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Transcrição:

Nonada: Letras em Revista E-ISSN: 2176-9893 nonada@uniritter.edu.br Laureate International Universities Brasil Milano Surreaux, Luiza O rastro do som em Saussure Nonada: Letras em Revista, vol. 20, núm. 1, mayo-septiembre, 2013, pp. 285-295 Laureate International Universities Porto Alegre, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=512451670015 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe, Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

O rastro do som em Saussure Luiza Milano Surreaux RESUMO O presente artigo tem como objetivo delinear parte do percurso do mestre genebrino Ferdinand de Saussure no que diz respeito ao estudo dos aspectos fônicos da língua. Dando ênfase à noção de significante do signo linguístico, discute-se o peso da materialidade sonora na concepção de signo com objetivo de revisitar as noções de fonema, fonética e fonologia a partir do legado saussuriano da teoria do valor linguístico. PALAVRAS-CHAVE Fonema língua significante valor linguístico RÉSUMÉ La présente étude vise à délimiter une partie du parcours du maître genevois Ferdinand de Saussure concernant l étude des aspects phoniques de la langue. Tout en mettant en évidence la notion de signifié du signe linguistique, nous discutons le poids de la matérialité sonore dans la conception de signe dans l objectif de revisiter les notions de phonème, phonétique et phonologie à partir des apports saussuriens de la théorie de la valeur linguistique. MOT-CLÉS Phonème langue signifié - valeur linguistique Este escrito parte daquilo que costuma ocupar o lugar da evidência nos estudos da linguagem: o aspecto sonoro da língua. Designado como fonologia 1, esse foi um dos principais temas abordados por Ferdinand de Saussure em seu primeiro curso de linguística geral, ministrado de 16 de janeiro a 3 de julho de 1907, na Universidade de Genebra, a saber. Esse curso 2 foi precursor daquilo que viemos postumamente a conhecer como o CLG Curso de Linguística Geral obra que funda a linguística moderna, editada postumamente por Charles Bally e Albert Sechehaye em 1916. 1 Ou fonética fisiológica (Lautphysiologie), conforme aponta Isaac Nicolau Salum, no excelente prefácio à edição brasileira do Curso de Linguística Geral (SAUS- SURE, F. Curso de Lingüística Geral. São Paulo: Cultrix, 1977). 2 Esse foi o primeiro de três cursos ministrados por Saussure sob o título de Curso de Linguística Geral. O segundo curso realizou-se de novembro de 1908 a julho 1909 e o terceiro curso realizou- -se de outubro de 1910 a julho de 1911.

O rastro do som em Saussure O percurso desse texto buscará nas reflexões do mestre genebrino o rastro deixado por suas considerações acerca do aspecto fônico da língua. Em um primeiro momento, buscaremos dar foco à discussão que ronda a materialidade do significante. Após essa reflexão, encaminharemos uma discussão acerca do lugar do estudo da materialidade fônica à luz da teoria do valor. Em nosso percurso tomaremos como corpus parte do legado do mestre genebrino, partindo do clássico livro Curso de Linguística Geral (1916), retomaremos passagens dos Escritos de Linguística Geral, buscaremos trechos do manuscrito Phonétique (1893-1894) e do manuscrito Théorie des sonantes, além de breves referências ao Mémoire sur le système primitif des voyelles dans les langues indo-européenne (1879). Sabe-se que há oscilações, no CLG, quanto ao aspecto material da imagem acústica. Nesse sentido, buscaremos trazer à tona essas oscilações. Em um segundo momento, trataremos das considerações saussurianas sobre o embrião das noções de fonema, fonética e fonologia. Nesse sentido, acompanharemos os estudos de Marchese, pesquisadora curadora dos manuscritos saussurianos sobre fonética. Nossa intenção é auxiliar a contextualizar a consideração dos aspectos fônicos da língua a partir do legado saussuriano. Comecemos, então, dando atenção maior aos aspectos fônicos da língua. Lembramos bem que, ao nos apresentar o signo linguístico, Saussure propõe concebê-lo como uma entidade psíquica de duas faces. Diz isso não sem antes anunciar que o signo linguístico NÃO une uma coisa e uma palavra (ou um nome), mas um conceito e uma imagem acústica. Ao fazer essa ressalva, o mestre nos diz Esta [a imagem acústica] não é o som material, coisa puramente física, mas a impressão (empreinte) psíquica desse som, a representação que dele nos dá o testemunho de nossos sentidos. (SAUSSURE, CLG 3, p. 80). Vemos aqui Saussure nos apontando que o signo linguístico não liga uma coisa a um nome, mas um conceito a uma imagem acústica. 3 As referências feitas ao Curso de Linguística Geral serão feitas apresentando-se o nome do autor (SAUSSURE), seguido da sigla CLG e do número da página correspondente. Trabalhamos com a 8ª edição da Editora Cultrix, São Paulo, 1977. 286 Nonada 20 2013

