiram no modelo. A ideia de que a paisagem urbana é crucial para gerar sentimentos de identificação norteia, em geral, os projetos de reabilitação e de requalificação urbanas, dando origem a modelos que são reproduzidos em série e que difundem valores de cidadania e de participação cívica. Barcelona, a cidade que concebeu e desenvolveu o modelo quando se iniciaram as operações de requalificação da zona histórica de Las Ramblas, viu, no final dos anos 1980, o professor da Escola Técnica Superior de Arquitetura de Barcelona, Jose Emilio Hernandez Cros, encarregado de recuperar a Casa Milà, de Gaudi, reunir um grupo de profissionais ativos e prosélitos que se empenhou em desenvolver sistemas de codificação cromática. Esta iniciativa levaria à consolidação de um projeto designado Plano cromático para Barcelona e ao aparecimento de um Gabinete da Cor, dirigido pelo arquiteto Joan Casadevall i Serra. Não é tanto por isso que o modelo merece o destaque que lhe é dado, mas por, em junho de 1997, procurando dar um novo impulso à iniciativa, ter sido criado o Instituto Municipal da Paisagem Urbana e da Qualidade de Vida (IMPUQV), que assumiu como filosofia fundadora e como ato inspirador as medidas que, em 1986, tinham presidido ao aparecimento da iniciativa Barcelona posa t guapa. A arquitetura e, especificamente, a cor assumem o papel de redenção de um espaço público ameaçado e de uma qualidade de vida desejada mas difícil de alcançar. Assim, reiterando nos seus estatutos os objetivos que os programas locais de cromatização reproduzem, e apostando em operacionalizar, com o recurso à cor, os conceitos de paisagem urbana e de qualidade de vida, este Instituto assume estatutariamente e de forma explícita o objetivo de promover Barcelona e o seu modelo de transformação urbana como referente para as restantes cidades do mundo [7]. Esta intenção deliberada em criar modelos e em pô-los a circular globalmente constitui uma nova dimensão das políticas de ravalement lançadas no início da segunda metade do século XX, passando a intervenção cromática a ser intermediada por valores comerciais e por uma iniciativa política voluntarista. Esta, nas suas mais diversas manifestações locais, assume, frequentemente, do modelo apenas o impulso para a introdução da cor, consubstanciando-se numa fúria esquizofrénica sem outra preocupação que não seja a de pintar. A cor reveste-se, neste contexto de modelação, de novos valores sociais, sendo encarada como um fator criador de relações humanas e passa, em si mesma, a ser vista como um património histórico. Pelo menos no plano ideológico, ainda que esse desiderato muitas vezes se perca na implementação do modelo, a tradição cromática local e o conhecimento dos elementos construtivos são objetivos maiores, de modo a encontrar as cores mais coerentes e a alinhá-las com a história, com a função e com o contexto. A COR NA ÁREA URBANA ANTIGA DE COIMBRA Nos sistemas construtivos, nomeadamente nos tradicionais, os revestimentos e acabamentos constituem a camada de sacrifício dos edifícios, pelo que correspondem aos elementos 249

Lisboa LNEC 25 e 26 de Novembro de 2011 construtivos que sofrem mais intervenções, quer de conservação e restauro, quer de renovação da própria imagem do edifício. Assim, são usualmente, identificadas diferentes camadas correspondentes a diferentes épocas na estratigrafia destes elementos, designadamente de rebocos, barramentos e tintas. Este fenómeno ocorre no Centro Histórico (CH) de Coimbra [8]. O estudo do CH de Coimbra, visando a caracterização da "epiderme", designadamente, das cores, das texturas, dos revestimentos, das superfícies arquitetónicas, entre outros elementos que marcam a evolução da imagem urbana da Coimbra antiga à dos nossos dias, pretende criar uma base de trabalho que permita o apoio à posterior execução de um Plano de Cor. Em concreto, procura-se referenciar as opções que determinaram os ciclos cromáticos identificados nos revestimentos e acabamentos históricos do CH de Coimbra, da Idade Média à atualidade, e caraterizá-las por referência a dinâmicas sociais, económicas e políticas. Esta análise permitirá confrontar os estudos desenvolvidos no CH em 2002 - que promoveram uma abordagem iconográfica a partir da confrontação de pinturas dos séculos XIX e XX - com a realidade presente [9]. De um modo geral, em 2002, na sua focalização à distância, a cor predominante no CH era o branco, identificando-se, ainda, pequenas manchas pontuais de outras cores, já muito esbatidas, nomeadamente de ocres e vermelhos. Sobressaiam também algumas manchas