ONTOLOGIA DO INCONSCIENTE

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Referências bibliográficas

LÓGICA I. André Pontes

Transcrição:

ONTOLOGIA DO INCONSCIENTE Geraldino Alves Ferreira Netto* Resumo: Descoberto o inconsciente recalcado, surge espontaneamente a questão de seu estatuto ontológico. A ontologia sempre foi tema candente na filosofia. Com relação ao inconsciente, a ontologia mereceu pouca atenção de Freud quanto à sua formalização teórica. Com Lacan, a psicanálise alinha-se na corrente existencialista do pensamento, mas apresenta uma questão difícil para a filosofia, enquanto afirma que o inconsciente não tem, propriamente, uma ontologia, visto que se funda numa ética do desejo. Com o neologismo parlêtre, Lacan enlaça a definição do ser do homem à linguagem, à falta, à morte. Palavras-chave: Inconsciente; ontologia; essência; existência; linguagem; desejo; morte. Conceito básico na filosofia, a ontologia é a ciência do ser em si; opõe-se à antropologia, que é a ciência do homem. Praticamente, todo filósofo desenvolve sua ontologia, com pouco consenso entre eles. O próprio Aristóteles sentiu

Geraldino Alves Ferreira Netto 32 dificuldade em definir o ser. De acordo com o Dicionário da Filosofia (Larousse do Brasil, no verbete essência ), para Santo Tomás, a metafísica estuda a essência (a natureza ou as características de um ser), enquanto que a ontologia estuda o fato da existência do ser. A partir daí, os filósofos se agrupam em duas categorias: essencialistas e existencialistas, conforme a primazia que atribuem à essência do ser ou à existência do ente. Para Sartre, a existência precede a essência, e o homem tem de dar à sua vida um sentido, através de um livre engajamento, condenado que está a ser livre, com a consequente angústia metafísica e existencial. Para Hegel, ontologia é o fato da existência que se realiza em todo homem. O termo existencialismo foi criado por Heidegger, apontando para a vida concreta do homem no mundo e na história. Já segundo o Dicionário de Filosofia (Gérard Durozoi e André Roussel, no verbete ser ) é possível que o sentido metafísico do substantivo seja indefinível, na medida em que, como Pascal observava, qualquer definição faz intervir, pelo menos implicitamente, a fórmula é, utilizando no caso, num círculo vicioso, o termo que ela deveria definir. Ainda segundo o Durozoi, para Hegel, o ser é idêntico ao não-ser.

33 Ontologia do inconsciente O brilhante hegelianista Alexandre Kojève, professor de Lacan, destaca na contracapa de seu livro Introdução à leitura de Hegel, a definição hegeliana de Ser (Ser, com maiúscula, é o substantivo, enquanto que, na minúscula, designa o verbo): Manter-se na existência significará, pois, para esse Eu: não ser o que ele é (Ser estático e dado, Ser natural, caráter inato) e ser (isto é, devir) o que ele não é. Esse eu será assim sua própria obra: ele será (no futuro) o que ele se tornou pela negação (no presente) do que ele foi (no passado), sendo essa negação efetuada em vista do que ele se tornará. Mais dedicado à clínica e pouco interessado nestas elucubrações especulativas e filosóficas, Freud acabou criando uma nova ontologia, totalmente subversiva em relação à filosofia. Numa direção existencialista, na qual o que interessa é como o ser humano administra seus desejos inconscientes, Freud não se preocupou em teorizar especificamente a sua ontologia. Mais familiarizado com a filosofia de todos os tempos, coube a Lacan traçar as linhas de uma ontologia do inconsciente, a pedido do filósofo, psicanalista e genro Jacques- -Alain Miller. Encontramos várias referências no Seminário 11, de 1964, sobre Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, em que define o inconsciente pela estrutura

