O PRINCÍPIO DO NON BIS IN IDEM E SUA APLICABILIDADE NOS PROCESSOS DISCIPLINARES MILITARES

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Transcrição:

O PRINCÍPIO DO NON BIS IN IDEM E SUA APLICABILIDADE NOS PROCESSOS DISCIPLINARES MILITARES ALEXANDRE HENRIQUES DA COSTA 1º Tenente da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Autor das obras Direito Administrativo Disciplinar Militar, Manual Prático dos Atos de Polícia Judiciária Militar, Tropa de Choque Aspectos Legais e Roteiro de Investigação e Registro dos Crimes Militares. I ASPECTOS GERAIS. Este princípio compreende a proibição de uma pessoa ser punida pelo mesmo fato mais de uma vez na mesma esfera de atribuição, ou seja, dentre as esferas penal, civil e administrativa, o sujeito ativo de um ato ilícito poderá sofrer as sanções na respectiva esfera, se possível, e apenas por uma vez.

Quanto à esfera disciplinar na Administração Pública, houve uma preocupação do Supremo Tribunal Federal quanto a esta questão, culminando na expedição da Súmula 19, que determina que é inadmissível segunda punição ao servidor público, baseada no mesmo processo em que se fundou a primeira 1. Há que se ressaltar, entretanto, que a esfera administrativa é subdividida em disciplinar, ora objeto de estudo, e de ordem pública. Uma conduta de um agente público pode atingir na esfera administrativa dois bens jurídicos diversos ao mesmo tempo, um resguardado pela legislação geral e outro pela de natureza disciplinar, a exemplo do Regulamento Disciplinar. exemplo pragmático: Mais especificamente quanto à Administração Pública Militar, como Como visão interpretativa, o militar do Estado que desrespeita regras de trânsito, por exemplo, fica sujeito às sanções estabelecidas no Código de Trânsito Brasileiro e às previstas neste Regulamento porque com sua conduta maltrata valores fundamentais, determinantes da moral policial militar e deveres policiais militares. Como se sabe, o poder de polícia é coercitivo e conta com medidas punitivas indicadas nas 1 In Alexandre Henriques da Costa e outros. Direito Administrativo Disciplinar Militar. São Paulo: Saraiva, 2004; p. 135

diversas leis que o disciplinam, entre elas, a que instituiu o Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/97). Tais medidas punitivas são as sanções do poder de polícia, que não devem ser confundidas com as sanções do poder disciplinar. Desta forma, quem exerce o poder de polícia deve estar aparelhado de meios coercitivos para as hipóteses de desobediência às leis em geral e às ordens da autoridade competente. Por outra banda, Poder Disciplinar é a faculdade de punir internamente as infrações funcionais dos servidores e demais pessoas sujeitas à disciplina dos órgãos e serviços da Administração. Assim, enquanto as sanções do poder de polícia têm caráter erga omnes, por seu turno, só alcança os servidores da Administração. Neste passo, é obvio que as normas previstas no Código de Trânsito Brasileiro seriam inanes e ineficientes se não fossem coercitivas e não houvesse o amparo de sanções para os casos de desobediência às regras de trânsito. Essas assertivas se destacam ainda mais quando se recorda que a sanção imposta com base no Código de Trânsito Brasileiro, por desrespeito à norma de trânsito, atinge o indivíduo enquanto pessoa, integrante da sociedade, enquanto que a penalidade administrativa disciplinar, o atinge em sua condição de funcionário e agente público, de serviço ou de folga, quando na ativa ou na inatividade.

Com efeito são, processos diferentes, com escopos distintos, sendo um fundado exclusivamente na norma positiva violada em relação à atuação da polícia administrativa, e outro alicerçado em normas deontológicas da Administração 2. Constata-se, nos fundamentos do estudo supra, que a aplicação de uma sanção administrativa de ordem pública não induz bis in idem quando da aplicação posterior de uma sanção de natureza disciplinar, inexistindo qualquer vício de ordem material; entretanto, se duas sanções disciplinares forem aplicadas em face de uma mesma conduta notória restará caracterizada a ilicitude da segunda punição. II DA ANULAÇÃO OU REVOGAÇÃO DO ATO DISCIPLINAR. Efetivada uma reprimenda disciplinar, não poderá a autoridade administrativa determinar uma segunda punição a um militar do Estado caso a primeira tenha sido cumprida, ou iniciado o seu cumprimento, a exemplo dos casos de sanção de cumprimento continuado, como as restritivas de liberdade. Assim, iniciado o cumprimento de uma sanção, será impossível reverter-se este ato, não se podendo revogá-lo. 2 DA COSTA, Alexandre Henriques e outros. Op. cit, p. 135.

