INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS - IBCCRIM

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Transcrição:

O INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS - IBCCRIM, entidade não governamental, sem fins lucrativos, com sede na cidade de São Paulo (SP), Rua Onze de Agosto, 52 Centro, vem, por meio de seu Departamento de Projetos Legislativos, apresentar nota técnica sobre a Medida Provisória nº 755, que altera a Lei Complementar nº 79, de 7 de janeiro de 1994. Em 19 de dezembro de 2016, foi editada a Medida Provisória nº 755, alterando a Lei Complementar nº 79, de 7 de janeiro de 1994, que dispõe sobre o Fundo Penitenciário Nacional - FUNPEN, e determina, dentre outros, a origem e a destinação dos recursos do FUNPEN. A edição de tal medida foi motivada pela intensa crise observada no sistema penitenciário brasileiro que, apesar de colecionar episódios de barbárie há muitos anos, viu-se acometido no último mês por três violentas rebeliões no Amazonas, em Rondônia e no Rio Grande do Norte. A despeito desse propósito, a MP 755/16 é insustentável, nos termos a seguir: 1. O desvio dos recursos do FUNPEN Em primeiro lugar, a medida provisória retira recursos do já combalido sistema penitenciário brasileiro em favor das ações de segurança pública. Isso pode ser observado a partir da leitura de três dispositivos do referido texto. O primeiro deles acrescenta o inciso XVII no art. 3º da Lcp nº 79/94 para incluir "políticas de redução da criminalidade" no escopo da destinação dos recursos do FUNPEN. O segundo diminui a receita do FUNPEN de 3% para 2,1% - sendo o 0,9% restantes destinados ao FNSP - relativa à arrecadação com a loteria esportiva (art. 2º, V e IX, da Lei nº 11.345/06). O último dos dispositivos 1

não altera nenhuma lei, mas autoriza a transferência de até 30% dos recursos constantes do FUNPEN até 31 de dezembro de 2016 para o Fundo Nacional de Segurança Pública - FNSP (art. 3º da MP 755/16). O FNSP é responsável, dentre outros, pelo custeio, por meio de diárias e passagens, dos agentes que compõem a Força Nacional de Segurança Pública (art. 6º, 2º, da Lei nº 11.473/07). O governo está, assim, desviando recursos de uma política voltada para o sistema penitenciário para alavancar uma política de segurança pública mais repressiva e ostensiva. O propósito de tais dispositivos é claro: mais gastos com segurança pública em detrimento dos investimentos no sistema prisional. As consequências, no entanto, também são claras: estabelecimentos prisionais incapazes de sustentar o crescimento anunciado (e indevido) da população carcerária, agravando ainda mais a crise atual. É necessário reconhecer, como fez o legislador ao instrumentalizá-las por meio de dois fundos diversos, que as políticas penitenciárias e de segurança pública, apesar de conexas, são bastante distintas. Ao inserir indevidamente ações de segurança pública na lei de regência do FUNPEN, o governo apresenta providências diametralmente opostas em relação às duas políticas, negligenciando os efeitos que uma tem sobre a outra. Os recursos do Funpen, conforme preconizado na própria lei complementar que o instituiu, devem ser utilizados com a finalidade de proporcionar meios para financiar e apoiar as atividades e programas de modernização e aprimoramento do Sistema Penitenciário Brasileiro, e não aumentar a capacidade repressiva do Estado. Por fim, a MP autoriza o uso do FUNPEN para o aumento de gastos com custeio, por meio de transferências obrigatórias para os Estados, o Distrito 2