Luiza Milano Surreaux E, mais do que isso, alerta-nos que não devemos conceber a imagem acústica como o som material, mas como a impressão psíquica desse som, a representação que dele nos dão testemunho nossos sentidos. Uma parada importante aqui se faz necessária para pensarmos o deslocamento terminológico fundamental nesse aspecto fundante da teoria saussuriana: imagem acústica impressão acústica significante. Sendo então o signo linguístico a união de um significado e um significante, e sendo o significante o foco de nossa atenção nesse trabalho, cabe-nos apenas lembrar que o significado é a porção do signo que dá conta do aspecto conceitual, ou, como nos aponta o CLG, na página 133, por ser a contraparte da imagem auditiva, constitui sua (do signo) significação. Obviamente sustentamos a interdependência recíproca entre significado e significante. Trata-se de uma consideração sine qua non da teoria. No entanto, estaremos aqui dedicando maior atenção para a porção de significante do signo, considerando a necessidade que ainda percebemos no campo de tomar o aspecto fônico da língua como condutor e constituinte na transformação de massas amorfas em signos de uma dada língua 4. Considerando, então, os aspectos fônicos da língua, buscaremos discutir aquilo que temos chamado de a dupla face do significante, tal como propomos abaixo: 4 Mais adiante, ao trabalharmos as noções de identidade e unidade, detalharemos essa questão. 1. O significante como representação no sistema; 2. O significante como porção fônica (de natureza auditiva ). Vejamos mais de perto o que seriam cada um desses aspectos que compõem a forma de ser do significante no seio do signo linguístico. 1. O significante como representação no sistema Encontramos no CLG afirmações que nos indicam que o significante Nonada 20 2013 287

O rastro do som em Saussure não é necessariamente material, que sua característica predominante é produzir diferenças no sistema da língua. Apontaremos abaixo três passagens do CLG em que localizamos essa perspectiva. 1.1. O essencial da língua é estranho ao caráter fônico do signo linguístico (SAUSSURE, CLG, p. 14) 1.2.... a fonação, vale dizer, a execução das imagens acústicas, em nada afeta o sistema em si (SAUSSURE, CLG, p. 26) 1.3. Em sua essência, este [o significante linguístico] não é de modo algum fônico (SAUSSURE, CLG, p. 138) Podemos observar, nos recortes acima destacados, a indicação, no texto do CLG, do fato de que, no que diz respeito ao significante, Saussure enfatiza sua preponderância enquanto aspecto contrastivo. Ou seja, a porção material conta muito mais pelo fato de produzir diferenças (e oposições) do que pela materialidade fônica que carrega em si. De forma resumida, a partir das passagens acima podemos dizer que para Saussure, o significante não é o som (ou o aspecto fônico, ou impressão acústica, produzida pelos signos linguísticos). 2. O significante como porção fônica (de natureza auditiva ) Vejamos agora recortes do CLG que nos indicam uma preocupação para com o aspecto material do significante, o que talvez tenha indicado a primeira tentativa de Saussure de nomear essa porção do signo linguístico como imagem acústica. 2.1. O significante, sendo de natureza auditiva,... (SAUSSURE, CLG, p. 84) 288 Nonada 20 2013

Luiza Milano Surreaux 2.2.... mecanismo psico-físico que lhe permite exteriorizar essas combinações (SAUSSURE, CLG, p. 22) 2.3.... transmissão fisiológica da imagem acústica (SAUSSURE, CLG, p. 19) Como podemos observar nos recortes acima destacados, a outra face do significante nos aponta que o significante é fônico. O preenchimento material do aspecto fônico do signo linguístico se dá a partir de um mecanismo psicofísico cuja transmissão fisiológica é de natureza auditiva. Parece não haver dúvidas de que o significante depende se seu aspecto material. Portanto, nesse ponto de vista, o significante é o som. Como, então, resolver esse impasse frente ao caráter duplo do significante? Afinal, o significante é ou não fônico? E será no próprio CLG que buscaremos a indicação de um caminho para tentar desdobrar essa inquietante caracterização dupla do significante linguístico. Saussure nos diz: Quando se trata de uma língua viva, o único método racional consiste em: a) estabelecer o sistema de sons tal como é reconhecido pela observação direta; b) observar o sistema de signos que servem para representar imperfeitamente - os sons. (SAUSSURE, CLG, p. 47) Ainda mais uma vez, deve-se destacar uma passagem do CLG para dar voz ao mestre: O que importa na palavra não é o som em si, mas as diferenças fônicas que permitem distinguir essa palavra de todas as outras, pois são elas que levam a significação. (SAUSSURE, CLG, p. 137) Nonada 20 2013 289

