Entre o barro e o siriri: um estudo sobre o papel da mulher na cultura popular de São Gonçalo Beira Rio em Cuiabá-MT. Introdução

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Transcrição:

Gênero, feminismo e cultura popular. ST 56 Sônia Regina Romancini UFMT Palavras-chave: Revista de estudos feministas mercado editorial - representações Entre o barro e o siriri: um estudo sobre o papel da mulher na cultura popular de São Gonçalo Beira Rio em Cuiabá-MT Introdução O presente estudo tem como objeto central discutir o papel das mulheres nas relações entre espaço e cultura através de sua participação na produção da cerâmica artesanal e na dança do siriri na comunidade de São Gonçalo Beira Rio, fundada no século XVIII, às margens do rio Cuiabá. O siriri é uma dança de pares cuja origem é atribuída às danças indígenas. O ritmo alegre e movimentado é obtido através de uma ou mais violas de cocho, do ganzá e do mocho i. As duas coreografias básicas do siriri são a roda e a fileira. Os pares dançam batendo palmas e cantando. Ao ritmo forte e rápido da música, os dançarinos parecem não se cansar, dançando por toda a noite. Segundo Baptistella (1997), o nome siriri é atribuído a uma formiga voadora. Provavelmente, devido ao ritmo e aos movimentos rápidos, ágeis e leves desta dança atribuíram-lhe este nome. As letras da dança do siriri são alegres e expressam a vida cotidiana, os amores, a natureza e a devoção aos santos, entre outros temas. A pesquisa foi desenvolvida através de uma abordagem qualitativa, a qual, segundo García Ballesteros (1998), não começa com um conjunto de hipóteses a serem verificadas, porém, com uma aproximação ao lugar de estudo, levantando uma série de problemas e reflexões sobre ele. Entre os procedimentos adotados destaca-se o levantamento bibliográfico, a realização de entrevistas às artesãs e dançarinas de siriri e o registro fotográfico ii. O trabalho foi pautado nas reflexões sobre culturas populares apresentadas por Cuche (2002), segundo o qual as culturas populares revelam-se nem inteiramente dependentes, nem inteiramente autônomas em relação à cultura das elites, nem pura imitação, nem pura criação. Assim, elas confirmam que toda cultura particular é uma reunião de elementos originais e de

elementos importados, de invenções próprias e de empréstimos. Como qualquer cultura elas não são homogêneas sem ser, por esta razão, incoerentes. Sob esse prisma, Cuche (op. cit., p. 149) define as culturas populares como culturas de grupos sociais subalternos, bem como destaca que elas são construídas então em uma situação de dominação. O autor destaca que as culturas populares revelam o esforço de resistência das classes populares à dominação cultural. No contexto da cultura popular, na capital de Mato Grosso, destaca-se a participação da mulher que é ceramista, que dança e organiza as festas da comunidade, contribuindo para a perpetuação das manifestações culturais como a dança do siriri. Essa abordagem, que coloca a mulher como sujeito social e os temas relacionados ao gênero como objeto de estudo da Geografia, fundamenta-se nas reflexões de McDowell, citada por Silva (2005), que destaca que o estudo da mulher foi uma decisão política e uma estratégia de tornar seu trabalho visível na pesquisa geográfica. O papel feminino: vida e arte às margens do Cuiabá Entre os arraiais pioneiros de Cuiabá destaca-se a comunidade São Gonçalo Beira Rio, no século XVIII, localizada à margem esquerda do rio Cuiabá, a 11 quilômetros do centro principal da cidade, próxima à barra do rio Coxipó, no Distrito do Coxipó da Ponte. Sua população é de aproximadamente 300 moradores, distribuídos em 70 famílias, que têm entre si algum grau de parentesco. A história urbana de Mato Grosso tem seu início em 1719, com a bandeira de Pascoal Moreira Cabral que, à procura de índios destinados ao cativeiro, acabou encontrando ouro no rio Coxipó, onde fundou o Arraial da Forquilha, no atual distrito do Coxipó do Ouro. Para assegurar o direito de posse da área, foi lavrada uma ata de fundação, no dia 8 de abril do mesmo ano, na localidade denominada São Gonçalo Velho, atualmente São Gonçalo Beira Rio. Nesse período, São Gonçalo detinha o porto que permitia a comunicação entre as minas e a Capitania. Nessa comunidade, próximo à barra do rio Coxipó, foi erigida uma capela dedicada a São Gonçalo. A presença dos índios Coxiponé ficou refletida nos traços dos moradores de São Gonçalo, nas rimas e músicas, na cerâmica, na pesca, no uso de plantas medicinais, na canoa feita de um tronco de árvore, na benzedeira, nas danças, dentre outras práticas culturais que evidenciam a importância do papel desempenhado pelas mulheres. Em 1914, era montada nas proximidades do povoado, na margem direita do rio Cuiabá, a Usina de São Gonçalo, com produção de açúcar e álcool. Foi ela a responsável pelo

