Título - Afeto: entre o conceito e a experiência psicanalítica



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Transcrição:

MESA REDONDA 3.29 Título - Afeto: entre o conceito e a experiência psicanalítica Participantes: Regina Herzog Fernanda Canavêz de Magalhães Jô Gondar Afeto e subjetividade na experiência analítica Fernanda Canavêz R. Professor Gastão Bahiana, 155/204 Copacabana RJ CEP: 22071-030 Psicóloga. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica UFRJ. Este trabalho pretende revisitar os textos de Freud com vistas a investigar o lugar que o afeto ocupa no pensamento do pai da psicanálise. O objetivo principal é destacar a importância que o conceito de afeto foi ganhando com o desenrolar da elaboração freudiana, chegando a desempenhar papel fundamental na compreensão da subjetividade e na própria experiência analítica. Muito embora desde os textos mais iniciais do pensamento freudiano a noção de afeto já estivesse tematizada (FREUD, 1893-1895), esta figurava como um mal a ser extirpado para se chegar à cura das afecções histéricas. Isso porque a etiologia da histeria apontava para um evento traumático na infância no qual o afeto ficara estrangulado. Assim sendo, o tratamento deveria fazer com que o afeto outrora represado pudesse circular livremente, pois o aprisionamento deste era responsável pelos efeitos nefastos da ocorrência traumática. A recordação do trauma nos limites da experiência analítica concorria para que o afeto pudesse ser adequadamente liberado, chegando-se finalmente à cura da histeria. Destarte, os métodos antecessores da psicanálise propriamente dita tinham como objetivo principal o relaxamento da censura. Esta era a principal responsável pelo represamento afetivo na experiência traumática e se atualizava ao longo do tratamento, concorrendo para que os pacientes tivessem dificuldades ao relatar o ocorrido. Cabia ao médico aspirante à psicanalista a tentativa de superar a censura com vistas a chegar à 1

ab-reação, ou seja, à descarga do afeto desencadeador dos sintomas histéricos. O entendimento das razões pelas quais tal represamento teria se dado ficavam em segundo plano nesta perspectiva clínica, perdendo relevo para a necessidade de se livrar dos afetos insuportáveis. Assim sendo, era preciso lançar mão da hipnose, posto que esta técnica suscitava um estado de segunda consciência do paciente capaz de superar a censura. O fio norteador da clínica era a conjugação da hipnose com o método catártico de Breuer, marcando um avanço em relação aos resultados da técnica da sugestão em voga na época para o tratamento da histeria. Não bastava que o médico sugerisse a cura para as histéricas sob hipnose. Estas portavam um mal engendrado por uma impossibilidade de dar um destino aos seus próprios afetos. Para se chegar à remissão sintomática era necessário que se apropriassem dos afetos, descarregando-os através da fala. Com efeito, esta proposição pode soar paradoxal. Isso porque se o afeto aparece como causa determinante das patologias histéricas, é na fala e, em última instância, na razão que reside a chave para a dominação dos afetos. Monique Schneider (1993) questiona a noção de uma afetividade alienante (p. 11) neste momento do pensamento freudiano. Para a autora, esta perspectiva dos primórdios da psicanálise faz ressoar a tradição filosófica que almejava colocar o afeto sob tutela da razão. Além disso, é como se o traumatismo tomasse o sujeito de assalto, invadido por uma exterioridade para a qual não estava preparado. Trata-se de uma concepção de sujeito atrelada à passividade, de modo que o processo terapêutico não passava de um processo expulsivo: ab-reação, descarga, liquidação (SCHNEIDER, 1993, p. 16). O sujeito era refém da afetividade sem controle e a técnica correlata a esta perspectiva deveria propiciar que as rédeas da razão fossem novamente tomadas. Ainda nesta perspectiva, a consideração do caráter iatrogênico que os afetos poderiam adquirir culminou com o entendimento por parte de Freud de um tipo específico de histeria a histeria de retenção cuja causa precipitante é a retenção do afeto que, em condições normais, seria descarregada (FREUD, 1894). De acordo com esta visada, o estado de saúde pressupõe que o afeto esteja circunscrito a uma espécie de balança energética psíquica, de forma que qualquer descompasso entre a descarga afetiva esperada e aquela que de fato se dava concorreria para a patologia histérica. A noção da histeria de retenção não se sustentou frente à compreensão da defesa como elemento etiológico central de qualquer manifestação histérica, motivo pelo qual se convencionou denominar todos os quadros deste tipo de histeria de defesa. 2

