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DIVULGAÇÃO DE PARECER DO CONSELHO CONSULTIVO N.º 17/ CC /2015 N/Referência: P.º C.C. 17/2014 STJ-CC Data de homologação: 26-02-2015 Consulente: Departamento de Assuntos Jurídicos da Secretaria Geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros.. Assunto: Palavras-chave: Pedido de parecer Procedimento de alteração de registo do sexo e do nome próprio no registo civil português.. Alteração de registo do sexo e do nome próprio Revisão de sentença estrangeira. 1 - A questão ora objeto de apreciação por parte deste órgão consultivo foi suscitada pelo Departamento de Assuntos Jurídicos da Secretaria Geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros, fazendo eco de uma situação exposta pelo Consulado Geral de Portugal em. 1.1- E transmitiu-a nos seguintes termos: ( ) Tendo um cidadão de nacionalidade portuguesa e francesa requerido em França a mudança de sexo e de nome próprio, com base em diagnóstico de perturbação de identificação de identidade, foi o mesmo decidido favoravelmente pelo Tribunal de Instância de Roubaix (França). Pretende agora, ao abrigo da Lei nº 7/2011, de 15 de março, pedir a alteração equivalente no seu registo português. Com efeito, nos termos do nº 2 do artigo 6º da Lei nº 7/2011, o Estado Português reconhece a alteração de registo do sexo efetuada por pessoa de nacionalidade portuguesa que, tendo outra nacionalidade, tenha modificado o seu registo do sexo perante as autoridades desse Estado. Acontece que o nº 2 do artigo 6º da Lei nº 7/2011, de 15 de março não explicita a forma para tal reconhecimento, nomeadamente no caso, como o presente, em que a alteração do registo estrangeiro é feita com base numa decisão judicial. Assim, o Consulado Geral de Portugal em. solicita que seja a questão sub judice levada à consideração do IRN, no sentido de saber se tal reconhecimento é automático, bastando a apresentação da sentença estrangeira e o registo estrangeiro alterado, devidamente traduzidos e legalizados, ou se, por outro lado, se torna necessário o processo de revisão e confirmação da sentença estrangeira que decidiu a mudança de sexo e de nome. 1/6

1.2- Posteriormente, por fax datado de 24 de setembro do ano findo, o senhor diretor da Direção dos Assuntos Consulares e das Comunidades Portuguesas veio solicitar idêntica informação ( ) a fim de se instruir os postos consulares portugueses no estrangeiro em conformidade com os procedimentos a adotar nos referidos casos. 2- Na sua informação, o Setor Jurídico e de Contencioso depois de identificar a questão analisanda e de efetuar uma abordagem sumária do processo de mudança de sexo com a consequente alteração de nome próprio, antes e depois do início de vigência da Lei nº 7/2011, de 15 de março, acaba por concluir, à semelhança do que acontecera com a entidade consulente, que a nossa lei embora reconheça a alteração de registo do sexo não indica os termos do reconhecimento da sentença estrangeira, razão pela qual sugere, atento o melindre da matéria e face à ausência de doutrina e de jurisprudência sobre a mesma, a sua submissão à apreciação do Conselho Consultivo, sugestão que mereceu a concordância superior. Urge então que nos pronunciemos e emitamos o respetivo parecer. Fundamentação 1- Iniciamos a apreciação do caso com uma breve alusão à Lei nº 7/2011, de 15 de março, com início de vigência em 20 de março, que criou o procedimento da mudança de sexo e de nome próprio no registo civil, diploma que veio trazer importantes subsídios a respeito deste tema, na medida em que confere a possibilidade de reconhecimento jurídico da nova identidade sexual dos interessados e estabelece os indispensáveis procedimentos administrativos, colocando-se, assim, ponto final num vazio jurídico até então existente no nosso país no que concerne a esta matéria. A admissibilidade do reconhecimento destes casos, até então só possível e com bastantes hesitações pela via judicial, passou a ter consagração legal pela via administrativa, passando o pedido a poder ser apresentado em qualquer conservatória do registo civil (artigo 3º) e a decisão transferida para a esfera de competência do conservador do registo civil (artigo 