Sessão Extraordinária do COCAI Participação Política dos Imigrantes Intervenção de Rui Marques, Alto Comissário para a Imigração e Diálogo Intercultural Assembleia da República, 24 de Setembro de 2007 1
Exmo. Senhor Presidente da Assembleia da República Senhores Deputados Ilustres Membros do Conselho Consultivo para os Assuntos de Imigração e da Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial. Caras e Caros Dirigentes Associativos Minhas Senhoras e meus Senhores, Quis V. Excelência, Senhor Presidente da Assembleia da República, tomar a iniciativa de convidar o Conselho Consultivo para os Assuntos de Imigração (COCAI) a realizar uma sua sessão extraordinária, na sede, por excelência, do sistema democrático. É um momento inédito que nunca havia acontecido na história da imigração em Portugal! O Parlamento abrir as suas portas aos imigrantes, num gesto de grande visão estratégica e de inclusão dos imigrantes na comunidade política nacional, representa um marco inolvidável na evolução das políticas de imigração no nosso País. Constitui, por isso, um privilégio poder participar neste momento histórico da vida democrática e é devido um reconhecido agradecimento ao Senhor Presidente da Assembleia da República pela iniciativa tomada. De igual forma, queremos agradecer à Iª Comissão, que tomou a cargo a organização deste evento, toda a abertura e disponibilidade demonstrada. Neste contexto de uma sessão extraordinária do COCAI, para a qual quisemos convidar adicionalmente um conjunto de personalidades muito relevantes no domínios da imigração, entre os quais destacamos os membros da Comissão para a Igualdade, presidentes de Associações de Imigrantes e representantes de organizações internacionais, colocava-se a questão da definição da agenda. 2
Que tema seria suficientemente digno deste momento em que a integração dos imigrantes é acolhida na sede da democracia portuguesa? A escolha foi óbvia e sem hesitações: a participação política dos imigrantes na sociedade portuguesa e, em particular, o seu direito de voto. Ao longo da sua história, num processo de amadurecimento, a democracia tem vindo a alargar progressivamente o universo de eleitores e de elegíveis. Desde o modelo ateniense, limitado a um pequeno número de cidadãos (sem mulheres, nem escravos, nem estrangeiros), passando pelas aquisições igualitárias da Revolução Francesa e pelas novidades decorrentes da independência dos EUA (entre as quais, o princípio não aos impostos, sem representação ), seguiram-se depois, já nos séculos XIX e XX, as lutas das sufragistas e dos líderes negros, pelo seu direito ao voto. De uma pequena elite de cidadãos foi-se expandindo a participação democrática até um modelo expresso na máxima um Homem, um voto. Embora seja quase sempre de natureza representativa, a democracia actual tende a envolver intensamente, no destino comum, todos os indivíduos que assim são chamados a participar no processo democrático. Dessa forma se reforça o exercício da cidadania com a construção de uma comunidade de destino. Este aperfeiçoamento, muito marcado pelo reconhecimento da dignidade da Pessoa de todas as Pessoas e pelo princípio da igualdade, tem hoje um novo e determinante desafio: o direito de voto dos imigrantes na sociedade de acolhimento. 3
Com efeito, a dimensão crescente das migrações no início deste século XXI, com a tendência do estabelecimento dos imigrantes por longos períodos, coloca os países de acolhimento numa encruzilhada complexa: é sustentável manter um número relevante de cidadãos imigrantes, cumpridores dos seus deveres para com a sociedade de acolhimento nomeadamente fiscais e legais - fora do processo de participação política, através do voto? Não é evidente o deficit democrático decorrente de uma parte da população residente não ser representada e não participar na eleição de quem fará as leis, às quais terá que se sujeitar? É sensato excluir dos canais democráticos de representação e defesa dos seus interesses, de mobilização para um bem comum e de co-responsabilidade pelo destino colectivo, um número significativo de pessoas, ainda que imigrantes? Não é sustentável, nem sensato, nem muito menos justo. Desde logo, porque em democracia, quem não tem direito de voto, não existe. É um não-cidadão. Fica à margem. Por isso, níveis crescentes de coesão social, de envolvimento no desenvolvimento sustentável, de coresponsabilidade cívica, de igualdade e ausência de discriminação, exigem que imigrantes sejam convocados à participação política. O seu sentimento de pertença à sociedade de acolhimento será directamente proporcional às oportunidades de participação que esta lhe proporcionar. No caso português, prevê a Constituição que os cidadãos estrangeiros residentes em Portugal possam beneficiar do direito de voto (artº 15º, nº 4 CRP), em condições de reciprocidade, ao nível das eleições locais. 4
