A heresia na Legenda Áurea (c ) Jacopo de Varazze: autor ou compilador? Arcaico ou moderno?

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A heresia na Legenda Áurea (c.1270-1298) João Guilherme Lisbôa Rangel 1 * Escrita na segunda metade do século XIII pelo Dominicano Jacopo de Varazze, a Legenda Áurea, cada vez mais desperta o interesse dos pesquisadores (TEIXEIRA, 2014:7-12). Apenas no Brasil, onde pode-se dizer que os estudos medievais têm uma tradição recente, já foram produzidas 5 dissertações de mestrado e 2 teses de doutorado tendo a obra como objeto de estudo. Neste texto, pretendemos demonstrar a relevância da temática da heresia para compreensão da obra. Para tanto discutiremos brevemente alguns temas cujo caráter problemático os torna incontornáveis em qualquer abordagem da Legenda Áurea. Estes são: a autoria da fonte, seu caráter arcaico, sua datação e público alvo. Jacopo de Varazze: autor ou compilador? Arcaico ou moderno? Durante muito tempo, Jacopo foi tratado como compilador. Jacques Le Goff, que dedicou uma de suas últimas publicações à Legenda Áurea, aponta que o trabalho dos bolandistas foi um empecilho para a compreensão do caráter autoral da obra de Jacopo de Varazze(LE GOFF, 2014). Essa concepção vem sendo questionada, desde a década de 80 do século XX. Alain Boureau, ao publicar sua tese em 1984, apesar de tratar Jacopo como compilador, finaliza seu trabalho abrindo espaço para tirar o dominicano desta condição (BOUREAU, 1984: 255). Depois dele, autores como Le Goff (LE GOFF, 2014), Barbara Fleith (FLEITH, 2001:41-74), Pascal Collomb(COLLOMB, 2001: 97-122) e, no Brasil, Neri de Barros Almeida(SOUZA, 1998) corroboraram a tese de que Jacopo não pode ser tratado como compilador, mas como autor. Os argumentos são os mais variados, contudo, para simplificar a discussão, ressaltamos as proposições de Almeida que afirma que mesmo tendo copiado trechos inteiros de outras obras, ao recortálos, juntá-los a outros materiais e reuni-los em um conjunto dota de um sentido específico (per circulumanni) o material foi ressignificado, sendo este sentido um produto autoral. 1 * Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Bolsista da CAPES. 1

Alain Boureau, apesar de ter aberto caminho para repensar a atuação de Jacopo na composição da Legenda Áurea, considerou-a uma obra arcaica em função da atenção aos milagres e aos casos de martírio presente (BOUREAU, 1984: 8). Para o autor, Jacopo de Varazze tinha uma mentalidade conservadora (IBIDEM: 39). Neri de Almeida, ao defender sua tese de doutorado em 1998 concordou com o caráter arcaico da obra, ressaltando que este último aparecia de forma surpreendente na fonte(souza, 1998:45). Jacques Le Goff (LE GOFF, 1984: 1-7) e André Vauchez (VAUCHEZ, 1986: 27-56) a época de Boureau também concordaram com a tese acerca do caráter arcaico. Almeida, no entanto, distinguia o caráter arcaico da matéria da ideia de que a obra de Jacopo de Varazze fosse conservadora, ou seja, ela via no processo autoral uma atualização da matéria antiga baseada na utilização de sentidos tradicionais ainda presentes na cultura do século XIII. No ano de 1999, um congresso, realizado em Genebra sobre a Legenda Áurea, foi muito importante para a mudança na convicção dos pesquisadores sobre o arcaísmo da fonte que passam então a explorar seu aspecto inovador. Ao abordar a narrativa de Jacopo Varazze sobre a Assunção da Virgem Maria (FLEITH, 2001:41-74), Barbara Fleith destaca que o mesmo não pode ser visto como compilador dependente da tradição, porque, ao construir a sua narrativa, o dominicano transcreveu em seu texto as homilias de são Cosme e são João Damasceno, sendo o único frade da ordem a fazer tal inserção. Desse modo, embora se baseassem em fontes semelhantes, os dominicanos utilizavamnas de formas independentes. Neste mesmo congresso, Pascal Collomb ao se debruçar sobre o capítulo da Circuncisão do Senhor, o autor observou que ao mencionar a festa em honra a Maria, Jacopo de Varazze, trata o assunto como algo passado, enquanto todas as suas fontes o colocavam como atual. Segundo o autor, o dominicano está atento a outra fonte como um livro diocesano do século XII que apontava para o abandono do culto a Marial na data da comemoração da Circuncisão. Sendo assim, ao mesmo tempo em que existe uma tradição incontestável, também existe a vontade indiscutível de Jacopo construir, em alguns momentos, coisas originais. E isso aparece com sua preocupação de confrontar seus conhecimentos tradicionais com a realidade litúrgica da diocese (COLLOMB, 2001: 99-122). 2

