PALAVRAS-CHAVE: Pós-dramático: Artaud: Nietzsche: Lehmann.

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Transcrição:

0 DIAS, Luciana da Costa. O diálogo possível entre Nietzsche, Artaud e Lehmann: Contribuições para pensar as artes cênicas no século XX. Ouro Preto: Universidade Federal de Ouro Preto. Prof. Adjunto. RESUMO Iremos discutir alguns pressupostos teóricos que possibilitam pensar o resgate da corporeidade como ato fundamental da cena, ocorrido nas artes cênicas do século XX. Para tanto, o Referencial Teórico se constrói a partir de 3 fontes centrais. Nietzsche, em sua crítica fundamental ao racionalismo e niilismo característicos da modernidade, na medida em que visa superar esta, resgata o corpo como origem de toda significação, abrindo assim o campo teórico da questão. Já Artaud, por procurar resgatar outra forma de teatralidade, primordial, na qual o corpo (assim como o grito e a respiração) é o lugar do ato teatral, rejeita a supremacia da palavra (e da razão) na construção da cena, nos ajudando a entender a relação entre superação da modernidade e superação do logocentrismo também no teatro. Por último, as consonâncias entre as chamadas crise da modernidade e do drama serão discutidas à luz do pensamento de Lehmann e seu conceito de pós-dramático. A circularidade e pertinência da questão se evidencia: na medida em que, para Lehman (cuja obra é tensionada por questões longamente alicerçadas na filosofia alemã), o projeto de Artaud, pode ser entendido como uma espécie de pré-história do pósdramático, já que antecipa e anuncia algumas de suas características, abrindo ainda caminho para as mudanças que serão características das artes cênicas no século XX. PALAVRAS-CHAVE: Pós-dramático: Artaud: Nietzsche: Lehmann. ABSTRACT We shall discuss some theoretical assumptions concerning the return of embodiment as the scenes s fundamental, occurred in the performing arts at XX century. The theoretical framework is built from 3 main sources. Nietzsche, in his fundamental critical of rationalism and nihilism as characteristics of modernity, seeks to overcome it, rescuing the body as source of all meaning, thus inaugurating the theoretical questioning field we intend to approach. Artaud seeks to rescue a primordial concept of theatricality, in which the body is the fundament of theatrical action. He rejects the supremacy of the word (and of reason) to build a scene, thus helping us to understand the relationship between overcoming of modernity and overcoming of logocentrism also in theater. Finally, the consonances between the so-called modernity crisis and the drama crisis will be discussed in light of Lehmann s thought (an author whose work is tensioned by questions long rooted in German philosophy) and his concept of post-dramatic. The circularity and relevance of this question becomes evident because, for Lehman, Artaud s work can be understood as the "prehistory" of the post-dramatic, anticipating and announcing some of its main features, that later will be central in the Performing arts from XX century. KEYWORDS: Post-dramatic: Artaud: Nietzsche: Lehmann. Propõe-se aqui estabelecer um diálogo entre Nietzsche e Artaud tendo como pano de fundo a discussão do pós-dramático ou melhor: daquilo que Lehmann, autor fundamental para se pensar as artes cênicas no século XX, denomina de a pré-história dos pós dramático. Essa pesquisa docente, a ser realizada em um horizonte de dois anos, encontra-se em caráter inicial e surge do entendimento de que as artes cênicas em sua história podem ser discutidas a partir da percepção de algumas determinações teóricas subjacentes a toda época ou visão de mundo, cuja elucidação pode auxiliar à compreensão das artes cênicas em sua história, sobretudo quando esta é pensada em perspectiva hermenêutica. (GADAMER, 2010)

