FATORES DE CONTROLE NA ORIGEM E EVOLUÇÃO DAS LAGOAS COSTEIRAS HOLOCÊNICAS DO LITORAL NORTE DO RIO GRANDE DO SUL Luiz José Tomazelli 1 ; Sérgio Rebello Dillenburg 1 1 Centro de Estudos de Geologia Costeira e Oceânica (CECO), IG, UFRGS Abstract. During the late Holocene a great number of backbarrier coastal water bodies (lakes and lagoons) have developed on the Rio Grande do Sul coastal plain. Since their initiation, around 5-6 ka ago, these environments have evolved under the control of several distinctive factors like antecedent topography, relative sea-level changes, basin hydrodynamic, and, specially, sediment supply. The supply of sediment (rates of sedimentation and nature of sediments) has been the main factor controlling morphology changes and functions of the coastal water bodies. In the area of this study (north part of the coastal plain) the water bodies located at north of Tramandaí are more rapidly infilling with fluvial sediments eroded from adjacent highlands. Fluvial deltas and crevasse splay deposits are rapidly prograding into the basins that accumulate immature sandy muddy facies. At south of Tramandaí the main process of sediment supply has been the invasion of transgressive eolian dunes coming from the adjacent sandy barrier. Here, water bodies are rapidly filling up with highly mature sandy facies. Finally, those isolated lakes located far way of clastic sources (fluvial and aeolian) are infilling more slowly, mainly by biogenic sediments. Organic muds and peats are typical facies developed in these environments. On the overall, the evolution of the holocenic coastal water bodies of Rio Grande do Sul is a good modern example of how complex could be the sedimentation and the facies association developed along the same backbarrier depositional environment. Palavras-chave: Lagoas costeiras, sedimentação lagunar, evolução costeira 1. Introdução As lagoas (lagos e lagunas) de idade holocênica existentes ao longo da costa do Rio Grande do Sul representam um dos traços mais expressivos da paisagem de sua planície costeira. De grande importância ecológica, sócio-econômica e cênica, estes sistemas ambientais representam também um excelente laboratório natural para o estudo da evolução deposicional dos corpos de água costeiros desenvolvidos em contexto de retro-barreira (backbarrier). O presente trabalho analisa a história evolutiva dos corpos de água costeiros do Litoral Norte do Rio Grande do Sul (LNRS), desenvolvida durante o Holoceno e condicionada por diferentes fatores de controle (Fig. 1). 2. Fatores de Controle Embora integrantes do mesmo sistema deposicional ocupam o mesmo espaço de retro-barreira - as lagoas costeiras da área de estudo apresentam marcantes diferenças em suas características básicas, como a morfologia, a batimetria e o preenchimento sedimentar. Estas variações resultam da atuação diferenciada, durante o processo evolutivo, dos diversos fatores que controlaram esta evolução. Estes fatores de controle incluem a herança geológica, as variações do nível relativo do mar (NRM), o suprimento sedimentar clástico (fluvial e
eólico) e biogênico, e a hidrodinâmica lagunar. 2.1. Herança Geológica A topografia precedente, esculpida em condições de nível de mar baixo, é um dos parâmetros de controle básico na definição das caraterísticas morfológicas e batimétricas das lagoas costeiras da área de estudo (Dillenburg et al. 2000). Durante o máximo da última Transgressão Pós-Glacial (TPG) a região foi inundada e as principais depressões topográficas transformaram-se em lagunas. As expressivas profundidades encontradas em várias destas lagoas costeiras algumas pequenas lagoas possuem profundidade maior que 10 m (Schwarzbold 1982) sugerem que as mesmas ocuparam atingos vales fluviais, erodidos e aprofundados em condições de nível de mar baixo. Estes vales incisos se desenvolveram principalmente ao norte da Laguna de Tramandaí, como resposta, provavelmente, de uma maior declividade do terreno e da ação de cursos fluviais mais expressivos provenientes da Serra Geral. As lagoas costeiras ao norte de Tramandaí, que hoje se alinham mais ou menos perpendicularmente à linha de costa, representam remanescentes destes vales afogados (Fig. 1). 