Este princípio configura, ainda que de uma forma tímida e incipiente, a opção política de fundo por uma democracia inclusiva. Importa, no entanto, questionar se os limites impostos - a reciprocidade e a limitação às eleições autárquicas - fazem sentido. Quanto à reciprocidade, embora se aceite como princípio justo e desejável, deveria ter um carácter indicativo e não obrigatório. Muitas vezes, por razões diversas políticas, sociais e económicas - os países de origem tendem a não acolher com entusiasmo a criação de vínculos estáveis dos seus emigrantes com as sociedades de acolhimento. A não-aceitação da reciprocidade surge então como um subterfúgio fácil para inviabilizar esta ligação. Mas, o que ganha efectivamente Portugal com deixar de fora muitos imigrantes originários desses países exclusivamente por causa dos seus países de origem não estarem disponíveis para a reciprocidade? Nada, rigorosamente. Estabelece-se também uma limitação no âmbito dos actos eleitorais, excluindo as eleições legislativas e presidenciais. Embora se reconheça a importância da participação a nível local, por todas as mais-valias decorrentes da integração dos imigrantes na comunidade de proximidade, não é lógico, nem aceitável que se limite a esse nível a participação política. Aliás, a situação decorrente do estatuto de igualdade de direitos políticos 1 obtido ao abrigo do Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta entre a 1 Caso especial entre os estrangeiros é o dos cidadãos de nacionalidade brasileira, residentes e recenseados no território nacional, que possuam o estatuto de igualdade de direitos políticos obtido ao abrigo do Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta entre a República Portuguesa e a República Federativa do Brasil, entrado em vigor a 5 de Setembro de 2001 (V. publicação do Tratado no DR, I Série A, de 14 de Dezembro de 2000 bem como do respectivo Regulamento Decreto-Lei nº 154/2003, de 15 de Julho). Os cidadãos investidos nesse estatuto podem ser eleitores da Assembleia da República, (v. artº 17º do Tratado e artºs 16º nº 1, 19º e 20º do Decreto--Lei nº 154/2003) e também podem ser eleitos face à nova redacção do nº 3 do artº 15º da CRP (revisão de 2001). Dúvidas subsistem quanto à capacidade eleitoral (activa e passiva) dos brasileiros com residência permanente em Portugal mas não possuidores do referido Estatuto. Propendemos, contudo, a considerar que também esses cidadãos possuem capacidade eleitoral activa e passiva. O Brasil é, aliás, o único país concretamente abrangido pela nova disposição constitucional. Acontece, porém, que até ao momento a lei habilitante do exercício do sufrágio (lei do R.E.) in Artº 1 da Lei Eleitoral da Assembleia da República, Edição anotada e comentada. Maria de Fátima Abrantes Mendes e Jorge Miguéis. 2005 5
República Portuguesa e a República Federativa do Brasil, por cidadãos brasileiros residentes e recenseados no território nacional que lhes concede direito de eleger e ser eleito para a Assembleia da República representa um inspirador caminho. Com esta disposição, Portugal constitui-se como um dos escassos exemplos mundiais que, ainda que de uma forma restrita, permite a participação política de cidadãos estrangeiros nas eleições legislativas. Há que aprofundar esta opção de inclusão política. Note-se, no entanto, que esta abertura à participação política tem como pressuposto, a existência de uma efectiva ligação a uma comunidade de destino. Esta abertura à participação não pode ser insensata nem demagógica. Embora a Constituição não o imponha actualmente e seja difícil uma métrica inequívoca, a plena participação política dos imigrantes deve estar condicionada, a nosso ver, à aquisição do estatuto de residente de longa duração, previsto na Lei 23/2007 e que define um período de cinco anos de permanência legal para adquirir esse estatuto e demonstrem fluência na língua portuguesa, para além de outros requisitos. De igual forma, não é admissível a constituição de partidos políticos de base étnica ou religiosa, que perverta a lógica integradora deste dispositivo de participação política. Não será para constituir guetos políticos que se fará uma abertura à participação eleitoral dos imigrantes. As democracias liberais mais avançadas devem ter a coragem de dar um passo de abertura à plena participação política activa e passiva e em todos os actos eleitorais de imigrantes residentes de longa duração. 6
Portugal, com as necessárias alterações constitucionais e na lei eleitoral, pode e deve estar na primeira vaga dos países que - sabiamente - optarão por esta expansão da democracia. Com tranquilidade e com base num consenso social e político alargado, deve esforçar-se por viabilizar, a curto prazo, as alterações legislativas necessárias para a plena participação política dos imigrantes. Desta forma, garantirá não só a concretização de um princípio justo, mas também uma melhor integração dos imigrantes, fazendo-os sentirem-se parte de pleno direito da nossa sociedade e estimulando-os a assumir, com maior convicção, as suas responsabilidades cívicas. Assim, faremos convergir princípios e interesses. E ganharemos todos com isso. 7