crescimento do pequeno núcleo onde os lavradores plantavam canaviais, cujo produto vendiam aos usineiros para o consumo dos engenhos. A decadência da produção açucareira de Mato Grosso na década de 1930, aliada à argila abundante acumulada nas margens do rio Cuiabá e nas várzeas, propiciou que o artesanato de cerâmica se tornasse o meio de vida de grande parte da comunidade. A cerâmica é feita principalmente pelas mulheres. Em algumas casas, os homens preparam o barro, ajudam a dar o acabamento, enfornam e queimam as peças. As crianças fazem peças pequenas, que aprendem no convívio familiar. As principais peças produzidas eram as moringas, potes, talhas, vasos e panelas. A partir da década de 1960, além da cerâmica utilitária, os artesãos passam a produzir peças ornamentais como figuras de aves e animais, damas, santos, presépios, banda de músicos, moringas-bonecas, talhas e vasos ornamentados. Segundo a historiadora Therezinha Arruda, que realizou estudos na comunidade na década de 1970, se as formas se modificam ou se surgem outras em função de novos hábitos do consumidor, a tradição artesanal permanece intacta (Arruda, apud Romancini, 1994, p. 30). Essas mudanças ocorreram face ao avanço da sociedade de consumo que influenciou os hábitos da população cuiabana. No final da década de 1960 a comunidade foi incorporada à área urbana de Cuiabá, quando os técnicos da prefeitura promoveram a alteração de sua denominação de São Gonçalo Velho para bairro São Gonçalo Beira Rio. Neste período, diversas chácaras no entorno de São Gonçalo foram loteadas dando origem a novos bairros. Ao final da década de 1990, verifica-se uma preocupação, por parte do poder público e da sociedade civil, de revalorizar o patrimônio cultural construído em tempos passados, conforme análise realizada por Abreu (1998, p. 7), o passado é uma das dimensões mais importantes da singularidade. Materializado na paisagem, preservado em instituições de memória, ou ainda vivo na cultura e no cotidiano dos lugares... Abreu (op. cit.) ressalta que, na busca da memória urbana no Brasil, o passado está sendo revalorizado. Como exemplo dessa preocupação, pode-se citar o tombamento municipal, em dezembro de 1992, que declarou o bairro de São Gonçalo como área prioritária para o estímulo à produção e à comercialização da cerâmica artesanal, como uma das mais antigas e tradicionais manifestações culturais do município de Cuiabá, e a festa de São Gonçalo como manifestação popular de interesse para o patrimônio cultural do município de Cuiabá. Como parte das comemorações da festa de São Gonçalo em janeiro de 2004 foi inaugurado, pelo governo do Estado, o Centro Sócio-Cultural Antonio Lopes. Trata-se de um

