Fradique Mendes, o algo nuevo que mirar

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Fradique Mendes, o algo nuevo que mirar Roberto Loureiro Universidade de Coimbra Foi nas páginas da edição de 29 de agosto de 1869 da Revolução de Setembro que Carlos Fradique Mendes estreou a sua poesia. Os leitores descobriram que tratava-se de um poeta satânico que vivia em Paris. Em O primeiro Fradique Mendes, Joel Serrão considera que, para Eça de Queirós, Antero de Quental e Batalha Reis, Lisboa era a capital de um reino estagnado. Para três jovens recém-saídos de Coimbra e cobertos de aspirações políticas, literárias e filosóficas, o cenário Regenerador lisboeta era deplorável. Serrão diz que os três procuravam, e de caminho se procuravam, como é timbre da natureza de seres inquietamente jovens 1. Batalha Reis conta em Antero de Quental: In Memoriam o estado de espírito deles na altura: pensando na apathia chineza dos lisboetas, immobilisados, durante annos, na contemplação e no cinzelar de meia ideia, velha, indecisa, em segunda mão, e em mau uso, pensámos em supprir uma das muitas lacunas lamentaveis creando ao menos. Um poeta satanico. Foi assim que appareceu Carlos Fradique Mendes 2. Desejando obter o respeito junto aos imitativos publicistas, o trio entendeu ser necessário criar uma escola que fosse admirada algures no estrangeiro. Assim surgiram os Satânicos do Norte, grupo que teria Fradique como expoente. No dia já referido, A Revolução de Setembro apresentou quatro poemas: Serenata de Satã às Estrelas, escrito por Eça, A Velhinha, por Batalha Reis e, por fim, Soneto e Fragmentos da Guitarra de Satã, compostos por Antero 3. Como introdução aos poemas, uma breve apresentação do autor: Habitando Paris durante muitos anos, conheceu o Sr. Fradique Mendes pessoalmente a Carlos Baudelaire, Leconte de Lisle, Banville e a todos os poetas da nova geração francesa. O seu espírito, em parte cultivado por esta escola, é entre nós o representante dos satanistas do Norte. [...] Esta tendência do 1 Serrão 1985, p. 11. 2 Reis 1896, p. 461. 3 Matos 1988, p. 276.

108 SVĚT LITERATURY / O MUNDO DA LITERATURA exuberante subjectivismo artístico que pela quebra das derradeiras peias do formulismo e da tradição clássica se espraia libérrimo até à licença, espontâneo e pessoal, até ao individualismo exagerado, para o que concorre especialmente o caótico da concepção filosófica, social e estética dos tempos... 4. O satanismo de Fradique tem origens na crise filosófico-religiosa que atingiu Antero em 1863. Nas Odes modernas, ele afirma ser o bardo de um deus encoberto, uma maneira de eliminar os laços que o unia aos valores católicos tradicionais que lhe foram incutidos no ambiente familiar, como em quase toda a sociedade portuguesa de então. Antero é da primeira geração que conscientemente abdicou desses valores, apesar de educado dentro desses preceitos, pois mantinha em seu íntimo um sentimento místico e religioso que não conseguira eliminar totalmente. Esse tumulto interno o levou a reconhecer que A natureza em mim é conservadora: só o espírito é que é revolucionário 5. Em 1870, Batalhas Reis e Eça produziram O mistério da estrada de Sintra, obra composta com algum romantismo (o enigma policial) e de satanismo decadentista (Fradique Mendes reaparecido ). No ano seguinte, Eça proferiu a sua conferência O realismo como nova expressão da arte. Na juventude, esse movimento representa as idas e vindas de um jovem autor à procura do seu caminho, e que deseja expressar ideias e convicções próprias; na maturidade, a experiência formula uma nova visão de mundo e estabelece um autor comprometido com o diálogo questionador dos valores e dos temas de um século de mudanças políticas e científicas, mas ainda preso a dogmas religiosos e filosóficos. Carlos Reis afirma em Eça de Queirós: consul de Portugal à Paris que 1888 foi um ano crucial para a literatura queirosiana. Neste ano Eça publicou os dois volumes de Os Maias e, nas páginas d O Repórter, ressurgiu este personagem único na sua extensa galeria: Carlos Fradique Mendes. Com ele, o autor orquestrou o projeto mais ambicioso e mais conseguido da sua carreira. Fradique não é um mero personagem. Houve um esforço de construção de uma personalidade