de cor cinza, permitindo, numa observação mais atenta, verificar que correspondem a revestimentos, já num estado de degradação avançado, onde a sujidade e as camadas inferiores se mesclam, dando origem a cores indefinidas. Tendo em conta a elevada concentração de monumentos no CH da cidade de Coimbra, não se pode deixar de constatar que, tal como para o casario, também para os monumentos, além do branco, os tons creme da cantaria em pedra (calcária com laivos amarelos) são amplamente visíveis. Na verdade, não deixa de ser interessante avaliar e comparar a massa volumétrica do conjunto dos monumentos com a do casario e perceber a importância que assumem na definição da cor na cidade. A coloração demasiado unitária que era patente no CH, permite verificar por confrontação com as representações da cidade, efetuadas por diversos pintores, num período que vai desde 1865 (Figuras 01 e 02) até aos nossos dias (Figura 03) que a diversidade de cores que anteriormente a cidade apresentava foi progressivamente substituída pela homogénea cor branca, a partir de meados do séc. XX. Assim, onde antes existiam, sobretudo, ocres fortes, azuis suaves, amarelos e alguns vermelhos, passou a existir o branco. Comparando o documento datado de 1865, que reproduz minuciosamente quer a volumetria, quer a cor da cidade na época, com uma fotografia atual, constata-se que, contrariamente à crueza do branco sintético atual, a cor de fundo naquela data era o ocre de cal e, promovendo a criação de ritmos na cor, surgiam o vermelho e o amarelo-ocre, em maior quantidade, a também o azul. Numa cidade que, à época, tinha a sua malha urbana praticamente restrita à atual zona antiga (a Alta e a Baixa), sendo nítida uma segregação espacial e social que separava a Alta letrada (onde residiam os lentes) da Baixa popular, é curial promover uma investigação mais aprofundada que dê conta de eventuais diferenças cromáticas sinalizadoras dessa degradação. Sendo academicamente plausível postular que tais diferenças podem residir não tanto no padrão cromático geral mas na predominância de certas cores e de certos usos da cor, assim como no desfasamento histórico que, por processos de imitação social facilitados por dinâmicas industriais, como as que ocorreram em Coimbra, possa existir, entre a Alta e a Baixa da cidade no domínio cromático. 250

Simpósio Património em Construção: Contextos para a sua preservação Figura 1. Vista de Coimbra (margem direita), António Gonçalves Neves/1865 Figura 2. Pormenor de 01 Figura 3. A Perfil do CH de Coimbra (perfil sul/poente), 2005 Nas representações detalhadas da cidade, do princípio do séc. XX, antes da intervenção higienista promovida pelo estado Novo, verifica-se que o branco é praticamente inexistente nos edifícios e que os ocres, amarelos ou vermelhos assumem diferentes tonalidades, exceto nas representações que mostram forte incidência dos raios solares sobre a cidade, e que, assim, por esse efeito luminoso, se aproxima da leitura ótica do branco. Percorrendo o interior do CH e recorrendo à iconografia verifica-se que a análise feita ao exterior se reflete no interior. É possível identificar pormenores representativos das especificidades desta arquitetura nos seus diversos elementos, que, tal como a cor, também têm vindo a desaparecer, nomeadamente, os grafitos e esgrafitos, os socos e os cunhais afirmados com cores diferentes das do pano, e as guarnições dos vãos em pedra policromada. Constata-se nas fachadas dos edifícios uma harmonia na definição das cores dos elementos arquitetónicos dada pela utilização dos mesmos pigmentos em tonalidades diferentes, ou seja, se o pano de fachada era assumido na cor rosa, a porta, os aros das janelas e as serralharias eram na cor vermelho sangue de boi, e, em alguns casos, o soco e as molduras dos vãos assumiam uma cor ligeiramente mais intensa do que a aplicada no pano de fachada. O mesmo foi identificado em edifícios com o pano de fachada pintado na cor ocre amarelo, sendo que nestes casos a porta, os aros das janelas e as serralharias eram pintados de castanho. Nos edifícios em que o pano de fachada era pintado na cor branco, a porta, os 251