Entretanto, o fato da ênfase da compreensão dos sintomas histéricos ter recaído no mecanismo defensivo não correspondeu à inflexão do curso do afeto nos textos freudianos. Este continuava a despontar como causa determinante da histeria, na medida em que as afecções histéricas repousavam na defesa contra uma idéia que era desagradável ao ego, suscitando um afeto penoso. Vale destacar as implicações para o pensamento freudiano do enfoque dado ao mecanismo defensivo, uma vez que a idéia da defesa contra um afeto desagradável tornou-se tão eminente que levou o pai da psicanálise a romper com seu até então parceiro teórico, Josef Breuer. Com efeito, Freud não se contentou com o método catártico de Breuer, pois ele não dava a devida importância à tentativa de defesa por parte do sujeito contra a revelação do conteúdo traumático e, por conseguinte, contra a descarga do afeto desagradável. A assunção da defesa à cena principal para a compreensão da histeria marca a consideração de um papel mais ativo do sujeito na causação de sua neurose, refutando a concepção de que as histéricas teriam sido violadas por fatores externos para os quais não estavam preparadas. Descortina-se, dessa forma, o véu que ocultava o sujeito dentre as causas determinantes da neurose: para além do paciente vitimizado, a fala dos sujeitos neuróticos revelava uma escolha (FREUD, 1913), exaltando um posicionamento ativo por parte destes no que concernia ao diferentes tipos de sintomas. De maneira correlata, os afetos não mais compareciam como um mal do qual era preciso fugir. Ao contrário, os destinos afetivos constituíam agora o fio de prumo do tratamento analítico, de modo que sem considerá-los qualquer tentativa de compreensão dos sintomas caducaria. É possível afirmar que apenas com as formulações metapsicológicas o afeto ganha um estatuto teórico para a psicanálise. A inclusão do ponto de vista econômico na metapsicologia freudiana tornava explícita a necessidade de contemplar aquilo que escapava ao domínio das representações para o estudo dos fenômenos inconscientes. Aliás, não bastava concentrar esforços para tentar dar conta do que se passava com as representações. Para seguir o rastro pulsional no aparelho psíquico era preciso considerar os seus dois representantes: representação e afeto. Alguns anos de elaboração teórica se passaram desde a decisão de elevar a defesa à categoria principal nos fatores condicionantes da neurose (FREUD, 1893-1895), de maneira que agora já era possível entender o modo como esta se dava. Com efeito, coube ao mecanismo do recalque conjugar os postulados freudianos mais 3

iniciais - que reconheciam na defesa um caminho fértil para elucidação das neuroses com as exigências de uma descrição metapsicológica. Para lançar luz sobre o processo de recalque era necessário seguir os destinos da representação, a qual deveria permanecer afastada da consciência, e do afeto. Ao explicitar o mecanismo do recalque, Freud atribui ao afeto três destinos possíveis, a saber: pode ser suprimido, transformado em uma quota afetiva qualitativamente diferente ou transformado em angústia (FREUD, 1915). Ainda que os destinos de ambos os representantes pulsionais tivessem sido nomeados como importantes, o acontecimento decisivo para o sucesso do mecanismo de recalque é aquele que se passa com o afeto. Isso porque o grande propósito do recalque é proporcionar uma fuga frente ao desprazer, em outros termos, impedir o surgimento de um afeto penoso. Dessa maneira, por mais que a representação tenha sido recalcada, este processo não será considerado bem sucedido caso não impeça o surgimento do desprazer (FREUD, 1915), isto é, caso não permita ao afeto um destino tolerável para a economia psíquica. Assim sendo, assistimos neste momento a uma verdadeira subversão da tradição filosófica que almejava rechaçar o que era tomado como irracional. Ao contrário, era preciso que a dimensão afetiva fosse considerada não como erro, mas como fundamental pelo analista para a compreensão da dinâmica psíquica. Com efeito, a relevância adquirida pela noção de afeto culminou com a postulação do mecanismo do recalcamento. Não só o lugar preeminente ocupado pelo afeto antes entendido apenas como da ordem do erro era agora inquestionável, como também a própria noção de erro e, por conseguinte, de patologia estavam em xeque no pensamento freudiano. Embora Freud tenha se aventurado inicialmente na tentativa de curar em definitivo os males das histéricas, os impasses colecionados em sua empreitada terapêutica indicaram que os sintomas das pacientes diziam muito a respeito da subjetividade das mesmas. Por isso era preciso escutá-las para chegar ao núcleo das neuroses (FREUD, 1893-1895), para entender o processo de recalque que estava por trás de seus mecanismos defensivos. A compreensão do recalque figurava, portanto, como a via de acesso à formação dos sintomas histéricos, posto que precursor destes. Todavia, a participação do conceito de recalque na elaboração freudiana não ficou restrita a este âmbito. Ora, a idéia de um recalque originário insere tal mecanismo na esteira da própria constituição psíquica, concorrendo para a idéia de que algo da 4

