BIOPOLÍTICA: REFLEXÕES A PARTIR DE GIORGIO AGAMBEN

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BIOPOLÍTICA: REFLEXÕES A PARTIR DE GIORGIO AGAMBEN José Rogério Rigo Fábio César Junges Resumo A presente reflexão nasce das significativas mudanças ocorridas na sociedade nos últimos anos, especialmente enquanto sinais cada vez maiores de consolidação da democracia. Tendo esta realidade como pano de fundo, por meio da contribuição de Giorgio Agamben, o artigo trabalha, acima de tudo, a ambivalência do termo vida no atual contexto político. O conceito vida se configura, de um lado, no objeto privilegiado do Estado, enquanto poder sobre a vida (biopolítica) e, de outro, o lugar de resistência e de superação, enquanto o poder da vida. Para Agamben, a realização genealógica do termo vida revela um conceito filosófico-político-teológico. Palavras-chave: Biopolítica. Vida. Estado de Exceção. Abstract This reflection arises from significant changes in society in recent years, especially as increasing signs of consolidation of democracy. With this reality in the background, through the contribution of Giorgio Agamben, the article, above all the ambivalence of the term in current political life. The concept of life is configured on the one hand, the privileged object of the state while the power of life (biopolitics) and on the other, the place of resistance and resilience, while the power of life. For Agamben, conducting genealogy of the term life reveals a concept of philosophical-theological-political. Keywords: Biopolitics. Life. State of Exception. Introdução A discussão sobre biopolítica é aqui realizada por meio da contribuição do filósofo Giorgio Agamben. Filósofo italiano, Giorgio Agamben é formado em Direito e teve entre seus mestres Martin Heidegger e, também, foi responsável pela tradução em italiano das obras de Walter Benjamin. Também foi professor visitante em várias Universidades Norte-americanas. Contudo, depois do 11 de setembro, com o Pós-graduado em Metodologia Pastoral Especialização. Atualmente professor do Curso de Teologia da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, em convênio com o Instituto Missioneiro de Teologia. E-mail: pe.rigo@hotmail.com Mestre em Teologia (EST); atualmente Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Teologia (EST), com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Contato: fabiocesarjunges@yahoo.com.br

1155 episódio dos atentados terroristas aos EUA, ou melhor dizendo, da resposta do governo Bush a estes acontecimentos, Agamben deixou de lecionar nos Estados Unidos e começou a desenvolver sua obra chamada Homo Sacer. São destacados aqui na introdução estes episódios da vida e estudos de Agamben porque os mesmos serão marcantes na produção de suas obras. Neste artigo, a partir da coleção Homo Sacer, procura-se trabalhar a compreensão de Agamben sobre o Estado de Exceção, o Estado Moderno, a zoé e a bios, que permitem acessar a noção de biopolítica. Para entender o pensamento de Agamben, especialmente na compreensão do atual Estado de Direito, ou melhor, sua teoria sobre Estado de Exceção, é preciso levar em conta o que ele chama de trabalho arqueológico. Ao desenvolver sua teoria sobre o poder soberano, Agamben utiliza uma figura do Direito Romano: Homo Sacer. Já para desenvolver a sua teoria sobre Estado Moderno ele vai buscar suas origens dentro da teologia cristã, especialmente na maneira de compreender ontologicamente a Deus e a sua práxis. Nela o autor encontra uma fratura ou um descompasso, bem como, no atual modelo de Estado. É este caminho que se pretende percorrer. Em busca de assinaturas Na obra O reino e a glória 1, da coleção Homo Sacer, fica explícito seu pensamento para a compreensão do atual Estado Moderno: a secularização atua no sistema conceitual moderno como uma assinatura que o remete à teologia 2. Evidencia-se assim a necessidade primeira de uma arqueologia (Foucault) 3 ou de uma genealogia (Nietzsche) 4 que não busque conceitos, mas assinaturas que transferem e deslocam conceitos e os signos de uma esfera para outra (nesse caso, do sagrado para o profano, e vice-versa), sem redefini-los semanticamente 5. Isto é, 1 2 3 4 5 AGAMBEN, Giorgio. O reino e a glória. São Paulo: Boitempo, 2011b AGAMBEN, 2011b, p. 16. A arqueologia de Foucault procura compreender o enunciado na estreiteza e singularidade de seu acontecimento, a fim de determinar as condições de sua existência, mostrando as outras formas de enunciação que exclui. Cf. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Petrópolis: Vozes, 1972. No que tange aos valores morais, Nietzsche assim descreve a exigência do trabalho genealógico: é necessário um conhecimento das condições e circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais se desenvolveram e modificaram [...] um conhecimento tal como até hoje nunca existiu e nem foi desejado. NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 12. AGAMBEN, 2011b, p. 16.