2.2. Variação do Nível Relativo do Mar As variações holocências do NRM foram fundamentais para o desenvolvimento e evolução das lagoas costeiras da região de estudo. Durante períodos de nível de mar baixo, a região ficou exposta e, submetida à erosão fluvial, gerou baixos topográficos que foram posteriormente inundados durante a fase transgressiva, acomodando os corpos lagunares. Vários estudos feitos na região mostram que a mesma começou a ser inundada pela última TPG em torno de 9-10 ka, e que, no máximo transgressivo, alcançado em torno de 5-6 ka, o nível do mar atingiu alguns metros (3-4 m) acima do nível atual. Neste tempo, a região provavelmente era ocupada por grandes lagunas separadas do mar por uma estreita e descontínua barreira transgressiva (Tomazelli e Villwock 1991; Dillenburg 1996). Após o máximo transgressivo, a região foi dominada por uma regressão forçada, associada à queda de alguns metros no NRM. Há evidências de que este evento regressivo foi interrompido por pelo menos um episódio transgressivo menor (Lorscheitter e Dillenburg, 1998). Especialmente ao norte de Tramandaí, a barreira arenosa progradou vários quilômetros, como resposta à queda do NRM e de um elevado suprimento de sedimentos (Dillenburg et al. 2000). Com a progradação da barreira eliminou-se a conexão direta dos corpos lagunares com o mar. Somente a Lagoa de Tramandaí manteve-se como uma verdadeira laguna, conectando-se diretamente com o mar através de um estreito canal de ligação. 2.3. Suprimento Sedimentar A natureza e a taxa de sedimentos que aportam aos corpos lagunares do LNRS controlam a sustentabilidade das lagoas, a distribuição faciológica de fundo e o processo de preenchimento sedimentar. 2.3.1. Sedimentos Terrígenos Fluviais A carga sedimentar clástica terrígena (areias, siltes e argilas) transportada pelos rios é o principal tipo de sedimento responsável pelo preenchimento das lagoas costeiras existentes ao norte de Tramandaí. Esta carga clástica resulta pirncipalmente da denudação dos terrenos vulcânicos da Serra Geral e é transportada pelos principais rios existentes na região (Maquiné, Três Forquilhas, entre outros). Ao chegar na
planície costeira estes rios penetram nos corpos lagunares (Lagoa Itapeva, Lagoa dos Quadros) formando deltas junto às desembocaduras (Fig. 1). Além das progradações deltaicas, parte da carga sedimentar é exportada pelos canais interlagunares que, saindo destas lagoas maiores, fluem para o sul, em direção à Lagoa de Tramandaí. Devido à baixa declividade da planície, os canais são altamente meandrantes. A progradação de pequenos deltas e de lobos associados a rompimentos de diques marginais (crevasse) são processos básicos no preenchimento sedimentar dos corpos lagunares existentes na região ao norte de Tramandaí. A Lagoa do Passo (Fig. 2A) e Tramandaí (Fig. 2B) ilustram, de forma muito clara, este processo evolutivo. 2.3.2. Sedimentos Clásticos Eólicos A barreira holocênica desenvolvida ao sul de Tramandaí caracteriza-se por ser formada essencialmente por dunas eólicas transgressivas que avançam para o interior dos corpos lagunares adjacentes. Submetidas a um vento dominante, proveniente de NE, as dunas migram no sentido SW, invadindo os corpos lagunares (Tomazelli 1993). A migração das dunas eólicas consiste no principal processo responsável pela evolução dos corpos lagunares situados ao sul de Tramandaí, influenciando a morfologia geral das lagoas, a batimetria e a natureza das fácies de fundo. A morfologia é controlada pelas projeções das dunas transgressivas que avançam como línguas arenosas no sentido SW. O perfil batimétrico se torna assimétrico, com profundidades maiores junto à margem por onde as dunas ingressam. As fácies de fundo são formadas essenciamente por areias eólicas, bem selecionadas e arredondadas. A Lagoa Rincão das Éguas ilustra bastante bem o processo evolutivo associado ao avanço das dunas eólicas transgressivas (Fig. 2C). 2.3.3. Sedimentos Biogênicos As lagoas costeiras isoladas que não sofrem importante aporte de carga clástica (fluvial e eólica) são preenchidas principalmente por sedimentos biogênicos de origem vegetal. O avanço da vegetação marginal, principalmente de macrofitas, é o principal processo evolutivo destas lagoas que, com o tempo, transformam-se em ambientes paludiais. Fácies formadas por lamas orgânicas e turfas caracterizam a sedimentação destes ambientes deposicionais. Os corpos lagunares situados a Oeste da Lagoa de Tramandaí ilustram este modelo evolutivo (Fig. 2D). 2.4. Hidrodinâmica Lagunar A hidrodinâmica (ação de ondas e correntes) é um outro importante fator a ser considerado na análise da evolução dos corpos lagunares do LNRS. A hidrodinâmica reflete basicamente a ação das ondas e correntes geradas pelo vento. O domínio do vento proveniente de NE fica muito claro na observação morfológica dos corpos lagunares, especialmente daqueles situados ao sul de Tramandaí. Devido à maior incidência das ondas, as praias das margens SW das lagoas são praias arenosas, de maior energia. As praias na margem oposta (NE) tendem a ser mais abrigadas, com sedimentação mais fina e maior desenvolvimento de vegetação marginal. As ondas e correntes a elas associadas promovem o desenvolvimento de pontais arenosos que crescem perpendicularmente ao vento NE (Fig. 1). Estes pontais são feições morfológicas importantes no processo de segmentação e compartimentação dos corpos lagunares e,