4º) competência ratione materiae. Mais uma vez, o registo civil acolheu no seu seio uma matéria nova, e de uma grande sensibilidade, numa demonstração clara da sua evolução e de adaptação aos novos desafios e aos novos valores que brotam da sociedade, uma sociedade em permanente mutação, aberta e despreconceituosa, própria de um Estado que, como o nosso, se proclama como um Estado de direito democrático (cfr. o artigo 2º da Constituição da República Portuguesa), acolhimento que representa, no fundo, a concretização do reconhecimento a todos, e sem rodeios, do direito à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação, já com expressão em sede constitucional (nº 1 do artigo 26º, in fine) e, no âmbito internacional, na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que entrou em vigor na ordem jurídica nacional em 9 de novembro de 1978 artigo 14º (Proibição de discriminação). 2/6

2- Ao analisarmos a lei supracitada logo deparamos com o artigo 6º, norma que no seu nº 2 preceitua que O Estado Português reconhece a alteração de registo do sexo efectuada por pessoa de nacionalidade portuguesa que, tendo outra nacionalidade, tenha modificado o seu registo do sexo perante as autoridades desse Estado. Destarte, nenhuma reserva subsiste quanto ao reconhecimento pelo Estado Português da mudança de sexo e do nome próprio por parte de um cidadão com dupla nacionalidade, sendo uma delas a portuguesa, e que, face à lei dessa outra nacionalidade, in casu a francesa, obteve a referida mudança com base em decisão judicial à qual foi conferida a devida projeção no registo civil francês. 2.1 - E a questão que então se coloca, para a qual importa encontrar uma resposta útil reside aqui, aliás, o cerne da questão, o verdadeiro thema decidendum é a de saber se o reconhecimento da referida decisão implica a indispensabilidade de um processo prévio de revisão e confirmação, conferindo-se-lhe um título de eficácia na ordem jurídica interna portuguesa ou se, pelo contrário, a receção dos seus efeitos na ordem jurídica nacional deve ser operada através do reconhecimento automático. 3 Valendo-nos do disposto no artigo 7º do Código do Registo Civil, começamos por referir que esta norma obriga a que as decisões dos tribunais estrangeiros relativas ao estado ou à capacidade civil dos nacionais portugueses passem pelo crivo do tribunal da Relação mediante a instauração do respetivo processo de revisão de sentença estrangeira para que possam produzir efeitos jurídicos no nosso país. 3.1 O mesmo entendimento ressuma, com iniludível clareza, da segunda parte do preceito imperativo a que se reporta o nº 1 do artigo 978º do Código de Processo Civil: Sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos da União Europeia e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem ser revista e confirmada. Todavia, interpretando esta norma, e tendo em consideração os elementos linguísticos vertidos na primeira parte, chegamos linearmente à conclusão que, em primeiro lugar, teremos sempre de atender ao que se encontra estabelecido em tratados, convenções, regulamentos comunitários e leis especiais, os quais prevalecem sobre o regime interno de reconhecimento de decisões estrangeiras contido primacialmente nos artigos 980º e seguintes do Código de Processo Civil. Dito de outro modo: o regime interno só é aplicável fora do âmbito de aplicação dos regimes supraestaduais ou na medida em que estes regimes excluam a sua aplicação (vide, neste sentido, Luís de Lima Pinheiro, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 66, Setembro de 2006, pág. 518). 4 Importa, então, que nos situemos desde já no plano desses regimes supraestaduais em ordem a averiguar se a sentença revidenda, porque proferida por tribunal de um Estado-Membro da União Europeia, cai no âmbito de aplicação material de algum desses regimes, podendo constituir, de per si, título bastante para produzir 3/6