espaço adequado para a produção, exposição e comercialização do artesanato produzido pela comunidade, contendo ainda um restaurante regional turístico, que tem por objetivo a inclusão social ao promover a geração de emprego e renda para pessoas da comunidade, notadamente para as mulheres. Nesse contexto, destacam-se como elementos predominantes na paisagem de São Gonçalo os aparatos necessários à produção de cerâmica e da viola de cocho e os grupos organizados que estabelecem as diversas relações na comunidade. Ou seja, em São Gonçalo a ceramista é casada com o pescador, que por sua vez é o artesão e/ou tocador de viola de cocho ou tirador, isto é, pessoa que toca e canta as músicas para a realização das danças de siriri, cururu iii e São Gonçalo. Os(as) filhos(as) e netos(as) integram os grupos de jovens responsáveis pela perpetuação das danças na comunidade. Esse sentimento de pertencimento constitui a essência da comunidade e, no Aglomerado Urbano Cuiabá Várzea Grande, representa o grupo mais significativo em termos de preservação das tradições mato-grossenses. Entre as inúmeras pessoas envolvidas nesse trabalho, destaca-se Domingas Leonor iv, fundadora do grupo folclórico Flor Ribeirinha, conforme se constata em seu depoimento: Só o Flor Ribeirinha tem dez anos de fundação, o Nova Esperança foi eu que fundei, que viveu dezesseis anos, um dos primeiro grupo de Cuiabá foi o Nova Esperança, só que foi acabano devido que foi morrendo as pessoas que era muita pessoa de idade né e aí foi isso, faleceram e aí foi acabando tocador, daí que a gente deu essa retomada de novo pra montar o Flor Ribeirinha. Foram os filhos netos de pessoas que faleceram, porque São Gonçalo é uma família né, então a gente tomô essa iniciativa, eles pediram pra mim, por isso que sou feliz e hoje me sinto uma pessoa, a mulher Domingas realizada, na área da cultura eu tenho trinta e oito anos de cultura do Estado, trabalhando e brigando prá chorá, sorri, tudo pra defendê a cultura, porque eu vivo ela. [...] O grupo Flor Ribeirinha coordena e comanda a comunidade São Gonçalo Beira Rio, num é o presidente de bairro não. Aqui é o grupo Flor Ribeirinha que comanda, eles são a força dessa comunidade eles são o poder da comunidade. Apesar de considerar que há pouco apoio do poder público para o fortalecimento das atividades da comunidade, Domingas v reconhece que a cultura propicia a união da comunidade: [...] Nós tem raízes pra oferecê, nós temos bagage pra mostrar [...] Aqui que começô Cuiabá, então a pessoa tem que respeitá é raízes ribeirinha [...] porque ela é um fruto desta terra, ela é o fruto da cultura que brotô uma nova flor, um botão e saiu esta flor que é o Flor Ribeirinha, então por isso que é os grupos outros que tem que respeitá nós, porque nós temos ceramista, pescador, nós temos o índio, nós tem tudo aqui dentro porque aqui que começô Cuiabá, aqui é o alicerce, quer queira quer num queira nós tem tudo de cultura bonito para oferecer pro povo, turista, temos sangue

aqui dos mais pequinininho, aqui tem o Ítalo que tem sete anos, até na viola de cocho o guri sabe batê cururu, siriri, rasqueado, a dança de São Gonçalo. Joga o tambori na mão dele, o guri sabe tocá, então tá no sangue. É por isso que eu gostaria de frisá, tem que respeitá o Flor Ribeirinha, nós não somos melhores não, é porque nós trabalhamos, trabalhamos com amor, com vida, eu dô minha vida por meu grupo, porque eu trabalho só, num tenho ajuda de ninguém, nem patrocínio de ninguém, falam: - a Domingas recebeu patrocínio [...] Patrocínio sim de Deus, lá de cima e senhor São Gonçalo que dá essa força pra gente. Castells entende por identidade o processo de construção de significado com base em um atributo cultural ou um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual(ais) prevalece(m) sobre outras fontes de significados. Segundo o autor (CASTELLS, 2002, p. 23): A construção de identidades vale-se da matéria-prima fornecida pela história, geografia, biologia, instituições produtivas e reprodutivas, pela memória coletiva e por fantasias pessoais, pelos aparatos de poder e revelações de cunho religioso. Porém, todos esses materiais são processados pelos indivíduos, grupos sociais e sociedades, que reorganizam seu significado em função de tendências sociais e projetos culturais enraizados em sua estrutura social, bem como em sua visão de tempo/espaço. De acordo com os depoimentos das ceramistas e da agente cultural, verifica-se que a cerâmica artesanal e a organização das danças, como o siriri, constituem os traços principais da identidade da comunidade, um patrimônio que revela sua história, sua cultura e memória. Sob esse prisma, a identificação com o lugar se traduz tanto para o indivíduo como para o grupo, por um sentimento de pertencimento comum, de partilha e de coesão sociais, segundo a afirmativa de Bossé (2004, p. 161). Considerações finais A comunidade São Gonçalo Beira Rio representa um grupo participativo, coeso nas lutas por seus direitos e que mantém a sua identidade cultural, revelando seu fortalecimento e orgulho pela riqueza da produção material e simbólica que soube preservar. Embora outros bairros da cidade atraiam a mão-de-obra dos jovens de São Gonçalo, muitos permanecem na comunidade dedicando-se ao artesanato da cerâmica e da viola de cocho, integrando os grupos de cururu e siriri e as rodas de São Gonçalo. Nesse contexto, ganha importância o papel feminino que se expressa nas dezenas de ceramistas e na força da agente cultural Domingas Leonor, que é responsável pela criação, orientação e destaque do grupo de danças Flor Ribeirinha.