1156 em continuidade ao pensamento de Carl Schmitt, Agamben entende que a teologia continua presente e atuante no Estado Moderno, isto é, existe uma perfeita identidade de significado entre os conceitos teológicos e os conceitos políticos 6. Os conceitos políticos, portanto, possuem origem teológica. Em O poder soberano e a vida nua, Agamben trata da questão da vida nua ou comum (zoé) e da vida política ou politizada (bios). Esta obra nasce como resposta ao que aconteceu depois do 11 de setembro nos EUA, com a instauração da política de retorno ao Estado de Exceção. Para tal, Agamben vai buscar na cultura grega, especialmente em Platão e em Aristóteles, os conceitos de zoé e bios e evidentemente sua assinatura dentro do processo de trabalho arqueológico. Zoé é a vida natural, regida pelas normas da natureza e dos instintos puramente animais, livre da cultura, da vontade e da liberdade humana. Bios é uma vida baseada na práxis do sujeito e historicamente elaborada 7. Segundo Aristóteles, por uma qualidade própria, que é a linguagem 8, o ser humano passa de zoé a politikòn zôon, isto é, animal político, o que lhe possibilita uma vida política. É a partir desta condição humana, enquanto zoé e politikòn zôon, que Foucault elabora sua teoria da biopolítica: por milênios, o homem permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivente e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal em cuja política está em questão a sua vida de ser vivente 9. Para Aristóteles, o ser humano não ingressa na polis apenas para viver, mas para a vida boa 10 e a finalidade última da existência política é a eumeria, o belo dia. A polis, portanto é uma criação racional do ser humano com a única finalidade de proporcionar o bem viver. O belo dia, porém, jamais se realizou e o motivo do fracasso, segundo Agamben, é a natureza do poder soberano. Na interpretação de Arendt, A vida boa, como Aristóteles qualificava a vida do cidadão, era, portanto, não apenas melhor, mais livre de cuidados ou mais nobre que a vida ordinária, mas possuía qualidade inteiramente diferente. Era boa exatamente porque, tendo dominado as necessidades do mero viver, tendose libertado do labor e do trabalho, e tendo superado o anseio inato de 6 AGAMBEN, 2011b, p. 16. 7 AGAMBEN, Giorgio. O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Humanitas, 2010, p. 9. 8 ARISTÓTELES. Política. Lisboa: Vega, 1998, p. 55. 9 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. São Paulo: Graal, 2005, p. 134. 10 ARISTÓTELES, 1998, p. 217.

1157 sobrevivência comum a todas as criaturas vivas, deixava de ser limitada ao processo biológico da vida. 11 Partindo de Foucault e Hannah Arendt, Agamben situa seu trabalho como pesquisa que quer desvendar um ponto oculto entre o modelo jurídico institucional e o modelo biopolítico do poder. É importante salientar que, na compreensão de Agamben, a teoria biopolítica de Foucault converge com o que Hannah Arendt desenvolveu em A condição humana 12. Conforme Agamben, o que esta pesquisa registra é que entre as probabilidades de resultados, é precisamente que as duas análises não podem ser separadas e que a implicação da vida nua na esfera política constitui o núcleo originário ainda que encoberto do poder soberano. Pode-se dizer, aliás, que a produção de um corpo biopolítico seja a contribuição original do poder soberano. A biopolítica é neste sentido, pelo menos, tão antiga que a exceção soberana. Colocando a vida biológica no centro de seus cálculos, o Estado moderno não faz mais, portanto, do que reconduzir à luz o vínculo secreto que une o poder à vida nua, reatando assim (segundo uma tenaz correspondência entre moderno e arcaico que nos é dado verificar nos âmbitos mais diversos) com o mais imemorial dos arcana imperii. 13 Decorre disso que todo governo é capaz de uma ação de tal ordem que inclua um elemento ditatorial em sua constituição, ou seja, a possibilidade de instaurar todos os tipos de violência a serviço do próprio Direito 14. Neste caso, poder soberano é aquele que decide pelo Estado de Exceção, onde a vida fica nua. O que a arca do poder contém em seu centro é o estado de exceção mas este é um espaço essencialmente vazio, onde uma ação humana sem relação com o direito está diante de uma norma sem relação com a vida 15. No atual contexto de globalização, isto é, o atual mundo regido por uma única ordem econômica, política, policial e militar, num mundo sem fronteiras, surgem figuras novas que acabam ficando à margem do direito e da sociedade, reatualizando os campos de concentração da Alemanha Nazista. Existem hoje inúmeros campos de refugiados, campos de concentração onde estão suspeitos de terrorismo. Há uma soberania mundial que atua suspendendo uma ordem jurídica internacional, criando não sujeitos, extirpados de sua cidadania. O Estado de Exceção se apresenta como a forma legal daquilo que não pode ter forma legal. Nas 11 ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 46. 12 ARENDT, 2007, 352p. 13 AGAMBEN, 2010, p. 14. 14 AGAMBEN, 2010, p. 37ss. 15 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2011a, p. 131.