efeitos em Portugal reconhecimento automático ou se, ao invés, a produção desses efeitos, designadamente a atualização do registo civil, pressupõe necessariamente a sua revisão pelo tribunal da Relação competente. 4.1 Para o efeito, abordaremos, ainda que de forma sumária, alguns instrumentos de cooperação judiciária, começando por referir, a este propósito, que com a entrada em vigor, em 1 de maio de 1999, do Tratado de Amesterdão, de 2 de outubro de 1997, os principais regimes de reconhecimento de decisões judiciais estrangeiras em vigor na nossa ordem jurídica são hoje de fonte comunitária. 4.2 Iniciaremos este percurso com o Regulamento (CE) nº 2201/2003, de 27 de novembro do mesmo ano, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental que revogou o Regulamento (CE) nº 1347/2000, de 29 de maio de 2000, instrumento que entrou em vigor em 1 de agosto de 2004 e que desde 1 de março de 2005 regula as decisões proferidas por tribunais dos Estados-Membros, ressalvando a Dinamarca (artigo 2º, nº 3), no qual se encontra consagrado o reconhecimento automático (nº 1 do artigo 21º) das decisões proferidas nos outros Estados-Membros relativamente às várias matérias compreendidas no seu âmbito material 1, mas onde não cabe aquela versada na sentença cujo reconhecimento nos ocupa. 4.3 O mesmo acontece, por identidade de razão, com o Regulamento (CE) nº 44/2001, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e execução de decisões em matéria civil e comercial, que entrou em vigor em 1 de março de 2002 (artigo 76º), o qual substituiu entre os Estadosmembros a Convenção de Bruxelas (nº 1 do artigo 68º), e cujas normas, que vinculam todos os Estadosmembros da União Europeia, com exceção da Dinamarca (artigo 1º, nº 3, in fine), quando o demandado tiver o seu domicílio ou sede no território de um Estado-membro vinculado pelo referido Regulamento (artigo 4º, nº 1), embora prevalecendo sobre as normas internas do Estado Português não abrangem várias matérias, entre as quais as questões relativas ao estado e capacidade das pessoas singulares (artigo 1º, nº 2, alínea a), 1ª parte), razão pela qual a sentença do tribunal francês a rever porque não se encontra abrangida pelo âmbito de aplicação material deste Regulamento não pode beneficiar do princípio do reconhecimento automático consagrado no nº 1 do artigo 33º. 1 - De acordo com o artigo 1º, nº 1, o Regulamento aplica-se às matérias civis respeitantes ao divórcio, à separação e à anulação do casamento (alínea a), bem como à atribuição, ao exercício, à delegação, à limitação ou à cessação da responsabilidade parental (alínea b), sendo que esta última expressão vem definida no nº 7 do artigo 2º, devendo entender-se como o conjunto dos direitos e obrigações conferidos a uma pessoa singular ou colectiva, por decisão judicial, por atribuição de pleno direito ou por acordo em vigor relativo à pessoa ou aos bens de uma criança. Por seu turno, o nº 2 do artigo 1º diz-nos quais as matérias incluídas na alínea b) supracitada, elencadas nas alíneas a) a e) o direito de guarda e de visita, a tutela, a curatela e outras instituições análogas, assim como a designação e funções de qualquer pessoa ou organismo encarregado da pessoa ou dos bens da criança e da sua representação ou assistência, a colocação da criança ao cuidado de uma família de acolhimento ou de uma instituição e ainda as medidas de proteção da criança atinentes à administração, conservação ou disposição dos seus bens. 4/6

4.4 De igual modo, a matéria contemplada na sentença revidenda não se encontra abrangida pelas Convenções da CIEC ratificadas por Portugal 2, tão pouco por quaisquer acordos de cooperação judiciária entre Portugal e a França, não obstante o intenso relacionamento bilateral entre os países referidos. 5 Assim, não se vislumbrando a existência de tratado ou lei especial em contrário, afigura-se-nos que a produção dos efeitos da sentença do tribunal francês no nosso país está condicionada à sua revisão e confirmação 3. 