Referências bibliográficas ABREU, Maurício de A. Sobre a memória das cidades. Território, Rio de Janeiro: LAGET, ano III, n.4, p. 4-26, jan./jun. 1998. BAPTISTELLA, Rosana. Danças populares de Mato Grosso. Cuiabá, Secretaria de Cultura, 1997. BOSSÉ, Mathias Le. As questões de identidade em geografia cultural algumas concepções contemporâneas. In: CORRÊA, Roberto L.; ROSENDAHL, Zeny. Paisagens, textos e identidade (orgs.). Rio de Janeiro: EdUERJ, 2004. 179 p. p. 157-179. CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. Tradução Klauss Brandini Gerhardt. São Paulo: Paz e Terra, 2002. 530 p. CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Tradução de Viviane Ribeiro. 2. ed. Bauru: EDUSC, 2002. GARCÍA BALLESTEROS, Aurora (coord.) Métodos y técnicas cualitativas en geografía social. Barcelona: oikos-tau, 1998. IPHAN. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Programa Nacional do Patrimônio Imaterial http://www.iphan.gov.br. Acesso em 28 de abril de 2005. ROMANCINI, Sônia Regina. Educação Ambiental - Cultura Popular. 50 p. (Monografia de especialização) Cuiabá: IE, UFMT, 1994. SILVA, Joseli Maria. Análise do espaço sob a perspectiva do gênero: um desafio para a geografia cultural brasileira. In: ROSENDAHL, Zeny; CORRÊA, Roberto L. (orgs.) Geografia: temas sobre cultura e espaço. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2005, p. 173-189.

i A viola de cocho é típica do Estado de Mato Grosso, fabricada artesanalmente a partir de um tronco de madeira inteiriça, esculpida no formato de uma viola. No cocho, são fixados o tampo e as demais partes que compõem a viola de cocho: cavalete, pestana, encordoamento e os pontos de barbante. Acompanha a viola de cocho, o ganzá, um instrumento de percussão feito de taquara e trabalhado ainda verde, percutido com um pedaço de osso ou ferro, e o mocho, também conhecido como tamborete ou tamborim, que é um banco de madeira com assento de couro cru, percutido com duas baquetas de madeira. Como a viola de cocho representa um patrimônio cultural para os habitantes do Pantanal Mato-grossense e das cidades do seu entorno, em decisão proferida na 45ª Reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, realizada em 1º de dezembro de 2004, o Modo de Fazer Viola-de-Cocho foi inscrito no Livro de Registro dos Saberes, com a devida menção ao complexo musical, coreográfico e poético do siriri e do cururu, em 10 de dezembro de 2004 (IPHAN, 2005). ii Texto elaborado a partir dos resultados do projeto de pesquisa Espaço e manifestações culturais na região de Cuiabá, desenvolvido com o apoio da PROPEQ UFMT/CNPq, no período de julho de 2003 a julho de 2005. iii O cururu é uma dança dos homens que, em roda, numa sala ou ar livre, cantam ao som de violas de cocho e ganzás, versos em homenagem ao(à) santo(a) festejado(a). iv Entrevista concedida à bolsista de iniciação científica Paula Alexandra Soares da Silva, em 5 de junho de 2004. v Idem.