1158 palavras de Benjamin, que muito influenciou Agamben, a tradição dos oprimidos nos encina que o estado de exceção em que vivemos é na verdade a regra geral 16. O significado biopolítico do Estado de Exceção é que ele pode suspender os direitos dos cidadãos, produzindo um ser inominável e inclassificável, que Agamben encontra sua assinatura no Homo Sacer do Direito Romano. O Homo Sacer é aquele que, tendo cometido um crime hediondo, não pode ser sacrificado segundo os ritos de punição. Ele se tornou matável, mas ao mesmo tempo insacrificável. Ele questiona a moral tradicional e nos leva a pensar como lidamos com a ação política. 17 Dentro deste contexto surge a seguinte aporia: quando o estado viola as liberdades fundamentais e direitos constitucionais, a resistência à opressão é um direito e um dever do cidadão? Se a resistência se tornasse um direito ou um dever a constituição acabaria como um valor intangível e totalizante e as escolhas dos cidadãos seriam normatizadas. Então, para Agamben, o que realmente está em jogo é o problema do significado jurídico de uma esfera de ação em si extrajurídica. Ou o direito coincide com a norma ou o direito excede a norma. Para Agamben, a questão do Estado de Exceção não é exterior ou interior ao ordenamento jurídico, mas está situado numa zona de indiferença em que dentro e fora não se excluem, mas se indeterminam e, portanto, colocando em questão o ordenamento do próprio limite jurídico. O autor apresenta a teoria da necessidade como teoria de exceção, que escapa à obrigação da observância da lei. A necessidade não tem lei, ou seja, não reconhece nenhuma lei ou cria sua própria lei. Então a necessidade tornaria lícito o que é ilícito e agiria como justificativa para uma transgressão por meio de uma exceção. 18 A necessidade constitui o fundamento e a própria fonte da lei e, portanto, o Estado de Exceção, enquanto figura da necessidade, é uma medida ilegal, mas perfeitamente jurídica e constitucional, que se concretiza na criação de novas normas. A tentativa de resolver o Estado de Exceção pela teoria da necessidade se 16 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 226. 17 AGAMBEN, 2010, p. 74-75. 18 AGAMBEN, 2010, p. 22ss.

