O desenvolvimento da personalidade na França do século XIX a partir da idéia de propriedade

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Transcrição:

Universidade de Brasília UnB - Faculdade de Direito Disciplina: Teoria Geral do Direito Privado Professora: Ana Frazão TEMA 6 A PERSONALIDADE E OS DIREITOS DE PERSONALIDADE O desenvolvimento da personalidade na França do século XIX a partir da idéia de propriedade Vinculação entre a personalidade e os direitos subjetivos. Inexistência de disposição específica do Código Napoleônico a respeito dos direitos de personalidade. Centralidade da propriedade no pensamento jurídico francês do século XIX homem como um grande proprietário: de coisas, de si próprio, do seu nome, do seu corpo, de sua honra e de suas faculdades criativas. Proteção da integridade corporal, da honra e do nome como decomposições do direito de propriedade. Últimos anos do século XIX reflexão teórica mais importante sobre os direitos de personalidade na França. A Pandectística e a redução da personalidade ao seu aspecto técnico As discussões sobre a dimensão da personalidade estavam presentes na obra de Savigny e Puchta (inclusive na definição de direito subjetivo), tendo sido eclipsadas apenas a partir da Pandectística. Ao contrário do que ocorria na França, o direito civil alemão do século XIX não estava tão dominado pela noção de propriedade, até porque, em razão da tradição romanística absorvida pela Escola Histórica e pela Pandectística, somente poderia haver propriedade sobre coisas corpóreas.

2 Savigny o reconhecimento de um direito de propriedade sobre o homem conduziria à legitimação do suicídio e alguma discussão sobre os direitos da personalidade. Savigny e a idéia de um patrimônio moral, formado por direitos originários dos indivíduos, bens inatos que estariam acima do direito privado daí a sua compreensão de que, no âmbito privado, a personalidade deveria ser vista como à possibilidade de ser sujeito das relações jurídicas. Puchta personalidade não só sob o aspecto da capacidade jurídica, mas também do direito à honra. As discussões sobre o direito de personalidade em face do BGB alemão o BGB concebeu a personalidade sob a sua dimensão formal, ou seja, como a possibilidade de participar de relações jurídicas, sendo titular de direitos e deveres. Na época da discussão do projeto, já havia uma rica discussão na Alemanha a respeito dos direitos de personalidade. Exemplo é o pensamento de Gierke (1895) há um direito geral de personalidade que (a) confere ao seu titular o domínio sobre uma parte de sua própria esfera da personalidade, (b) não é patrimonial, ainda que possa ser desdobrado em conteúdos patrimoniais, (c) é personalíssimo e (d) inalienável, embora possa haver sua transmissão parcial ou total em alguns casos (tal como ocorre com os direitos de autor e inventor). Apesar de toda a discussão, o BGB não chegou a se referir expressamente aos direitos de personalidade, embora contivesse uma larga regra de responsabilidade civil, protegendo a vida, o corpo, a saúde e a liberdade das pessoas.

3 A positivação dos direitos de personalidade no Código Civil italiano de 1942 Atribui-se ao Código suíço de 1907 a primeira expressão legislativa dos direitos de personalidade. A primeira vez que tais direitos foram disciplinados pela lei, de forma sistemática, foi com o Código Civil italiano de 1942, que não se utiliza da referida expressão. A constitucionalização do direito de personalidade: a dignidade da pessoa humana Constituição alemã de 1949 (Lei Fundamental de Bonn) reconhece a dignidade do homem como sendo intangível e prevê o direito ao livre desenvolvimento da personalidade. A partir daí, a discussão sobre os direitos de personalidade ganhou novo impulso, sempre relacionada à dignidade da pessoa humana e ao que Larenz chama de princípio geral de respeito recíproco. Correlação necessária que existe entre direitos de personalidade e os danos morais. A experiência brasileira até o novo Código Civil Os direitos de personalidade eram certamente incompatíveis com o pensamento patrimonialista que influenciou o CC16. Como afirma Lobo, o maior jurista brasileiro do século XIX, Teixeira de Freitas, repeliu a idéia de direitos de personalidade, justamente porque não poderiam ser traduzidos em valores pecuniários. Forte influência da Pandectística e personalidade no seu aspecto técnico. Conservadorismo de Clóvis Beviláqua. Influência do Código Napoleônico com uma regra aberta sobre a responsabilidade civil e casos específicos de indenização (a) por calúnia e

4 injúria, (b) pelo agravamento na honra de mulher casada, (c) pelos crimes sexuais e (d) por ofensa à liberdade. O CC16 também fazia referências (a) à imagem, (b) ao sigilo de correspondência, (c) ao direito moral do autor, (d) à cessão do direito de ligar o nome do autor à sua obra. Discussão sobre os direitos de personalidade na doutrina. Década de 50 doutrina considerável a favor da reparação dos danos morais, embora a jurisprudência, especialmente do STF, ainda fosse impermeável à tese. Somente a partir da década de 60 é que se pacificou no STF a possibilidade de reparação dos danos morais A discussão passa a ser se haveria ou não a cumulação com os danos materiais. Constituição de 1988 e dignidade da pessoa humana como princípio paradigmático. Além disso, menciona (a) o direito à imagem (é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano moral, material ou à imagem 5º, V); (b) direito à privacidade e à honra ( são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. (5º, X) e (c) direito ao sigilo de correspondência e comunicação (XII) e (d) propriedade intelectual Na verdade, os seus conceitos principais são o de dignidade e integridade, apresentando os seguintes desdobramentos: (a) o direito à vida, (b) o direito geral à liberdade, (c) o direito à integridade física e psíquica, (d) o direito à honra e à reputação, (e) o direito moral do autor, (f) o direito à identidade pessoal e social, (g) o direito à intimidade e à vida privada, (h) o direito à imagem. Importância do reconhecimento constitucional e legal.

5 As repercussões do direito de personalidade sobre o direito civil brasileiro Constituição de 88 e o novo CC repersonalização do direito privado. Como afirma Paulo Lobo, nos direitos de personalidade a teoria da repersonalização atinge seu ponto máximo. O instituto da personalidade implica o reconhecimento da pessoa como centro e destinatário do direito civil. Tem como conseqüência a necessidade de reconstruir o Direito Civil segundo o valor da pessoa e com uma tutela qualitativamente diversa (Perlingieri). Não existe uma diferença essencial entre o que se chama de direitos humanos e os direitos de personalidade (Gustavo Tepedino). Perlingieri: a Constituição contém uma cláusula geral de tutela da personalidade, não podendo o juiz negá-la a quem peça garantia sobre um aspecto de sua existência que não tenha previsão específica. Doutrina majoritária: direitos de tipicidade aberta, de forma que os tipos previstos na Constituição e nas leis são meramente enunciativos. Independentemente de uma maior reflexão teórica a respeito, um dos desdobramentos da proteção constitucional aos direitos de personalidade foi a ampliação dos danos morais, aspecto que está diretamente associado aos direitos de personalidade. Vale lembrar as seguintes súmulas do STJ: (a) 37 é possível a cumulação entre morais e materiais; (b) 227 a pessoa jurídica pode sofrer danos morais; (c) 281 não recepção da limitação legal para o arbitramento da indenização por danos morais previstas pela Lei de Imprensa. A tutela da personalidade não é exclusividade do direito civil, também ocorrendo nas órbitas administrativa e penal. Necessidade de uma visão de conjunto. É possível a existência de dano moral coletivo?