que antevê a heteronímia pessoana. Fradique encarna o enaltecimento à originalidade embrulhado pelo dandismo. Joel Serrão define o personagem como um representative-man das inquietações do tempo europeu que era o seu 6. Eça faz referências à toilette de Fradique em várias passagens como um dos instrumentos que o individualiza em relação aos demais. Em uma carta escrita ao seu alfaiate em Lisboa, E. Sturmm, Fradique escreve sobre a indumentária e a influência do vestuário sobre o pensar. Define como banal a sobrecasaca produzida pelo alfaiate para todos os clientes, e a relaciona ao que há de pior na sociedade portuguesa a figura do conselheiro: a sua tesoura está assim mesquinhamente aparando a originalidade do País! Você corta, em cada casaco, a mortalha de um temperamento 7. A concepção literária do segundo Fradique é considerada por Carlos Reis como elitista e anti-realista. Nas palavras de Eça, a arte é um resumo da Natureza feito 4 Apud Serrão 1985, p. 257. 5 Ibidem. 6 Ibidem 1985, p. 163. 7 Queirós s/d, p. 47.

roberto loureiro 109 pela imaginação 8. Sua personalidade é marcada por posições ideológicas e culturais distantes de outras criações de Eça de Queirós e do próprio autor. Seu caráter é contrário ao Eça realista-naturalista, daí o intervalo de cerca de dezoito anos entre as aparições n O mistério da estrada de Sintra e a publicação de sua correspondência. Reis chama a atenção para a autonomia de Fradique em relação ao seu criador e para o fato de não ser visto como personagem de ficção, o que o aproxima do estatuto e da linguagem da heteronímia 9, apesar de ser claro para qualquer leitor razoavelmente íntimo da obra queirosiana que os textos de Fradique foram escritos por Eça, o que não é o caso de um heterônimo e por isso foi utilizado acima o verbo aproximar : para estabelecer a posição de Fradique em relação à heteronímia. Luís Viana Filho reproduz trecho de uma carta de Eça para a mulher, D. Emília, em que ele não esconde o entusiasmo pelo sucesso do seu personagem e registra que em Lisboa as mulheres estavam encantadas com Fradique e que o sucesso da personagem/personalidade era gritante nos cafés, lojas, teatros e esquinas: O pior é que se crê geralmente que Fradique existiu, e é ele, não eu, que recebe estas simpatias gerais 10. Essa autonomia ideológica faz com que a criatura tenha pensamento próprio e a isso Carlos Reis chama de fradiquismo e entende o termo como um dos ismos que abundaram na cultura europeia do final dos oitocentos. Por isso, Fradique seria uma estratégia de abastecer de autonomia alguém que não pode ser considerado um personagem de ficção. Isabel Marnoto levanta a hipótese de que, sendo Eça de Queirós um grande escritor, teria ele vislumbrado alguns sinais de fogo que iriam marcar o último século do milênio? 11. Ela acredita que há vários sinais marcantes do século XX encontrados na personalidade de Fradique: o culto da efemeridade, a preferência pela Forma em detrimento da Ideia, o apelo visual, a constante passagem entre culturas, o gosto pela multiplicidade, uma intensa necessidade de percorrer o mundo, a fugacidade da vida, a busca pela informação e pelo conhecimento. O século XIX foi um tempo de estímulos intensos, sensações descartáveis e sentimentos efêmeros. Isabel Pires de Lima registra ainda que Fradique tem uma aguda consciência do caráter perecível de todo ato humano, inclusive o amor. No estudo A correspondência de Fradique Mendes: o brilho do efêmero, Isabel Marnoto lembra que as diversas alusões a flores contidas na obra e as reflexões sobre a brevidade da vida confirmam o entendimento de transitoriedade presente no pensamento fradiquista. Carlos Fradique Mendes é divertido. Seja pela ironia, pelas provocações, exageros, posturas, ambiguidades ou caprichos. Assim são as suas cartas. Ele escreve a engenheiros, alfaiates, membros dos Vencidos da Vida e da Geração de 70, à madrinha e à Clara. Esta merece quatro cartas que vão da aproximação ao desenlace de um romance. Charles Bazerman diz que pelo enunciado podemos identificar as intenções do emissor desde que a mensagem seja compreendida corretamente. Fradique esfor- 8 Queirós 2014, p. 151. 9 Reis 2000, p. 93. 10 Apud Viana Filho 1984, p. 273. 11 Marnoto 2000, p. 111.