Em 2007, Igor Salomão defendeu sua dissertação, cujo título foi: A encruzilhada das idéias: aproximação entre Legenda Áurea (IacopoVarazze) e a Suma Teológica (Tomás de Aquino) (TEIXEIRA, 2007). Sendo o último considerado moderno e o primeiro arcaico, o autor afirma a possibilidade de aproximá-los, corroborando dessa maneira, a hipótese de que Jacopo Varazze insere-se em seu tempo e que a sua obra faz parte de um contexto complexo no qual classificações e oposições, como, por exemplo, arcaico versus novo, são simplificações anacrônicas para descrever uma sociedade cuja visão de mundo conseguia, muitas vezes, compor o arcaico com o novo, gerando valores que não podem ser explicados através da forma de pensar pós-iluminista. Datação e edições utilizadas Além do problema da unidade autoral e do arcaísmo na Legenda Áurea temos ainda o de sua datação. Escrita na segunda metade do século XIII, a data exata de sua produção é passível de ampla polêmica. A obra teria sido redigida entre 1253 e 1270, para M. Sticco; 1265, para Alain Boureau; entre 1261 e 1266, para B. Dunn-Lardeau; entre 1252 e 1260, para G. Philippart(JUNIOR, 2003: 16). Assim como faz Carolina Fortes, pode-se estabelecer, portanto, a década de 1260 como marca para redação da obra(fortes, 2014). Na edição crítica utilizada nesta pesquisa, Maggioni observou que a Legenda Áurea começou a ser escrita por volta de 1260 e foi modificada até finais de 1290, seja por alterações feitas pelo seu autor, seja pela ação dos copistas,uma vez que o texto já havia se vulgarizado. Sendo assim, ao desenvolver sua pesquisa com base nos 70 manuscritos mais antigos, Maggioni identificou, pelo menos, dois estágios redacionais diferentes, bem como dois testemunhos referentes à última redação e que expressariam a última vontade de Jacopo aparecidos entre 1272-1276 e 1292-1298(MAGGIONI, 1995).Além da edição crítica de Maggioni(VARAZZE, 1998), outras duas edições estão sendo utilizadas, são elas: a edição brasileira traduzida por Hilário Franco Jr(VARAZZE, 3

2003) e a edição mais recente de Alain Boureau traduzida e comentada para o francês(voragine, 2004) 2. Público-alvo e incidências das heresias na fonte Uma reflexão acerca dos destinatários da Legenda Áurea é considerada por Carolina Fortes de relevo fulcral (FORTES, 2014: 34). Tomando como base as proposições de Reames, a autora afirma que os primeiros leitores pretendidos por Jacopo de Varazze eram os membros do clero, sobretudo, a ordem dos pregadores. Dentre os argumentos para corroborar esta tese encontram-se: a fonte foi escrita em latim e várias legendas trazem elementos específicos da liturgia(ibidem: 34). Esta afirmação, no entanto, não deve induzir ao erro de pensar que Jacopo não valorizada a audiência dos leigos. As ênfases nos milagres na Legenda Áurea são indícios da intenção de alcançar essa audiência. Os muitos milagres, bem como a presença majoritária de santos mártires na fonte, representou para Alain Boureau, um dos motivos para estuda-la. Segundo o autor, Jacopo de Varazze ignora a enorme quantidade de santos aparecidos entre 993 e 1255(BOUREAU, 1984:39). Das 153 legendas santorais 3, apenas 6 são referentes a santos próximos à sua redação, na realidade, 2 são do século XII e 4 são do século XIII. Além disso, 91 aparecem entregues ao martírio. Para Neri de Almeida, a escolha temporal e temática feita pelo dominicano, tê-lo-ia possibilitado legitimar, em bases históricas, a Ordem dos Pregadores(ALMEIDA, 2014:14-29). 2 A exceção da edição brasileira que contém 175 capítulos, ambas as edições contem 178 capítulos. Isso porque a Legenda Áurea sofreu vários acréscimos com o passar do tempo e das cópias que eram realizadas. Umas das edições mais populares e utilizadas até a década de 1980 de Theodor Graesse contava com mais de 200 capítulos 2. No entanto, tanto Maggioni quanto Boureau, ao prepararem suas edições concordaram com o número de capítulos supracitado, já Hilário Franco Jr. preferiu adotar os capítulos de autoria comprovada de Jacopo. Para a pesquisa, mapeou-se as incidências de heresia na fonte e cotejou suas aparições entre as edições mencionadas. 3 Esta definição foi elaborada por Alain Boureau. Segundo o autor, legendas santorais são legendas referentes à celebração em razão da festa dos santos. Já as legendas temporais são celebrações referentes aos ciclo do cristianismo, tais como: anunciação, natividade, advento, etc. Para maiores informações, cf. Ibidem. p. 32. 4