5.1 Com efeito, uma vez verificado o circunstancialismo descrito no número anterior, entre nós, o reconhecimento das sentenças estrangeiras opera-se por via de revisão, uma revisão essencialmente formal embora com algumas concessões à revisão de mérito ou seja, a ação de revisão de sentença estrangeira não tem por objeto reexaminar o mérito da decisão revidenda, julgar a causa ex novo, mas tão só verificar se no caso concreto concorrem os vários requisitos da natureza cumulativa sediados nas alíneas a) a f) do artigo 980º do Código de Processo Civil, nenhum deles implicando qualquer controle do direito material que foi aplicado pelo tribunal do Estado de origem. E, abstraindo agora dos restantes requisitos, cuja análise a economia do parecer, a par da escassez de elementos, se nos afigura não consentir, torna-se mister referir, no que concerne aquele a que se reporta a alínea f), que o reconhecimento da sentença proferida pelo tribunal francês sobre a mudança de sexo e alteração de nome próprio não redunda em qualquer resultado que seja incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português, constituída, segundo Baptista Machado, pelos princípios essenciais que fundamentam e garantem o bom funcionamento das instituições basilares da ordem jurídica portuguesa (artigo 22º do Código Civil) in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 121º, página 269. 2 - Convenções nºs 1 (Relativa à Emissão de Determinadas Certidões de Registo de Estado Civil Destinadas ao Estrangeiro), 2 (Relativa à Emissão Gratuita e à Dispensa de Legalização de Certidões de Registo do Estado Civil), 3 (Relativa à Troca Internacional de Informações em Matéria de Estado Civil), 4 (Relativa à Alteração de Nomes Próprios e Apelidos), 5 (Destinada a Alargar a Competência das Autoridades Qualificadas para Aceitar o Reconhecimento de Filhos Naturais), 8 (Relativa à Troca de Informações em Matéria de Aquisição de Nacionalidade), 10 (Relativa à Verificação de Certos Óbitos), 16 (Sobre a Emissão de Certidões Multilingues de Actos do Registo Civil), 17 (Relativa à Dispensa de Legalização para Certas Certidões de Registo Civil e Documentos), 19 (Relativa à Lei Aplicável aos Nomes Próprios e Apelidos) e 20 (Relativa à Emissão de um Certificado de Capacidade Matrimonial). 3 - Reconhecer uma sentença estrangeira significa atribuir-lhe, no todo ou em parte, no Estado do foro (Estado ad quem) os mesmos efeitos que lhe competem de harmonia com a lei do Estado de origem (Estado a quo). Ao reconhecimento de sentenças estrangeiras estão subjacentes não apenas razões de justiça e de competência jurisdicional, mas também razões de estabilidade e segurança jurídica. A estabilidade e a segurança das relações privadas, valores fundamentais para o desenvolvimento harmonioso do convívio entre os povos, assentam, em grande parte, na validade extraterritorial das sentenças, por forma que, recusar os direitos e situações validamente constituídas pelos órgãos competentes de um Estado, validade e aceitação nos outros Estados, equivalerá a pôr em causa toda a estabilidade e confiança que a vida colectiva deve oferecer, frustrando legítimas expectativas e gerando o caos na convivência entre os homens José João Gonçalves de Proença, Direito Internacional Privado Conflitos de Jurisdições e Reconhecimento e Execução de Sentenças Estrangeiras, 2ª edição revista e actualizada, p. 89. 5/6

Destarte, e por todo o anteriormente exposto, o Conselho Consultivo formula as seguintes CONCLUSÕES: 1 A nossa ordem jurídica estabelece, salvo tratado ou lei especial em contrário, que uma sentença estrangeira só pode produzir efeitos em Portugal depois de submetida a um processo prévio de revisão e confirmação (artigo 978º do Código de Processo Civil). 2 À míngua de um tratado, convenção, regulamento comunitário ou lei especial que vincule o Estado Português a reconhecer sem qualquer formalidade a sentença proferida pelo tribunal francês sobre a mudança de sexo e a consequente alteração de nome próprio com base em diagnóstico de perturbação de identidade do género, a mesma só pode produzir efeitos em Portugal e ingressar no registo civil português depois de revista e confirmada, para o que se torna necessário a verificação cumulativa dos requisitos previstos no artigo 980º do Código de Processo Civil (vide, ainda, o artigo 7º, nºs 1 e 2 do Código do Registo Civil). Parecer aprovado em sessão do Conselho Consultivo de 26 de fevereiro de 2015. António José dos Santos Mendes, relator, Laura Maria Martins Vaz Ramires Vieira da Silva, Maria de Lurdes Barata Pires de Mendes Serrano. Este parecer foi homologado em 26.02.2015 pelo Senhor Vice-Presidente do Conselho Diretivo, em substituição. 6/6