O rastro do som em Saussure Vemos, então, que a garantia de existência de um signo linguístico está no fato de que ele produza diferença e oposição dentro de um sistema. No entanto, para que se possa produzir efeitos contrastivos, precisamos de uma materialidade que carregue e sustente essa diferença. Eis então a função do que estamos a chamar de aspecto fônico no âmbito do significante. É necessário que o significante seja formatado com recorte material para que entre os significantes ou entre significante e significado se possa estabelecer diferenças e oposições. Assim também, como se pode acompanhar nos capítulos introdutórios à Teoria do Valor 5, o signo linguístico necessita ser concebido como uma entidade concreta da língua para que seja passível de produzir identidade: se um signo é o que os outros não são, é necessário buscar uma pista na realidade concreta desse signo para que se possa identificá-lo como pertencente a uma dada língua e opô-lo a todos os demais signos dessa língua. Jakobson, em Seis lições sobre o som e o sentido 6, destaca que foi justamente no aspecto significativo da fonologia o som concebido como significante que os herdeiros de Saussure tiveram razão em investir. Vejamos uma boa forma de encaminhar, então, esse impasse entre o aspecto fônico (material) e o aspecto não-fônico do significante: 5 Capítulo II (As entidades concretas da língua) e capítulo III (Identidades, realidades, valores), da Segunda Parte do Curso de Linguística Geral. 6 O livro Seis lições sobre o som e o sentido é resultado da compilação das aulas ministradas por Roman Jakobson entre 1942-1943, na Escola Livre de Altos Estudos de Nova Iorque. Não vemos muito bem de que serviriam os movimentos fonatórios se a língua não existisse; eles não a constituem, porém, e explicados todos os movimentos do aparelho vocal necessários para produzir cada impressão acústica, em nada se esclareceu o problema da língua. Esta constitui um sistema baseado na oposição psíquica dessas impressões acústica, do mesmo modo que um tapete é uma obra de arte produzida pela oposição visual de fios de cores diferentes; ora, o que importa, para a análise, é o jogo dessas oposições e não os processos pelos quais as cores foram obtidas. (SAUSSURE, CLG, p.43) 290 Nonada 20 2013

Luiza Milano Surreaux Esse recorte do CLG auxilia significativamente na reflexão acerca do papel das unidades fônicas que compõem o sistema da língua. Nesse sentido, começamos a dar passagem à noção de fonema, ainda que embrionária, que é proposta por Saussure. Dentro de cada articulação, as diversas espécies de fonemas se distinguem pelas concomitâncias [...] cuja ausência será um elemento de diferenciação tanto quanto sua presença. (SAUSSURE, CLG, p.56) No capítulo dedicado à fonologia 7, no CLG, encontramos uma bela pista sobre como o mestre genebrino propunha pensarmos a unidade de análise em questão e suas formas de representação: 7 Conforme destacaremos a seguir, o termo fonologia, para Saussure referia-se à fonação ou articulação dos sons. Separados de seus signos gráficos, eles [os sons da língua] apresentam apenas noções vagas, e prefere-se então o apoio, ainda que enganoso, da escrita. Assim, os primeiros linguistas, que nada sabiam da fisiologia dos sons articulados, caíam a todo instante nessas ciladas; desapegar- -se da letra era, para eles, perder o pé; para nós, constitui o primeiro passo rumo à verdade, pois é o estudo dos sons através dos próprios sons que nos proporciona o apoio que buscamos. (SAUSSURE, CLG, p.42) Na terminologia da época de Saussure, diferentemente da atual, distinguia-se a fonética - estudo histórico dos sons -, da fonologia - estudo da fonação ou da articulação dos sons. Sabemos, tanto pela via do CLG, como também através dos Escritos de Linguística Geral (ELG 8 ), da importância dada por Saussure à definição de objeto e método no campo da linguística para que essa viesse a se constituir como ciência de fato. Encontramos em suas reflexões Sobre a Essência Dupla da Linguagem 9 a seguinte afirmação: Todo trabalho do linguista que pretende compreender, metodologicamente, o objeto que estuda, se reduz à operação extremamente difícil e delicada na definição das unidades. (SAUSSURE, ELG, p. 29) 8 As referências feitas aos Escritos de Linguística Geral serão feitas apresentando-se o nome do autor (SAUSSURE), seguido da sigla ELG e do número da página correspondente. 9 O título Da Dupla Essência da Linguagem reúne um grupo (dentre vários outros) de manuscritos encontrados em 1996 e depositados na Biblioteca pública e universitária de Genebra. Esses manuscritos foram organizados e publicados por Simon Bouquet e Rudolf Engler nos Escritos de Linguística Geral (1ª edição francesa Éditions Gallimard 2002 e 1ª edição brasileira Editora Cultrix 2004). Nonada 20 2013 291