Para André Miatello, um dos motivos para produção hagiográfica dos dominicanos, foi seu combate às heresias. Ao lado da escrita semonária, as hagiografias convergiam numa mesma direção, ou seja, confirmar o que era exortado pelos sermões (MIATELLO, 2014:118).Os milagres, ao mesmo tempo em que levam à fé, são a própria expressão dessa última. No contexto anti-herético, eles contestam a heresia (por conseguinte, o herege) e contribuem para o convencimento que gera a conversão dos ouvintes heterodoxos. Sendo assim, para o autor supracitado, sermão e hagiografia andam junto porque se relacionam ao combate à heresia. Tanto o primeiro quanto o segundo são instrumentos de convencimento, oportunidade de propor aos ouvintes acontecimentos extraordinários testemunhados por homens reais (IBIDEM: 121). A pesquisa analisou os casos de heresia na Legenda Áurea apontando como a dissidência foi tratada, quando ela aparece e quais os interesses da Ordem dos Pregadores em inseri-la na Legenda Áurea. Dos capítulos da obra de Jacopo de Varazze mapeou-se a ocorrência de termos como: herege, herético, heresiarca, erro, infiel, infiéis, inimigo(os), perseguidores, Impío, que estabelecem relação com a heterodoxia. Desta forma, dos 178 capítulos dedicados aos santos, as heresias aparecem em 38 capítulos, sendo 18 relacionados aos mártires, 17 aos demais santos, 1 ao Advento do Senhor, 1 a Festa de todos os santos e 1 a Consagração do Templo. No caso dos mártires, observouse que o martírio não aparece apenas como defesa da fé de modo geral, mas principalmente em defesa da Igreja e, por conseguinte, de sua ortodoxia. O caso de Tomás de Cantebury, por exemplo, aponta pra isso. Ao narrar a sua legenda afirma-se: Thomas Cantuariensis, dum in curia Regis Anglieconsisteretetquedan ibidem fieri contraria religioniuideret, curiamipsamdeseruit et Cantuariensiarchepiscopo se commisit. A quo archidiaconusfactus, ad preces tamenipsiusepiscopi Regis cancellariamsuscepit ut prudentiaqua erat preditusmalignorum in ecclesiamprohiberetinsultus.(varazze, 1998:125) 4 4 Iacopo da Varazze Legenda Aurea. Ed. G. P. Maggioni, Firenze: Galuzzo, 1998. p.103. Segundo a edição brasileira: Enquanto vivia na corte do rei da Inglaterra, Tomás de Canterburry viu serem cometidas diversas ações contrárias à religião, e retirou-se a fim de se pôr sob a direção do acerbispo de Canteburry, que o nomeou seu arquidiácono. No entanto aceitou o pedido do acerbispo, que o aconselhou a conservar o cargo de chanceler do rei, que exercia com prudência, para continuar a ser um obstáculo ao mal que alguns poderiam fazer à Igreja. Cf. VARAZZE, Jacopo. Legenda Áurea: vidas de Santos. Tradução por Hilário Franco Jr. São Paulo: Cia. das Letras, 2003. p.125 5