Geraldino Alves Ferreira Netto 34 de uma hiância, de uma falta, falando da função do desejo como falta-a-ser, de tal maneira que possamos dizer que o inconsciente não se presta à ontologia. Então, o inconsciente não é nem ser nem não-ser, mas é algo de não-realizado, o recalcado. E por ser não-realizado, retorna no sonho, no sintoma, no ato falho, como tentativa alucinatória de realização. Mais adiante, Lacan reafirma que o inconsciente é ético, não ôntico. Isto é, temos que reconhecê-lo pelas suas manifestações, desde a experiência inicial com as histéricas, em que algo era contido, rejeitado, marcado pelo engano. É ético, também, porque ele nos compele ao dever de administrar a economia de nossos desejos. É uma ética do desejo, da falta. Mas a ontologia que deu mais tesão em Lacan foi o Cogito de Descartes. Referiu-se a ele em vários textos, mais especificamente em A instância da letra no inconsciente, ou a razão desde Freud (1957). Penso, logo sou não passa de uma tautologia redundante (sou pensante, logo sou). A réplica de Lacan: penso onde não sou, logo sou onde não penso desloca a frase afirmativa imaginária para uma sentença negativa simbólica que denuncia a falta. O sujeito verdadeiro

35 Ontologia do inconsciente é o sujeito do inconsciente, enquanto não pensa, centrado mais na desrazão, incoerência, contradição ou loucura (foliesophie) do que na razão (philosophie). Descartes seria psicanalista se tivesse dito: Penso, logo não sou. Simples, assim. Mais tarde, no Seminário 23, de 1975, intitulado O sinthoma, retomando a pergunta sobre a questão do ser, implícita em sua teoria, Lacan responde com uma simples palavra: parlêtre, traduzida por falasser ou falesser. Mas o neologismo é bem mais rico de sentidos: parler (falar), lettre (letra), être (ser). Designa aquele que é, pelo simples fato de falar, apanágio exclusivo do sujeito humano. A tradução ao português foi ainda mais fundo: falesser (fale, ser!) e (falecer), mostrando a morte como a dimensão última de nossa existência. Como falasseres-falesseres, fala/ dores-falec/entes, incluído o Falo, eu falo, somos definidos como sujeitos desejantes, determinados pela linguagem perante a morte, o Outro absoluto. É a psicanálise reconstruindo aquele ponto faltante na filosofia, o conceito de inconsciente recalcado. Nosso cancioneiro popular é sábio, ao dizer: O homem que diz: sou, não é; porque quem é mesmo, é, não sou. E o fado, especialidade de nossos amados paleontológicos portugueses, digno de um Fernando Pessoa, contextualiza bem o mistério do inconsciente: de mim só me falto eu.

Geraldino Alves Ferreira Netto 36 NOTES * Geraldino Alves Ferreira Netto. Psicanalista, Coordenador do Curso de pós-graduação, lato sensu, de Psicanálise na Cultura, em Campinas, S.P. Tutor do Curso à distância, Fundamentos da Psicanálise. Autor de Wim Wenders, psicanálise e cinema, São Paulo, Ed. Unimarco, 2001 e Doze lições sobre Freud e Lacan, Campinas, Ed. Pontes, 2010. E-mail: geraldinoafn@uol.com.br Site: http://www.psicanaliseemcurso.com.br REFERENCES Durozoi, Gérard e Roussel, André. 1993. Dicionário de Filosofia. Campinas, Papirus. Julia, Didier. 1969. Dicionário da Filosofia. Rio de Janeiro, Larousse do Brasil. Kojève, Alexandre. 2002. Introdução à leitura de Hegel. Rio de Janeiro, Contraponto. Lacan, Jacques. 1998. A instância da letra no inconsciente. In Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.

37 Ontologia do inconsciente Lacan, Jacques. 1979. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Seminário 11. Rio de Janeiro, Zahar. Lacan, Jacques. 2007. O sinthoma. Seminário 23. Rio de Janeiro. Zahar.