O rastro do som em Saussure Então, definir unidades faz parte do empreendimento do linguista ao analisar seu objeto. Vemos que ao mesmo tempo em que se preocupava em definir as unidades com as quais trabalha o linguista, Saussure alertava para o fato de que elas jamais poderiam ser dadas de antemão. É sempre no seio do sistema que a delimitação e função de um elemento podem ser concebidas. Acompanhemos o registro sobre esta interdependência nos ELG: A presença de um som, numa língua, é o que se pode imaginar de mais irredutível como elemento de sua estrutura. É fácil mostrar que presença desse som determinado só tem valor por oposição com outros sons presentes; e é essa primeira aplicação rudimentar, mas já incontestável do princípio das OPOSIÇÕES, ou dos VALORES RECÍPROCOS, ou das QUANTIDADES NEGATIVAS e RELATIVAS 10 que criam um estado de língua. (SAUSSURE, ELG, p. 27) 10 Itálicos e maiúsculas conforme o original. Marchese 11 (2012: 70) realiza uma importante retomada da forma com que Saussure constrói a definição de fonema no manuscrito Phonétique (Saussure, 1995: cahier 3, f. 3v): Fonema: fenômeno fonético oposto ao silêncio Fonemas individuais opostos entre si Fonema como porção representante de tempo por oposição à espécie fonética Fonema por oposição à audição (por oposição à sincronia fisiológica) Fonema por oposição a encadeamento 12 A pesquisadora italiana destacará que as tentativas de definição da noção de fonema são fortemente marcadas por critérios de negatividade, visto que aí já se pode perceber importantes indícios da construção dos princípios da teoria do valor na obra saussuriana. Conforme destaca essa autora, os conceitos de oposição, valor e di- 11 Maria Pia Marchese é uma linguista italiana responsável pela publicação dos manuscritos saussurianos sobre fonética (depositados em Houghton Library, na Harvard University). 12 PHONÈME = phénomène phonétique opposé à SILENCE PHONÈMES individuels opposés entre eux PHONÈME représentant portion de temps par opposition à ESPÈCE PHONÉTIQUE PHONÈME par opposition à AUDITION (par opposition à synchronie physiologique) PHONÈME par opposition à CHAÎNON 292 Nonada 20 2013