Federal e Municípios, em percentuais decrescentes definidos no seu art. 3º-A. Ao determinar o repasse obrigatório pela União, sem a necessidade de elaboração de convênio ou instrumento congênere, os entes federados utilizarão esses recursos para custear suas administrações, desincentivando o aporte de recursos próprios. Em 2020, quando os recursos repassados cairão do percentual de 75% para 10%, os Estados serão obrigados a cobrir os custos de uma administração que, nos três anos anteriores, recebeu ajuda de recursos externos. O cenário que se desenha é de incapacidade de os entes federados fazerem frente a esses recursos por conta própria, tornando insustentável o repasse de recursos tal como determinado na MP. 2. A ADPF 347 e o "estado de coisas inconstitucional" do sistema penitenciário brasileiro Esta não é a primeira vez que autoridades federais discutem as violações de direitos decorrentes da situação atual do sistema carcerário brasileiro. Em setembro de 2015, o Supremo Tribunal Federal julgou o pedido de liminar na ADPF 347, que discute a situação das prisões do país. E aqui a MP nº 755/16 descumpre flagrantemente decisão do STF. No julgamento do caso, o STF reconheceu o "estado de coisas inconstitucional" vivido pelo sistema penitenciário frente às seguidas violações de direitos fundamentais perpetradas nas prisões brasileiras. Dentre as providências determinadas pela Corte, estão a obrigatoriedade da realização de audiências de custódia e a liberação dos recursos do FUNPEN para a finalidade a que se destinavam quando do seu julgamento. Note-se que o STF declara que a liberação de recursos do FUNPEN, apesar 3

de ser apenas uma peça do quebra-cabeça, constitui providência indispensável para solucionar a crise do sistema penitenciário. Tal reconhecimento é importante na medida em que deixa espaço para a discussão de outras alternativas que, longe de serem excludentes, somente se tomadas em conjunto poderão ter o efeito desejado. Assim, ao permitir, ainda que por meio de diploma legal, a destinação de recursos do FUNPEN para outras finalidades que não estavam originalmente previstas quando da decisão do STF, o governo ignora o comando da Corte Suprema, descumprindo-o. Com base nesse fundamento, o PSOL, proponente originário da ADPF, aditou sua manifestação inicial, questionando a validade da referida medida provisória. Ainda não houve manifestação nem há previsão de julgamento do novo pedido, mas é necessário que o STF reconheça que a MP nº 755/16 descumpre sua própria decisão. 3. A solução equivocada para o enfrentamento da crise Os entraves à validade da MP apontados até agora não elidem a principal reflexão que se tira de sua edição: a medida provisória é fruto de um diagnóstico completamente equivocado dos motivos da crise penitenciária, que melhor se identifica com os fundamentos político-criminais do século XIX. A crise não é decorrente apenas das más condições dos presídios ou da falta de investimentos e recursos para a expansão do número de vagas. A crise atual tem nome e sobrenome: superencarceramento. O expansionismo penal e as soluções legislativas aplicadas a partir do começo da década de 90, somadas à edição da Lei de Drogas de 2006, fizeram a população carcerária brasileira quintuplicar em 25 anos. 4

Ao contrário daquilo anunciado como solução pela MP nº 755/16, o aumento de recursos para os equipamentos de segurança pública às custas do sistema penitenciário, com o subterfúgio da redução da criminalidade, tem como efeito imediato o aumento no número de pessoas presas, agravando a já calamitosa situação cotidiana. E ainda que a solução apresentada fosse apenas investir pesadamente na construção de novas unidades prisionais, a taxa de encarceramento é tão alta que os recursos mal fariam frente ao déficit atual de vagas registrado em todo o sistema. Ademais, maiores investimentos em segurança pública, dentre eles a expansão do contingente da Força Nacional de Segurança Pública e a utilização de fileiras das Forças Armadas para conter a violência nos presídios - tema sobre o qual este Instituto já se pronunciou1 - não podem ser apresentados pelo Poder Público como panaceia à crise, pois, além de equivocados, aproveitam-se de situação caótica para fomentar interesses que vão além da mera expansão do desejo punitivista do atual governo. 4. Considerações finais Ante as considerações acima, é possível sugerir: a. que o Congresso Nacional rejeite a MP nº 755/16 e declare a perda de sua eficácia; e 1 http://www.ibccrim.org.br/noticia/14173-nota-publica-do-ibccrim-sobre-o-uso-das-forcas- Armadas-para-vistoriar-estabelecimentos-prisionais 5

b. que o Supremo Tribunal Federal declare a inconstitucionalidade dos dispositivos da MP nº 755/16 que alteram a destinação dos recursos do FUNPEN. O estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro só se agravará caso o Ministério da Justiça e Cidadania execute plenamente os dispositivos da MP nº 755/16 e cabe tanto ao Poder Legislativo quanto ao Poder Judiciário impedir o aprofundamento dessa crise. Brasília, 24 de março de 2017. Luiz Guilherme Paiva Diretor do Departamento de Projetos Legislativos do IBCCRIM Lucas Aguiar Departamento de Projetos Legislativos do IBCCRIM 6