1159 choca, com as aporias que o fenômeno tenta explicar. Aquilo que a necessidade decide é na verdade algo que não se pode decidir de fato e de direito. Política e biopolítica O fundamento de todo projeto de Agamben está na compreensão de que a política hodierna é biopolítica. Para tal, Agamben, percorre o pensamento de Foucault, que cunhou tal termo, para justificar que a consolidação do poder atualmente se chama administração dos corpos e de gestão calculista da vida. Foucault, no entanto, enraizou suas pesquisas nos hospícios e prisões, enquanto espaços privilegiados de operação de uma racionalização da vida que se invertia em dispositivo de dominação. Sua pesquisa, infelizmente, não chegou aos porões dos campos de concentração, onde se apresenta como local por excelência da biopolítica moderna: a política dos grandes Estados totalitários do Novecentos 19. Por outro lado, o autor conta com as reflexões de Hannah Arendt que, no pós II Guerra, percebe com clareza o nexo entre domínio totalitário e aquela particular condição de vida que é o campo 20, mas não consegue perceber que o processo é de maneira inverso e que precisamente a radical transformação da política em espaço da vida nua (ou seja, em campo) legitimou e tornou necessário o domínio total 21. Conclui, portanto, que somente porque a política se tornou biopolítica que ela assumiu seu rosto até então desconhecido de política totalitária. A conclusão a que chega Agamben está no fato que tal transformação da vida humana em objeto do poder soberano a reduziu à condição de vida puramente biológica, pronta para ser manipulada pelos dispositivos ordenadores do poder, isto é, em vida nua. As estruturas do biopoder mostram como a vida nua vai de maneira progressiva coincidir com o espaço político, sendo a figura hegemônica que aparece no interior do espaço político, como nas políticas de castração dos direitos humanos, em que os sujeitos são jogados em situação de não-sujeitos, em zonas de anomia. 19 AGAMBEN, 2010, p. 116. 20 AGAMBEN, 2010, p. 117. 21 AGAMBEN, 2010, p. 117.

1160 Toda reflexão de Agamben seria sem sentido se não remetesse à análise da atual configuração jurídica que fizemos inicialmente, pois o problema está em entender qual a estrutura jurídica que é capaz de legitimar um poder que transforma e reduz a vida em vida nua, simplesmente biológica. O Estado de Exceção é o paradigma destas estruturas jurídicas que normatizam o campo da política e da ação social. As democracias ocidentais possuem um motor invisível que, na reflexão de Agamben, é a teoria do Estado de Exceção ou os seus dispositivos jurídicos constitucionais, que faz que, de maneira legal, a lei seja suspensa. Nesta contrapartida jurídica, acaba transformando política em uma zona de anomia, e o sujeito passa a não ser mais sujeito político e vive simplesmente como vida nua. Se a sociedade civil nasce do consenso entre os seres humanos, formando um poder soberano para ordenar o caos através do instituto jurídico consitucional e este também têm o poder de anular este mesmo instituto através do Estado de Exceção, as democracias modernas não se diferenciam do totalitarismo. O soberano, que legisla sobre o caos, é o que também decide sobre a normalidade ou não da sociedade; ele está em uma posição paradoxal, tanto dentro como fora do ordenamento jurídico. Ele também tem o poder de exclusão e inclusão, quando capta a vida e lhe dá existência política. Mas o ser humano ao ingressar na polis se exclui do existir biológico, num processo inclusivo-exclusivo. Já o poder soberano tem o poder de excluir a vigência do direito e, como consequência, o direito é incluído pela sua exclusão. Conclui-se, portanto, que a prática moderna da democracia em nada se difere da prática totalitarista. 22 Conclusão Portanto, assim como a vida do Homo Sacer é sacra, também toda vida humana pelo ordenamento jurídico é sagrada, sendo este o primeiro direito humano, o direito à vida. Mas esse mesmo ordenamento jurídico decide pela maneira como a vida deve ser vivida. Decide seu início e também seu fim. Decide até a maneira que deve ser exercida sua sexualidade. O ordenamento jurídico capta a vida de maneira que a torna insacrificável, mas matável. 22 AGAMBEN, 2010, p. 21-36.

1161 Enquanto não houver discernimento entre violência e lei, vida e lei, natureza e cultura e também entre o direito e o Estado de Exceção não poderemos chegar a viver a eumeria, o belo dia, prenunciado por Aristóteles como fim da comunidade política. Em última instância, o soberano decide sobre a vida, jogando-a na condição Homo Sacer, se necessário for, para sua lógica. Na condição de Homo Sacer, enquanto biopolítica para Foucault e tanatopolítica para Agamben, o soberano tem o poder de decidir sobre quem deve viver ou não, em decidir qual vida merece ser vivida 23. Referências AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2011a.. O poder soberano e a vida nua. 2. ed. Belo Horizonte: Humanitas, 2010.. O reino e a glória. São Paulo: Boitempo, 2011b. ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. ARISTÓTELES. Política. Trad. Antônio Campelo Amaral e Carlos de Carvalho Gomes. Lisboa: Vega, 1998. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. Petrópolis: Vozes, 1972.. História da sexualidade I: a vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 16. ed. São Paulo: Graal, 2005. NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. Paulo Césr de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 23 AGAMBEN, 2010, p. 132ss.