1 O filósofo alemão Friedrich Nietzsche, que morre em 1900, na aurora do novo século, é considerado aquele que, precursoramente, deu voz, com suas marteladas, à grande renovação que o século XX representa. Grande crítico do ocidente e da razão, será o mentor de uma crítica que abrirá caminho para muitos pensadores e artistas nas décadas seguintes, se mantendo extremamente atual. A modernidade teatral, configurada pelas vanguardas, sobretudo na figura de Antonin Artaud e sua proposta para um novo teatro, constitui ponto de fundamental interesse para a construção de uma genealogia das Artes da Cena no século XX, em sua pluralidade e fragmentação. Já no contexto da obra de Nietzsche, falar em Modernidade é falar em Ocidente como a história do predomínio de certos valores enfraquecidos e decadentes. A afirmação precursora da relação entre vida e conhecimento, assim como a identificação, na tradição, da relação entre conhecimento, ressentimento e moral, além da crítica de Nietzsche à Metafísica e ao racionalismo, são questões intrinsecamente relacionadas que perpassam sua obra e que se expressam ainda em outros temas correlatos, muito conhecidos: o eterno retorno do mesmo, a morte de Deus (e o consequente Niilismo), a transvaloração de todos os valores, o além-do-homem, o amor fati. Posto entender a vida como valor máximo, esta seria o único critério e tudo aquilo que a nega (que nega a vida), seria valor de decadência, enfraquecimento dos instintos. O pensamento nietzschiano nos mostra que a crise da modernidade é a crise de um racionalismo exacerbado, egóico, que se fez científico e que perdeu a conexão com a vida. Deste racionalismo faz parte não só a separação alma / corpo, mas também a separação sujeito e objeto que, com Descartes, fundamenta a ciência na modernidade. De certo modo, Nietzsche inaugura uma nova dimensão para o pensamento ao remeter ao corpo o primado da significação. Formular um pensamento a partir do corpo significa romper com as categorias e hierarquizações da modernidade, inclusive com a que entende a subjetividade como absoluta, como um eu indivisível, e não como um transbordamento de forças. Significa buscar um conhecimento que se mostre totalizante, que se faça arte. Mas como isso é possível? Nietzsche aponta o caminho, mas não viveu para vê-lo ser percorrido. Sobretudo após a descoberta da psicanálise e de sua influência sobre o Surrealismo (ao qual Artaud chegara a se filiar entre 1924 e 1926), vemos a influência de Nietzsche crescer. As chamadas vanguardas artísticas, nome sob o qual são conhecidos movimentos tão diferentes quanto o Surrealismo e o Futurismo, terão lugar nas primeiras décadas do século XX e representam um sopro de ar fresco na história da arte, graças a sede por renovação e tentativa de rompimento com todo cânone. Na cena teatral, este papel de vanguarda será exercido sobretudo por Antonin Artaud, ator, encenador e dramaturgo francês, que terá em O Teatro e seu Duplo (2006), livro que reúne uma coletânea de textos publicados em diferentes revistas entre 1931 e 1935, uma de suas obras mais conhecidas. Poderíamos ressaltar muitos pontos (até mesmo biográficos) em comum entre Nietzsche e Artaud: a longa doença, as constantes dores, a loucura final, bem como a afirmação da

2 vida, do corpo, dos valores vitais... Ainda que com diferenças, temos em ambos a tentativa de superação da tradição e a busca por um novo começo. Se por um lado, o próprio Artaud não esconde a admiração que sente por Nietzsche em sua última obra, Van Gogh o suicidado da sociedade, de 1947, por outro lado, destacamos ainda, como marco da aproximação entre os dois temos o texto seminal do filósofo francês Jacques Derrida O Teatro da crueldade e o fechamento da representação, escrito em 1967. (DERRIDA, 1995) O projeto de Artaud se caracteriza pelo duplo movimento: a destruição do teatro existente e a construção de um novo, que o supere. Destruir o teatro tradicional, que ele critica como sendo teatro psicológico (ou ainda teológico ), por seu caráter subjetivo e metafísico, no qual o eu seja do diretor, seja do dramaturgo se mostra absoluto, tendo no diálogo e no texto o cerne para construção da cena. Artaud quer desconstruir os lugares tradicionais do espetáculo, romper com a separação plateia / palco, tirar o público do lugar confortável de espectador passivo a digerir placidamente aquilo que lhe é ofertado em prol do novo teatro, por ele batizado de Teatro da Crueldade, que define como inevitável necessidade: o verdadeiro teatro ainda não nasceu. No teatro da crueldade, mais do que as palavras, o grito, as vocalizações, e a respiração, mais propriamente o corpo se torna o lugar primordial do ato teatral. Artaud prioriza, em termos simples, o gesto e sua intensidade. A cena se torna a articulação de diversos signos, corporais, concretos, que se tornam verdadeiros hieróglifos imagens materiais cujo significado jamais se esgota e nem podem ser banalizados através de uma interpretação psicologizante ou mesmo unívoca. A cena será vista como um lugar físico que pede para ser preenchido com linguagem concreta : aquela destinada aos sentidos e que independe da palavra, ainda que possa usá-la. A obra de Artaud representa um marco para as artes cênicas do século XX, ainda que, antes de sua aparição já tenha havido algumas preocupações de resgate da cena. Depois de Artaud, sobretudo, esse tipo de preocupação se tornará ainda mais presente na obra de diversos criadores, como Grotowski e Peter Brook, entre outros. Justamente por seu caráter seminal, já que suas ideias se espalharam como uma praga, Artaud será considerado por Lehmann um dos marcos historiográficos para se pensar as radicais transformações que conduzem ao pós-dramático. (QUILICI, 2004) Chegando agora a Hans-Thies Lehmann nessa breve apresentação, sua (extremamente conhecida e criticada) conceituação de um teatro pós-dramático procurou dar conta das radicais transformações que caracterizariam as artes cênicas entre 1970 e 1990, e cuja marca seria a rejeição a toda totalização, destacando-se o caráter híbrido e descentralizado. (FERNANDES, 2008) não podemos esquecer que a expressão é cunhada na esteira das análises de Peter Szondi (2001) sobre o drama, sua crise e possibilidade de superação. Se o teatro dramático é aquele que obedece ao primado do texto, subordinado às categorias de imitação e ação, isso significa que nele predomina a esfera intersubjetiva que constrói a ação: o diálogo como lugar da oferta de sentido e