Outra observação interessante são as referências ao arianismo. Dentre todas as legendas santorais elencadas na pesquisa em 10 casos a heresia apresentada é a Ariana. Ao narrar a legenda de santo Antônio, Jacopo apresenta um sonho tido pelo santo em que essa heresia destruía a fé católica (VARAZZE, 2003: 171-175), desta maneira, pode-se perceber um indício de como o dominicano encarava a heresia, ou seja, como um mal capaz de destruir a Igreja. Na legenda de São Basílio, esta proposição é confirmada ao narrar a concessão de uma igreja feita pelo imperador Valente aos arianos, retirando os católicos do seu local de adoração (IBIDEM: 192-197). Jacopo de Varazze encerra sua obra com o capítulo dedicado a São Pelágio (IBIDEM: 1003-1024), mas que na verdade constitui-se como uma espécie de síntese da história universal e, principalmente da primazia exercida pela história sagrada sobre a história profana (MULA, 2001:75-95). Mesmo em sua conclusão, a temática da heresia não desaparece, ao contrário, intensifica-se até o século XIII com a única referência feita na obra à cruzada Albigenese. Neste capítulo Jacopo ressalta que é nesse contexto de perseguição às dissidências que sua ordem surge, corroborando definitivamente a importância e relevância da temática da heresia para o estudo da Legenda Áurea. Fontes Iacopo da Varazze Legenda Aurea. Ed. G. P. Maggioni, Firenze: Galuzzo, 1998. VARAZZE, Jacopo. Legenda Áurea. Vidas de Santos. Trad. Hilário Franco Jr. São Paulo: Cia. das Letras, 2003 Bibliografia BOUREAU, Alain. La Légende dorée. Le système narratif de Jacques de Voragine (1298), Paris, Cerf, 1984. COLLOMB, Pascal. Les éléments liturgique de lalégende Dorée: traditions ei innovations. In. FLEITH, Barbara e MORENZONI, Franco (dirs.) De la Santeté e l Hagiographie: Gènese et usage de la Legende doreé. (Actes du colloque lire, écouter 6

et voir la Légende dorré au Moyen Âge, Genève, 12-13 mars, 1999). Genève: Droz, 2001. pp.97-122 FLEITH, Barbara e MORENZONI, Franco (dirs.) De la Santeté e l Hagiographie: Gènese et usage de la Legende doreé. (Actesducolloque lire, écouter et voirlalégendedorréaumoyenâge, Genève, 12-13 mars, 1999). Genève: Droz, 2001 pp.41-74.santa Agnes entre litteratie illitterati. Algumas observações através da história da utilização do legendário de Jacopo de Varazze. in Igor Salomão Teixeira (org.), História e historiografia sobre a hagiografia medieval. Porto Alegre: Oikos, 2014. FORTES, Carolina Coelho. A Legenda Áurea: datação, edições, destinatários e modelos de santidade. in Igor Salomão Teixeira (org.), História e historiografia sobre a hagiografia medieval. Porto Alegre: Oikos, 2014. pp.30-46. JUNIOR, Hilário Franco. Apresentação. In: VARAZZE, Jacopo. Legenda Áurea. Vidas de Santos. Trad. Hilário Franco Jr. São Paulo: Cia. das Letras, 2003. pp.11-26 LE GOFF, Jacques. Em busca do tempo sagrado: Jacques de Voragine e a Legenda aurea. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014 MAGGIONI, Giovani Paolo. Ricerche sulla composizione e sulla transmissione dela Legenda Aurea. Firenze: Sismel-spoleto, 1995. MIATELLO, André L. P. Escrita Hagiográfica Mendicante: pregação e culto cívico. In Igor Salomão Teixeira (org.), História e historiografia sobre a hagiografia medieval. Porto Alegre: Oikos, 2014. pp. 114-139. MULA, Stefano. L histoire de lombards, son rôle e son importance dans lalegenda aurea In. FLEITH, Barbara e MORENZONI, Franco (dirs.) De la Santeté e l Hagiographie: Gènese et usage de la Legende doreé. (Actes du colloque lire, écouter et voir la Légende dorré au Moyen Âge, Genève, 12-13 mars, 1999). Genève: Droz, 2001. pp.75-95. SOUZA, Néri de Almeida. A Cristianização dos mortos: a mensagem evangelizadora da Legenda aurea de Jacopo de Varazze. 1998, 2v., Tese (Doutorado em História) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 1998. TEIXEIRA, Igor Salomão (org.), História e historiografia sobre a hagiografia medieval. Porto Alegre: Oikos, 2014. pp.7-12.. A encruzilhada das idéias: aproximação entre Legenda Áurea(iacopo Varazze) e a Suma Teológica (Tomás de Aquino). Dissertação (Mestrado em História). 7

Porto Alegre: Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2007 VAUCHEZ, André. Jacques de Voragine et les saints du XIIIe siècle dans la Légende dorée. In. DUNN-LARDEAU, Brenda (dir.). Légende dorée : sept siècles de diffusion. Montreal/Paris : Bellarmin/Librairie J. Vrin, 1986, p. 27-56. 8