ordem de um processo defensivo é condição sine qua non para a fundação do inconsciente e, em última análise, do próprio sujeito. Se mesmo após as formulações supracitadas quiséssemos falar em termos de erro, este não mais poderia se destinar a um grupo de desafortunados neuróticos que ousaram não elaborar devidamente os seus afetos ou foram impedidos de fazê-lo devido a algum tipo de incapacidade, mas seria inerente à condição de sujeito que de saída seria desajustado, falho. Em vez de rechaçar a idéia de erro ou insistir na improvável afetividade alienante (SCHNEIDER, 1993), Freud incorpora o recalque como mecanismo fundante do aparelho psíquico e as vicissitudes do afeto como constitutivas dos distintos mecanismos psíquicos. Agora já é possível correlacionar os três destinos possíveis dos afetos com as diferentes psiconeuroses elencadas por Freud por ocasião do estudo metapsicológico do recalque (FREUD, 1915). Na histeria de angústia o afeto é transformado em angústia, de modo que não é possível afirmar que o recalque obteve êxito. Assim, é preciso que a neurose se estenda até uma segunda fase, na qual uma série de evitações tentarão impedir a liberação de angústia. A histeria de angústia revela uma luta incansável entre a liberação de angústia e a tentativa de silenciá-la, isto é, de dar um destino ao afeto menos custoso para o sujeito. No caso da neurose obsessiva, embora seja possível afirmar um êxito inicial no tocante à evitação do afeto outrora penoso, este retorna logo em seguida de maneira qualitativamente distinta. Finalmente, a histeria de conversão exprime a possibilidade de um desaparecimento total da quota de afeto (FREUD, 1915, p. 179), ainda que nem sempre este processo possa ser considerado bem sucedido. Os distintos tipos de neurose interessam a este trabalho por evidenciarem como os destinos afetivos levados a cabo pelo sujeito são correlatos aos diferentes modos de funcionamento psíquico enunciados por Freud na construção de sua metapsicologia. Na esfera do tratamento, o método da interpretação responsável pela inauguração da psicanálise (FREUD, 1900) indicava que a mera comunicação por parte do analista de um conteúdo inconsciente ao analisando não era suficiente: aquilo que o paciente ouvia era de natureza diferente do que ele experimentava (FREUD, 1915a). Assim sendo, era necessário que o paciente constatasse seus próprios mecanismos defensivos, dando-se conta de seu funcionamento psíquico no desenrolar do tratamento. Fazia-se premente que as intervenções do analista fossem sentidas, proposição que aponta para algo que extrapolava até mesmo o campo da palavra. 5

Com efeito, conferir importância à dimensão afetiva implica em repensar a dinâmica do tratamento. Ora, os métodos que antecederam a técnica psicanalítica indicavam que bastava tomar consciência dos fatores desencadeantes dos sintomas para que estes fossem eliminados (FREUD, 1893-1895). Dito de outra forma, bastava se assenhorar de um mal impingido de fora, racionalizar o indomado, para que o estado de saúde fosse atingido. A metapsicologia freudiana trouxera um sujeito marcado pelo mal-estar, cuja fundação pressupõe o equívoco, a desrazão. Para este sujeito a interpretação do analista se encarregava de apontar os paradoxos, obrigando-o a se haver com seus mal entendidos. Além disso, a experiência analítica não era um campo neutro, posto que nela o analisando é convocado a sentir, a colocar em marcha os seus afetos. Ao contrário, a experiência de uma análise se passa entre sujeitos cujos afetos se fazem notar. Frente à tentadora possibilidade de negativizar os afetos e relegá-los mais uma vez aos recônditos da desrazão alienante, Freud confere um lugar de destaque àquilo que escapa à razão. É assim que o conceito de transferência desponta como paradigmático no tocante à inserção da figura do afeto no pensamento freudiano (FREUD, 1912). A idéia de que a maneira de lidar com os afetos e seus destinos são determinantes para se chegar ao funcionamento psíquico ganha peso ainda mais significativo com a suposição de uma determinada maneira de se conduzir na vida erótica empreendida pelo sujeito, permanentemente reeditada em suas relações (FREUD, 1912). As vicissitudes do afeto dizem muito a respeito do mecanismo psíquico do sujeito, preconizando a modalidade como este investe seus objetos. Esta proposição ecoa na clínica mediante a noção de um investimento pronto por antecipação (FREUD, 1912) que se dirige à figura do analista. Dessa forma, Freud sela em definitivo a importância da dimensão afetiva não só teoricamente, mas, em especial, no âmbito da clínica. Se antes ficava a cargo da abreação esconjurar a alienação afetiva da qual padeciam as histéricas (FREUD, 1893-1895), agora qualquer manejo clínico que não levasse em consideração os afetos em jogo estaria fora do campo psicanalítico. De maneira análoga, o método da interpretação só se revelaria eficaz se tivesse como pano de fundo a relação transferencial estabelecida pelo analisando. Mais uma vez, aquilo que poderia ser tomado como armadilha para os propósitos terapêuticos da psicanálise é incorporado como bússola do método analítico. Frente aos 6