110 SVĚT LITERATURY / O MUNDO DA LITERATURA ça-se para ser compreendido e as cartas começam da seguinte maneira: na primeira ele a trata por minha adorada amiga ; na segunda Clara é chamada de meu amor ; a terceira começa com minha muito amada Clara ; e a última anuncia o adeus de Fradique com minha amiga. Nesta carta, ele se despede de Clara justificando o fim do romance devido à efemeridade da vida e de tudo o que a envolve. Fradique parte para uma longa viagem com a finalidade de terminar uma relação que não deveria nunca ser maculada por uma agonia tormentosa e lenta 12, porque a lei do universal desaparecimento e fim das cousas 13 em breve iria exercer a sua força. Para ele, esse amor deveria morrer enquanto fosse viçoso e não por obra de recriminações, amargor, impaciências, arrependimentos e saciedade; fala ainda em paixão e lealdade, mas é certo que vai acabar. Assim, o fradiquismo é a configuração do diálogo de um autor com o seu tempo. Um tempo de enormes transformações, avanços e recuos no campo da política, nas relações sociais, na ciência, na filosofia e na literatura. Um tempo em que um observador agudo como Eça de Queirós percebeu ser a base de uma nova ordem para a sociedade do século seguinte e via esses acontecimentos finisseculares com o pessimismo natural de quem vive determinada época e apresenta dificuldades para reconhecer os avanços testemunhados por si próprio. Este movimento retrospectivo é natural nos finais de século. Reavaliar a trajetória para descobrir novos caminhos é um processo recorrente na vida dos homens. Eça concluiu que o que seu país mais precisava naquela altura era olhar para si próprio para descobrir que somente Portugal poderia levar Portugal ao lugar que lhe cabia no mundo. De fato, Fradique acompanhou as evoluções promovidas por Eça na sua literatura desde jovem, mas não é possível esquecer que ele é a materialização de um projeto literário recriado por um autor que, em sua maturidade artística, achou de realizar uma síntese das suas ideias frente a um século ainda preso ao nacionalismo romântico e a uma igreja que, apesar de ver diminuído o seu poder, ainda mantinha considerável influência na mentalidade do seu tempo. Não deixa de ser presumível reconhecer Carlos Fradique Mendes como personificação dos Vencidos da Vida. Isabel Pires de Lima, no artigo Vencidismo e dandismo ou o heroísmo decadente de Carlos Fradique Mendes (1993), diz que o autor das Lapidárias é uma espécie de personagem-síntese, personagem-símbolo, personagem-aspiração dos Vencidos da Vida 14. Realmente, Fradique encarna diversas facetas das personalidades dos componentes do renomado grupo jantante. Assim, este personagem pode também ser visto como um porta-voz dos Onze do Bragança, um grupo de homens de espírito que frequentemente enxergamos nas páginas d A Correspondência de Fradique Mendes. A convicção da Geração de 70 na necessidade de refundir Portugal como um todo, bem como a constatação dos Vencidos de que haviam falhado na vida, passava por conclusões como o entendimento da decadência de um país atrelado ao passado, de uma sociedade deitada sobre os triunfos pretéritos e de uma mentalidade conse- 12 Querós 2014, p. 325. 13 Ibidem. 14 Lima 1993, pp. 29 30.