consequentemente, no seu processo evolutivo. Na maioria das vezes estes pontais cresceram a partir da acreção lateral de cristas de praia (beach ridges) lagunares. 3. Conclusões Desde sua implantação, há cerca de 5-6 ka, próximo ao final da última transgressão pós-glacial, a história evolutiva dos corpos lagunares do LNRS foi controlada por vários fatores que permitiram uma diferenciação morfológica e sedimentar entre grupos de lagoas. Além dos fatores de controle comuns a todas as lagoas (variações do NRM, herança geológica e hidrodinâmica lagunar) o aporte sedimentar permite diferenciar as lagoas em três grupos. As lagoas situadas ao norte de Tramandaí recebem um aporte sedimentar trazido pelos rios que drenam os terrenos vulcânicos da Serra Geral. As fácies sedimentares de fundo são constituídas principalmente por clásticos finos (areias e lamas). As lagoas ao sul de Tramandaí, e situadas próximo à linha de costa, recebem importante aporte sedimentar de areias eólicas provenientes da barreira adjacente. Desenvolvem fácies de fundo essencialmente arenosas, bem selecionadas e arredondadas. Por fim, as lagoas isoladas, afastadas da linha de costa e dos cursos fluviais, desenvolvem uma sedimentação enriquecida em matéria orgânica vegetal. Turfas e lamas orgânicas são as principais fácies constituintes destes ambientes deposicionais. Sob o ponto de vista ecológico, esta diferenciação entre as lagoas da região é de grande importância, uma vez que o suprimento sedimentar (taxas de sedimentação e natureza dos sedimentos) afeta as características básicas das lagoas (morfologia, batimetria) controlando sua sustentabilidade ao longo do tempo e influenciando a distribuição de substâncias e organismos vegetais e animais. Já sob o ponto de vista de análise de sistemas deposicionais, quando observadas no conjunto, as lagoas do LNRS mostram como uma associação de fácies sedimentares desenvolvidas em um mesmo sistema deposicional de retro-barreira pode apresentar importantes variações em sua natureza e composição, na dependência dos fatores de controle responsáveis pela sua evolução. 6. Referências DILLENBURG SR. 1996. O Potencial de Preservação dos Registros Sedimentares do Sistema Deposicional Laguna/Barreira IV na Costa do Estado do Rio Grande do Sul. Notas Técnicas do CECO-IG-UFRGS 9: 1-11. DILLENBURG SR, ROY PS, COWELL PJ, TOMAZELLI LJ. 2000. Influence of Antecedent Topography on Coastal Evolution As Tested by the Shoreface Translation Barrier Model (STM). J Coastal Res 16: 7181 LORSCHEITTER ML e DILLENBURG SR. 1998. Holocene palaeoenvironments of the northern coastal plain of Rio Grande do Sul, Brazil, reconstructed from palynology of Tramandaí lagoon sediments. In: RABASSA J and SALEMME M (Ed), Quaternary of South America and Antarctic Peninsula, Rotterdam: A. A. Balkema, p. 73-97. SCHWARZBOLD A. 1982. Influência da morfologia no balanço de substâncias e na distribuição de macrófitos aquáticos nas lagoas costeiras do Rio Grande do Sul. Curso de Pós-Graduação em Ecologia, UFRGS, Dissertação de Mestrado, 91 p.
TOMAZELLI LJ. 1993. O Regime de Ventos e a Taxa de Migração das Dunas Eólicas Costeiras do Rio Grande do Sul, Brasil. Pesquisas 20: 18-26. TOMAZELLI LJ e VILLWOCK JA. 1991. Geologia do Sistema Lagunar Holocênico do Litoral Norte do Rio Grande do Sul, Brasil. Pesquisas 18: 13-24. Fig. 1. Mapa geológico-geomorfológico simplificado da área de estudo (Litoral Norte do Rio Grande do Sul) com a localização dos principais corpos lagunares mencionados no texto.
Fig. 2 Fotografias aéreas de corpos lagunares da área de estudo, ilustrando os três processos básicos de preenchimento sedimentar. Fotos A (Lagoa do Passo) e B (Laguna de Tramandaí): preenchimento por depósitos clásticos fluviais (progradação de deltas e depósitos de rompimento de diques marginais). Foto C (Lagoa Rincão das Éguas): preenchimento pelo avanço de dunas eólicas transgressivas da barreira holocênica adjacente. Foto D (Lagoas a Oeste da Laguna de Tramandaí): preenchimento pelo avanço gradativo da vegetação marginal. A localização das lagoas pode ser obsservada na mapa da Figura 1.