sentimentos dirigidos pelo analisando ao analista não se deve recuar, mas considerá-los até mesmo para que o dispositivo funcione. É assim que Freud chega à conclusão de que muito embora a transferência pudesse servir às resistências, também concorreria para a fluidez do método psicanalítico, à medida que instaurava a confiança no analista facilitando o falar livremente (FREUD, 1912). Conforme antecipado, qualquer intervenção que não considerasse a transferência estaria fora dos parâmetros de uma experiência analítica. É bem verdade que Freud faz uma advertência para a existência do fenômeno da transferência em outras circunstâncias que extrapolam o setting analítico (FREUD, 1912). Entretanto, a peculiaridade da psicanálise consiste em reconhecer as nuances transferenciais e colocálas a serviço do tratamento, de maneira que é possível destacar o manejo da transferência como a marca diferencial da psicanálise dentre os demais métodos terapêuticos. Com efeito, observa-se uma descontinuidade no pensamento freudiano no tocante à figura do afeto: aquele que era tomado como mal que deveria ser extirpado passa agora a engrossar o caldo da cena principal do manejo clínico com o conceito de transferência. O analista, por sua vez, não passa incólume à proposta de tomar os afetos do analisando em consideração no desenrolar da experiência analítica. Ora, trata-se de um sujeito igualmente dividido, cujos afetos são convocados em qualquer relação. Também o analista é passível de reeditar a maneira como investe os seus objetos, mecanismo capaz de colocar em xeque o processo de análise de seu analisando. A resistência figura agora do lado do analista, preconizando uma exigência: enquanto o analisando deve associar livremente, o analista deve escutar livremente, proposta caracterizada como atenção flutuante (FREUD, 1912a). Caso a escuta seja norteada pelas resistências do analista a análise ficaria prejudicada, posto que marcada por uma seleção nociva do material trazido à baila. As reações do analista ao analisando são formalizadas nos termos de uma contratransferência (FREUD, 1915[1914]). É dessa maneira que os afetos do analista são tematizados na teorização do pai da psicanálise. A partir da inserção da contratransferência no repertório conceitual da experiência psicanalítica demanda-se do analista uma postura: ou bem este tenta chegar ao domínio de suas motivações inconscientes e, por conseguinte, de seus investimentos afetivos submetendo-se a uma experiência de análise, ou bem ele as utiliza em nome de sua técnica. Embora a exigência de um percurso de análise por parte do analista não seja desmerecida nos 7

textos freudianos, é desta segunda tomada de posição que Freud não abre mão ao postular a atenção flutuante. A dimensão inconsciente ganha relevância em se tratando do analista, uma vez que o inconsciente de um sujeito reage ao de outro (FREUD, 1915a). Isto significa que ao tentar se aproximar do inconsciente do analisando, o analista deveria dispor de seu próprio inconsciente e não tentar rechaçá-lo, dominando-o. Assim sendo, a comunicação entre inconscientes estaria a serviço da experiência analítica. A partir desta consideração cabe fazer uma ressalva no tocante ao pensamento freudiano. Com efeito, a noção de contratransferência em Freud pode evocar um caráter exclusivamente negativo, pois embora os afetos do analista estejam em jogo, devem ser permanentemente controlados para que não engendrem resistências. Em uma primeira visada mais apressada chega-se a supor que retornamos aos primórdios da psicanálise, momento no qual os afetos não passavam de um vilão a entravar a suposta boa continuidade de uma terapêutica. Todavia, uma outra aposta é possível na medida em que Freud pensa por vezes a experiência analítica norteada pela comunicação entre inconscientes (FREUD, 1915a). De modo análogo, podemos inferir que aquilo que escapa à consciência e, em outros termos, o que escapa à razão, não só não deve ser rechaçado como também pode estar a serviço da técnica analítica. Nesse sentido, para além de uma comunicação entre inconscientes, uma análise revela-se um verdadeiro cruzamento afetivo que se dá entre analisando e analista. 8

Referências Bibliográficas: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974: (1893-1895) Estudos sobre a histeria, vol. II. (1894) As neuropsicoses de defesa, vol. III. (1912) A dinâmica da transferência, vol. XII. (1912a) Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise, vol. XII. (1913) A disposição à neurose obsessiva: uma contribuição ao problema da escolha da neurose, vol. XII. (1915[1914]) Observações sobre o amor transferencial, vol. XII. (1915) Recalque, vol. XIV. (1915a) O inconsciente, vol. XIV. SCHNEIDER, M. Afeto e linguagem nos primeiros escritos de Freud. São Paulo: Escuta, 1993. 9