roberto loureiro 111 lheira. Neste panorama, não vale a pena escrever, compor e/ou analisar. Assim, só restava a Fradique peregrinar pelos continentes e pelas filosofias; e aos Vencidos, jantar no Bragança. Na introdução biográfica do editor das cartas de Fradique Mendes, o leitor se familiariza com o personagem a partir da formação intelectual, das convicções e dos posicionamentos do intrépido açoriano diante dos valores e das grandes questões que dominavam a sociedade europeia e portuguesa no final do século XIX; sobretudo, segundo Carlos Reis, no que diz respeito ao seu posicionamento ideológico em relação a Portugal, à sua cultura e à sua evolução histórica recente 15. Fradique vê o liberalismo, que trouxe a democratização e o nivelamento de comportamentos como o responsável pela degeneração dos costumes em Portugal; assim como os politiquetes, que deram cabo do Portugal vernáculo. É nesta primeira parte d A correspondência que Eça traça a personalidade de Fradique, manifestada por um incisivo livre-pensar, pela peregrinação entre continentes, pelo incessante culto do exótico, pelo dandismo exuberante, pelo horror à banalidade burguesa. Tudo em Fradique é superlativo e plural. Aríete da Modernidade emergente, Carlos Fradique Mendes está ideologicamente distante do naturalismo, orientado para um esteticismo tipicamente finissecular 16, que sinaliza a relação entre Eça e a modernidade. Educado por um padre, um coronel francês e um conterrâneo de Kant, Eça demonstra que, pelos preceptores que o orientaram, Fradique seria tudo, menos um homem trivial. Fradique é um super-homem oitocentista. Domina vários idiomas, percorre continentes, luta em guerras remotas, ama e se faz amado por mulheres exóticas, conhece os grandes vultos da literatura, tem uma inteligência superior e original. Em Portugal, Eça reconheceu que o liberalismo não mudara drasticamente os rumos do país e que tanto históricos quanto regeneradores não promoveriam mudanças drásticas. Assim, Portugal mantinha-se preso ao passado histórico; a sociedade refém de opiniões obsoletas; a igreja se esforçando para manter o atraso e a universidade empenhada em eliminar qualquer sopro de rebeldia. Tudo isso associado a uma geração de autores mansos e imitativos. A situação era tão gritante para ele que, na carta-prefácio em que autoriza a publicação de uma nova edição de O mistério da estrada de Sintra, Eça diz que aquela é uma obra com todos os erros que um autor não deveria cometer, mas que pela audácia com que foi escrita poderia servir de inspiração à nova geração de escritores e terminava dizendo que aos vinte anos é preciso que alguém seja estroina, nem sempre talvez para que o mundo progrida, mas ao menos para que o mundo se agite 17. Claro está que esse não é o Eça de garras à mostra do padre Amaro ou do Basílio, mas um autor ciente das dificuldades e das possibilidades que eram oferecidas no seu tempo. Fradique estudou na Universidade de Coimbra e na Sorbonne antes de viver em Paris, onde tornou-se célebre como filósofo de boulevard. António Sardinha em 15 Reis 2000, p. 26. 16 Ibidem, p. 28. 17 Queirós s/d, p. 9.

112 SVĚT LITERATURY / O MUNDO DA LITERATURA O espólio de Fradique, ensaio contido em Eça de Queirós In Memoriam, diz que havia nele uma inteligência excessiva e uma compulsão pela análise. Para Álvaro Lins, Fradique aproveitou o que havia de melhor em seu século: as peripécias, as excentricidades, a toilette, a modulação entre paixão e saciedade nos sentimentos, a paixão por tudo o que era exótico e ainda a improvisação e superficialidade do conhecimento e cultura, a ligeireza, o diletantismo, a fé na natureza, na ciência e na razão e, sobretudo a ausência de fé 18. Com essa proposta, Eça de Queirós sugere que o homem do século que se aproximava, sobretudo em Portugal, deveria ter uma postura independente em relação a tudo que o cerca e uma nova forma de enxergar o mundo, para que mudasse o panorama do século que então terminava. Um século em que o homem ainda permaneceu preso aos dogmas religiosos, às convenções sociais antigas e submetido a uma tradição ultrapassada que já não fazia sentido para a Geração de 70. O editor d A Correspondência de Fradique Mendes conta-nos sobre Juan Ponce de Léon que, cansado do marasmo, partira em viagem marítima para reencontrar uma novidade na paisagem. Novidade encontrada no Mundo Novo, mais especificamente na Flórida, o que provocou no conquistador o seguinte comentário: Gracias te sean, mi S. Juan bendito, que hé mirado algo nuevo! 