Lisboa LNEC 25 e 26 de Novembro de 2011 aros das janelas e as serralharias eram pintados de verde ou castanho. De um modo geral, o caixilho da janela (folhas) era pintado de branco sujo. No que respeita aos elementos arquitetónicos alusivos à estrutura do edifício, nomeadamente soco, pilastras, molduras dos vãos e beirados, entre outros, eram executados em pedra ou, na maior parte das vezes, em argamassa de cal a imitar a pedra. Foram identificados alguns casos em que o soco era pintado num cinza escuro, proveniente da calcinação de madeiras brancas, como medida preventiva em relação à sujidade a que esta zona dos edifícios está mais sujeita. Confrontando os estudos desenvolvidos no CH em 2002 com a realidade atual constata-se que a substituição nos edifícios de pigmentos tradicionais por pigmentos modernos (verde água, laranja, azul bebé, vermelhão, amarelo canário, violeta, etc.) intensificou-se na última década, algumas das intervenções ao abrigo de vários Programas de apoio à reabilitação da cidade histórica, designadamente Coimbra tem mais encanto, Recria e PRAUD/ OBRAS. Por outro lado, a acentuar esta alteração profunda da imagem do CH, para além da substituição dos revestimentos e acabamentos históricos por modernos, registam-se também alguns casos de substituição dos próprios edifícios. Esta análise permite salientar que o século XX da zona mais antiga da cidade fica marcada pelo fenómeno da cor como bandeira política. É curioso o facto da proliferação de cores que surgiram no CH, a partir do início do século XXI, como que em reação à homogeneidade da imagem do CH na cor branca, do século passado, cultivada pelas doutrinas do Estado Novo. E sobretudo como tentativa de combater simbolicamente, com essa cacofonia cromática, uma imagem de definhamento que essa zona encerra. Este fenómeno levou-nos a refletir sobre o desempenho do branco na atmosfera da cor da imagem do CH. O estudo permitiu revelar que a cidade antiga, para além do branco, tinha outras cores que, até à data, se encontravam, parcialmente, ocultas pelos revestimentos que lhes foram aplicados a posteriori. Contudo, o estudo revelou, também, que a cor predominante dos revestimentos do pano de fachada era branca e que, a criar ritmos no conjunto do edificado, surgiam, pontualmente, outras cores, para além do contraste, claro/escuro, da cor da pedra dos elementos arquitetónicos com a cor branca do pano da fachada. Em grande parte, estes elementos também se encontravam ocultos pelas caiações que lhes foram aplicados subsequentemente. Dos revestimentos finais tradicionais, as argamassas e as pinturas de cal são os predominantes, sendo que ainda existem alguns casos de fingidos de cal, alguns esgrafitos e por fim, numa pequena percentagem, os revestimentos azulejares. No que respeita à cor dos revestimentos e acabamentos antigos, de cal (pinturas e barramentos), constata-se que, além da cor branca, estão em maior número as cores cujos pigmentos são oriundos dos óxidos de ferro das terras-naturais da região, como é o caso dos ocres amarelos e vermelhos, seguindo-se, em menor número, as tonalidades das cores correspondentes a pigmentos mais caros e menos acessíveis, produzidos com recurso a técnicas mais sofisticadas. Estes surgem num período mais tardio, e correspondem aos azuis e verdes, sendo que os últimos são, de todas as cores, os que apresentam um menor número de casos identificados. Relativamente à cor das pinturas em tinta de óleo, à semelhança, e pelos mesmos motivos, do constatado para os revestimentos e acabamentos de cal, as tonalidades das cores prevalecentes são os castanhos e vermelhos escuros (sangue-de-boi), seguidas dos verdes (verde loureiro e verde oliveira), encontrando-se estas 3 cores, sobretudo, nas portas e aros 252

Simpósio Património em Construção: Contextos para a sua preservação das caixilharias em harmonia com as serralharias, e o branco sujo nas folhas das caixilharias. Importa referir, ainda, a forte presença dos tons creme das cantarias do casario e da elevada concentração de monumentos na imagem do CH. Constatou-se que o CH de Coimbra, apesar das demolições a que foi sujeito em vários períodos, incluindo mais recentemente no período do Estado Novo, final do séc. XX e inicio do séc XXI, conservou uma parte significativa da malha urbana medieval, mas sofreu uma descaraterização da imagem dos edifícios, nomeadamente no que diz respeito aos seus revestimentos, sejam eles de natureza decorativa ou construtiva. A investigação em curso revela que a zona antiga de Coimbra se tem vindo a constituir como uma espécie de hipercentro da cidade. Verdadeiro recetáculo de investidas distintas, do campo político ao técnico, passando pelo associativo e pelo empresarial, esse espaço, que muitos, através das políticas de reabilitação urbana, pretendem tornar a mais falada, a mais estudada, a mais animada e, definitivamente, a mais colorida das configurações urbanas, parece constituir-se como o novo luzeiro da cidade em