As sanções aplicadas, mas ainda não cumpridas, podem ser anuladas ou revogadas pela Administração ex officio ou por provocação da parte interessada, mas aquelas em exaurimento não poderão ser revistas, sob pena de incorrer-se em bis in idem. Isto não engloba apenas a aplicação de sanções em sede de procedimento disciplinar, mas também aquelas de natureza depurativa conseqüentes de um processo regular instaurado pela anulação ou revogação daquele. Caso um militar do Estado tenha iniciado o cumprimento de uma sanção de permanência disciplinar não poderá este ato ser revogado visando à instauração de um processo regular 3, pois uma segunda sanção lhe seria aplicada em bis in idem, o que é condenável pelo ordenamento jurídico pátrio. Entretanto, se a sanção aplicada for revogada ou anulada ex officio pela Administração sem ter-se iniciado o seu cumprimento, poderá um novo processo ser instaurado, possibilitando-se a aplicação de sanção mais gravosa, o que não poderá ocorrer na via recursal, conforme será estudado no Capítulo 9 deste trabalho. Conforme ensina Ronaldo João Roth, não podem ser revogados os atos vinculados, nem os que tenham exaurido os seus efeitos, nem aqueles em que a autoridade deixou de ser competente, em virtude de um recurso, nem os que geraram direitos adquiridos (Súmula nº 473, do STF) 4. Pode-se dizer então que, nestes casos, os atos 3 Artigo 71 do Regulamento Disciplinar. 4 Os recursos no regulamento disciplinar da polícia militar paulista e a reformatio in pejus. Revista Direito Militar da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais. Ano VI, nº 33, Janeiro/Fevereiro de 2002, p. 32.

disciplinares tornaram-se irreversíveis pela Administração, fazendo verdadeira coisa julgada administrativa 5. Neste sentido o princípio do non bis in idem não atinge somente o direito disciplinar militar sob o prisma material, mas também sob o aspecto processual, pois proibida estará a instauração de outro processo administrativo em face da mesma conduta cuja sanção aplicada teve início quanto ao cumprimento. Importante será à autoridade disciplinar verificar se a sanção aplicada foi cumprida ou não, ainda que parcialmente, quando de sua atuação revisional ex officio ou em razão da interposição de qualquer remédio jurídico, pois poderá o ato praticado não ser objeto de reanálise em face de sua irreversibilidade. Esta irreversibilidade do ato disciplinar pela Administração em face do cumprimento da sanção aplicada depende de avaliação da espécie da reprimenda aplicada, pois o início do cumprimento de cada uma é diverso da outra. O cumprimento da sanção de advertência 6 tem início com a admoestação verbal do militar pela autoridade disciplinar competente, ou seja, com a explanação da transgressão disciplinar cometida e da sanção aplicada, o que poderá ser feito de forma 5 In Ronaldo João Roth. Ibidem, p. 32. 6 Artigo 15 do Regulamento Disciplinar.

particular ou ostensiva. Iniciado este ato, restará irreversível a sanção aplicada sob pena de bis in idem. Quanto à sanção de repreensão 7, esta tem início e exaurimento quando de sua publicação, sendo esta a circunstância que a torna irreversível para a Administração, não se possibilitando a revisão ex officio da punição. A permanência disciplinar e a detenção 8 têm como início de cumprimento o momento em que se efetiva a restrição de liberdade, determinando-se assim a imutabilidade da sanção aplicada. Assim sendo, in exemplis, se ao militar foi aplicada a sanção de dois dias de permanência ou detenção, com o início de seu cumprimento não poderá a Administração revê-la ex officio. Quanto à proibição de uso de uniformes para os inativos 9, esta se inicia e se torna imutável ex officio para a Administração a partir do momento em que está o punido proibido de usar o uniforme no quantum de pena aplicada. 7 Artigo 16 do Regulamento Disciplinar. 8 Artigos 17 a 21 do Regulamento Disciplinar. 9 Artigo 25 do Regulamento Disciplinar.

III CONCLUSÃO. Conforme explanado, iniciado o cumprimento das sanções disciplinares restará o ato disciplinar imutável pela Administração, salvo por meio de interposição de recursos, ocorrendo o que alguns doutrinadores chamam de coisa julgada administrativa. Neste sentido, impossível à administração rever o ato disciplinar exaurido in malam partem, restando como nulo e ilícito uma segunda atuação disciplinar, seja processual ou material, por parte da Administração Pública.