19. Ao ler As Lapidárias, o narrador d A Correspondência, exclamou: Graças te sejam dadas, meu Fradique bendito, que na minha velha língua hé mirado algo nuevo! 20, e, já na finalização da introdução à correspondência, o narrador assim justifica as razões para a edição da prosa epistolar de Fradique Mendes: Nos tempos incertos e amargos que vão Portugueses destes não podem ficar para sempre esquecidos, longe, sob a mudez de um mármore. Por isso eu o revelo aos meus concidadãos como uma consolação e uma esperança 21. BIBLIOGRAFIA Bazerman, Charles. Gêneros textuais, tipificação e interação. São Paulo: Cortez, 2005. Lima, Isabel Pires de. Fradique e o dandismo. In MATOS, A. Campos (ed.) Suplemento ao Dicionário de Eça de Queiroz. Lisboa: Caminho, 2000. Lima, Isabel Pires de. Vencidismo e dandismo ou o heroísmo decadente de Carlos Fradique Mendes. Revista da Universidade de Aveiro / Letras, n.os 6, 7, 8. Aveiro: Universidade de Aveiro, 1993. Lins, Álvaro. História literária de Eça de Queirós. Rio de Janeiro: José Olympio, 1939. Marnoto, Isabel. A correspondência de Fradique Mendes: o brilho do efêmero. In Matos, A. Campos (ed.). Dicionário de Eça de Queirós. Lisboa: Caminho, 1988. Matos, A. Campos (ed.) Suplemento ao Dicionário de Eça de Queiroz. Lisboa: Caminho, 2000. Moura, Helena Cidade. Nota final. In QUEIROZ, Eça de. A correspondência de Fradique Mendes. Lisboa: Livros do Brasil, 2002. Queirós, Eça de. A Correspondência de Fradique Mendes. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2014. 18 Lins 1939, p. 181. 19 Queirós 2014, p. 82 20 Ibidem, p. 84. 21 Ibidem, p. 197.

roberto loureiro 113 Queirós, Eça de. Cartas inéditas de Fradique Mendes e mais páginas esquecidas. Porto: Livraria Lello &Irmão Editores, s/d. Queirós, Eça de. O crime do padre Amaro. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2000. Queirós, Eça de. O primo Basílio. Livros do Brasil, 2000. Queirós, Eça Ortigão, Ramalho. O mistério da estrada de Sintra. Porto: Lello &Irmão Editores, s/d. Real, Miguel. O último Eça. Lisboa: Quidnovi, 2006. Reis, Carlos. Eça de Queirós: consul de Portugal à Paris (1888 1900). Paris: Centre Culturel Calouste Gulbenkian, 1997. Reis, Carlos. O essencial sobre Eça de Queirós. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2000. Reis, Jaime Batalha. Annos de Lisboa (Algumas lembranças). In Sampaio, Alberto et al. Anthero de Quental: In Memoriam. Porto: Mathieu Lugan Editor, 1896. Sardinha, António. O espólio de Fradique. In Amaral, Eloy do Martha, M. Cardoso: Eça de Queiroz: In Memoriam. Coimbra: Atlântida Livraria Editora, 1947. Sequeira, Gustavo de Matos. Fradique Mendes, símbolo dos Vencidos da Vida. Lisboa: s/n., 1942. Serrão, Joel. O primeiro Fradique Mendes. Lisboa: Livros Horizonte, 1985. Simões, Maria João. Eça e Fradique: as cartas e os seus temas. Queirosiana, n.o 2. Tormes: Fundação Eça de Queirós, 1992. Viana Filho, Luís. A vida de Eça de Queirós. Rio de Janeiro: Nova Fronteira 1984 (2ª ed.). FRADIQUE MENDES, THE ALGO NUEVO QUE MIRAR Carlos Fradique Mendes is a fictional character whose journey very much follows that of Eça de Queirós during various moments of his career between 1869 and 1900. The Correspondence of Fradique Mendes is the result of this mirroring. Although it has not been published as a book by the author, it nonetheless offers a way of understanding the world that dominated the late nineteenth century. The article seeks to demonstrate how Eça used Fradique to lay out his expectations for the century that was about to begin. KEY WORDS / PALAVRAS-CHAVE: Eça de Queirós; Fradique Mendes; Modernity. Eça de Queirós, Fradique Mendes, modernidade. Endereço profissional: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra Endereço eletrónico: roberto.loureiro.jr@gmail.com