Luiza Milano Surreaux ferença, enquadrados em uma perspectiva de negatividade, apontam diretamente para uma célebre passagem do CLG: na língua só existem diferenças (SAUSSURE, CLG, p. 139). Prova disso também encontramos ainda mais explicitada na seguinte passagem: os fonemas são, antes de tudo, entidades opositivas, relativas e negativas (SAUSSURE, CLG, p. 138). Eis aí uma consideração significativa do sistema fônico como organizador da lógica pautada pela teoria do valor, o que, como sabemos, produziu significativos efeitos nos trabalhos vanguardistas do Círculo Linguístico de Praga 13. De forma já um tanto mais elaborada encontraremos a construção teórica acerca dos fonemas e sua dependência recíproca, via teoria do valor, esboçada nos ELG, conforme se pode acompanhar a seguir: Presença de um fonema = sua oposição com os outros fonemas presentes, ou seu valor com relação a eles. Correlação de dois sons (sem significação ) = sua oposição mútua, seu valor, um com relação ao outro. Correlação de dois fonemas com correlação de significações diferentes = sempre simplesmente seu valor recíproco. É aqui que se começa a entrever a identidade da significação e valor 14. (SAUSSURE, ELG, p. 28) 13 Foi no calor das incitantes discussões do Círculo Linguístico de Praga, nos anos finais da década de 1920, que Jakobson e Trubetzkoy, bastante influenciados pela recente publicação do CLG, traçaram as primeiras e importantes diretrizes daquilo que hoje conhecemos como a fonologia moderna. 14 Itálicos conforme o original. Marchese (2012), ao destacar as referências nos estudos saussurianos sobre fonética, aponta que a integralidade do manuscrito de Genebra sobre a Théorie des sonantes se funda sobre o fato de que a fonética, ligada a uma comparação rigorosa das estruturas morfológicas, constitui um ponto central dos estudos indo-europeístas de Saussure. Nesses manuscritos, Saussure dará ênfase principalmente à questão da entonação (no lituano). A pesquisadora italiana acredita que o estudo saussuriano da relação entre o indo-europeu e o lituano foi fortemente marcado pelo peso do aspecto sonoro como pista fônica que teria levado Saussure a chegar ao conceito de sistema (sistema de sons sistema de relações internas sistema da língua). Nonada 20 2013 293

O rastro do som em Saussure Segundo Marchese (op.cit.), a partir de dados concretos da língua, Saussure faz uma equivalência matemática abstrata do coeficiente sonântico como elemento funcional de um sistema abstrato. Segundo autora esboços dessa lógica encontra-se já em estudos do jovem Saussure dos bancos escolares em relação ao grego (1872), e no iniciante pesquisador no Mémoire sur le système primitif des voyelles dans les langues indo-européennes (1879). Ainda segundo essa pesquisadora, será nos manuscritos sobre fonética (com documentos datados de 1893-1894, época em que sabidamente Saussure estudava o Lituano) que o linguista dá mostras do quanto no estudo do aspecto fônico da língua (no caso, a entonação no lituano) já aparecem conceitos muito próximos daqueles formulados nos cursos ditados por Saussure na Universidade de Genebra entre 1907-1911. Bem sabemos que o legado saussuriano segue rendendo instigantes pesquisas e debates que certamente ainda produzirão efeitos em gerações de linguistas e demais estudiosos da linguagem. Por ora, acreditamos ter contribuído com nossas reflexões acerca da importância ou do estatuto do estudo do som no percurso do mestre genebrino Ferdinand de Saussure. Pretendemos agora estender essa reflexão para os estudos sobre os anagramas, registros nos quais sabemos que o mestre permitiu-se, ainda que secretamente, levar-se pelo rastro do som. Mas esta será tarefa para outra empreitada. 294 Nonada 20 2013

Luiza Milano Surreaux REFERÊNCIAS BOUQUET, S. Introdução à leitura de Saussure. São Paulo: Cultrix, 2000. JAKOBSON, R. Seis lições sobre o som e o sentido. Lisboa: Moraes Editores, 1977. MARCHESE, M.P.(éd.). Les manuscrits saussuriens sur la phonétique, du Mémoire au Cours de linguistique générale, Cahiers Ferdinand de Saussure 62, 47-61, 2009.. Linguistique indo-européenne et linguistique générale chez Saussure: un parcours de continuité à travers les manuscrits. Langages 185, 65-73, 2012. SAUSSURE, F. Curso de Lingüística Geral. São Paulo: Cultrix, 1977.. Cours de Linguistique Générale. Col. Bibliothèque scientifique Payot, Éditions Payot. Paris: 1972, 520 p. (Établie par Tullio de Mauro). Escritos de Linguística Geral (Organizados e editados por Simon Bouquet e Rudolf Engler). São Paulo: Cultrix, 2004.. Phonétique. Il manoscritto di Harvard. Houghton Library, edizione a cura de Maria Pia Marchese, Università degli studi di Firenze. Padoue: Unipress, 1995..Théorie des sonantes. Il manuscritto di Geneva. Edizione a cura de Maria Pia Marchese, Università degli studi di Firenze. Padoue: Unipress, 2002. TOLEDO, D. CLP: estruturalismo e semiologia. Porto Alegre: Ed. Globo, 1978. LUIZA MILANO SURREAUX Doutora em Estudos da Linguagem pela UFRGS. Professora do Departamento de letras Clássicas e Vernáculas e do PPG-Letras da UFRGS. Email: luizamilanos@gmail.com Nonada 20 2013 295