busca de uma certa centralidade cultural e de reforço do seu valor patrimonial e turístico. Isso permite que a cidade veja a sua centralidade reforçada no plano mediático e propagandístico. Mais do que um centro, que, em rigor, já não é, por ganhar uma visibilidade superior àquela que tem no desenrolar da vida quotidiana da cidade, o CH é, no contexto do investimento plástico que nele é feito, um hipercentro da cidade, na medida em que, virtualmente, se constitui como um ponto de convergência de intervenções urbanas diversas, animadas sobretudo pelo efeito cromático, destinadas a um certo mediatismo. CONSIDERAÇÕES FINAIS Dos centros históricos pretende-se cada vez mais que não sejam apenas um mero lugar nem um centro. Mas sim que se tornem num hiperlugar e num hipercentro, na medida em que têm de ser simultaneamente um lugar, uma apropriação e uma prática coletiva de formas de sacralização ou de espetaculosidade. Mais do que remeter para a esfera íntima ou para práticas quotidianas, o hipercentro exige um investimento coletivo que reveste um caráter mais ou menos sagrado, mais ou menos venerável, mais ou menos extraordinário. Nessa medida, procurando contrastar com o seu papel recente, os centros históricos são alvo de intervenções destinadas a torná-los protótipos da vida urbana e são mediatizados como lugares exemplares. Por essa via acabam por preencher a função de imagem profética de um futuro diferente para a cidade de que fazem parte, participando no desígnio maior de qualquer comunidade. Ou seja, a capacidade em criar e em manter lugares de centralidade que possam ser propostos aos locais e aos estranhos como lugares a admirar e a venerar. Neste contexto, em posições extremadas que atravessam as políticas de reabilitação, e que estão bem patentes no CH de Coimbra, parece consolidar-se a ideia que para ser belo ou atrativo, e consequentemente mediático, é preciso sofrer. Seja o sofrimento inerente às posições estéticas e políticas daqueles que defendem que a função dos centros históricos é preencher o lugar que as ruínas ocupam na formação e no funcionamento da memória coletiva, atuando como uma espécie da beleza do morto de que nos fala de Certeau. Seja o sofrimento relativo às transformações plásticas que, para promover um certo sentido estético, transfiguram lugares e objetos tornando-os como que irreconhecíveis e, sobretudo, contrastantes, na medida em que o colorido garrido se mescla com a decrepitude. Os elementos identificados no trabalho em curso constituem uma parte significativa daqueles que, até à data, se encontravam ocultos sob as camadas de reboco ou de tinta. Seria de todo 253

Lisboa LNEC 25 e 26 de Novembro de 2011 o interesse repô-los, de forma adequada, e estar atento à identificação de novos registos, para benefício da identidade da cidade. Estas decisões, cheias de cor interessam e mobilizam todos na cidade! AGRADECIMENTOS Agradece-se o apoio do IGESPAR e do MNMC pela disponibilidade de imagens. Este trabalho tem o apoio da FCT e FEDER através da bolsa SFRH/BD/60389/2009 e do projeto FCT PTDC/AUR-URB/113635/2009. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS [1] BOERI, Cristina, A perceptual approach to the urban colour reading. In: Colour and Light in Architecture. Knemesi, Verona, pp. 459-463, 2010. [2] RILEY II, Charles A., Color Codes. Modern Theories of Color in Philosophy, painting and Architecture, Literature, Music and Psychology. Londres, University Press of New England, 1995. [3] GAGE, John, Color and Meaning. Art, Science and Symbolism. Berkeley, University of California Press, 1999. [4] XIAOMIN, Dong e Yilin, Kong, Urban Colourscape Planning - A Colour Study of the Architecture of Karlskrona. Dissertação no âmbito do Master's degree of European Spatial Planning and Regional Development. Blekinge Institute of Technology, 2009. [5] AGUIAR, José, Cor e Cidade histórica, Estudos cromáticos e conservação do património. Porto: Grupo Edições FAUP, 2003. [6] LENCLOS, Jean-Philippe, The Geography of Colour. Tóquio, San ei Shobo Publishing Company, 1989 [7] PEIXOTO, Paulo. O passado ainda não começou. Funções e estatuto dos centros históricos no contexto urbano português. Dissertação de doutoramento. Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, 2006. [8] PROVIDÊNCIA, Pedro, A Epiderme do Centro Histórico de Coimbra Estudos Cromáticos e Contributos para a sua Conservação; Dissertação de Mestrado; Universidade de Évora, 2009. [9] PROVIDÊNCIA, Pedro, A epiderme do Centro Histórico de Coimbra, algumas considerações, Construção Magazine N.º 11, 2004. 254