3 totalidade narrativa, a serviço da qual os demais elementos da encenação são postos, e, sobretudo, como expressão de uma subjetividade, seja do diretor ou do autor. Há muitas consonâncias entre isso que Szondi irá entender como teatro dramático e aquilo que Artaud entende como teatro tradicional (que ele quer destruir). É nesse sentido que, para Lehmann (2007), o teatro da crueldade comporia a pré-história do teatro pós-dramático, na medida em que anteciparia alguns elementos de sua estética. Para ele, as vanguardas são um passo importante para o rompimento com a tradição, para a tentativa de superação da modernidade e de suas formas de arte, ainda que esta seja uma tarefa que não consiga realizar totalmente. Isso significa que as contribuições da obra de Artaud para a construção do teatro pós-dramático são consideradas por Lehmann como um marco, fazendo parte da revolução que tornou este possível, mas não são ainda sua plena realização: devem ser consideradas na perspectiva das transformações ainda mais radicais que viriam. Pensar então o pós-dramático em sua (pré-) história, como Lehmann pontua, é retroceder à aurora do século XX, identificando nas vanguardas artísticas, em seu caráter de inovação e experimentação, a origem das muitas tendências, da fragmentação e pluralismo da cena contemporânea, naquilo mesmo que esta tem de múltipla, de indômita, de física e intensa. Contudo, tendo em vista que a cena teatral contemporânea se constrói através de uma pluralidade de influências, estímulos e desafios, estamos longe de pretender esgotar a questão. Pretendemos aqui apenas sinalizar que a posição assumida por Artaud em prol da construção de uma cena cuja poética não depende das palavras, e a sinalização, em Nietzsche de que, ainda antes, a razão e o discurso, bem como o sujeito, entraram em crise, mostram uma tendência, uma virada na maré que se mostrará dominante ao longo de todo o século XX. Poderíamos ainda perguntar: pós moderno e pós-dramático se confundem? O termo pós modernidade (ainda que desgastado pelo uso frequente e muitas vezes vazio), se refere à época contemporânea como um período que se coloca logo após a modernidade, como o que a supera. Pavis (1999) acentua que o termo pós moderno é pouco usado pela crítica francesa pela amplitude e falta de rigor, pois não corresponderia nem a um movimento histórico, nem a um gênero ou estética específicos. Lehmann (2007) também rejeita a denominação pós moderno para as artes cênicas, sugerindo em seu lugar o termo pós-dramático como forma de se pensar um problema concreto da estética teatral hoje, caracterizada por sua multiplicidade e radicalidade. Finalizando, não podemos deixar de observar que tanto a definição de pósmoderno quanto a definição de pós-dramático são definições frágeis. Embora pós-dramático se refira a um recorte especifico empreendido por Lehmann, não podemos ignorar que tal se dá em um contexto maior. Hoje se fala em fim do drama, fim da modernidade, fim da arte... Sem dúvida, vivemos hoje um momento de profundo questionamento da tradição, na tentativa mesma de sua superação. Neste contexto, não podemos nos impedir de repetir o trocadilho feito por Stein (1997): abordar a modernidade, nossa herança, como problema é um tema que se mostra, por excelência, contemporâneo.

4 BIBLIOGRAFIA ARTAUD, A. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 2006. ARTAUD, A.; SONTAG, S. (org.). Antonin Artaud: Selected Writings. Berkley: California University, 1988. ARTAUD, A. Van Gogh, o suicidado da sociedade. Rio de Janeiro: Achiame, s/d. BROOK, P. O Teatro e Seu Espaço. Petrópolis: Vozes, 1970. CHADDERTON, David. The Theatre Makers: How Seven Great Artists Shaped the Modern Theatre. London: Studymates, 2013. DANTO, A. C. Após o Fim da Arte: Arte Contemporânea e os Limites da História. São Paulo: Odysseus, 2006. DERRIDA. J. O Teatro da crueldade e o fechamento da representação. In: A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 1995. GADAMER, H.G. Verdade e Método (I e II). Petrópolis: Vozes, 2010. GUINSBURG, J; FERNANDES, S. (org.). O pós-dramático: um conceito operativo? São Paulo: Perspectiva, 2008. GROTOWSKI, J.Towards a Poor Theatre. New York: Simon and Schuster, 1968. LEHMANN, H.-T. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac & Naify, 2007. NIETZSCHE F. Assim Falou Zaratustra. São Paulo: Linoart, 1992. NIETZSCHE F. Crepúsculo dos Ídolos: ou como filosofar com o martelo. São Paulo: Cia das letras, 2006. PAVIS, P. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999. QUILICI, C. S. Antonin Artaud. Teatro e Ritual. São Paulo: Annablume, 2004. STEIN, E. Epistemologia e Crítica da Modernidade. Ijuí: UNIJUÍ, 1997. SZONDI, P. Teoria do drama moderno. São Paulo: Cosac&Naify, 2001. VIMAUX, A. Artaud e o Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2009.