Eugénio de Andrade PRIMEIROS POEMAS AS MÃOS E OS FRUTOS OS AMANTES SEM DINHEIRO prefácio de Gastão Cruz ASSÍRIO & ALVIM
EUGÉNIO DE ANDRADE: «O REAL É A PALAVRA» A reedição de As Mãos e os Frutos de Eugénio de Andrade, em 1960, na colecção de poesia de Iniciativas Editoriais, onde alguns dos mais marcantes conjuntos de poemas da segunda metade do século XX português foram publicados, de Sobre o Lado Esquerdo de Carlos de Oliveira a Dezanove Recantos de Luiza Neto Jorge, foi um acontecimento de extraordinária importância, no quadro da evolução da nossa poesia. Surgindo no ponto de viragem entre as duas décadas em que se define a superação da herança pessoana por jovens poetas que tinham de encontrar uma voz própria, ou vozes próprias, a segunda edição de As Mãos e os Frutos, no mesmo ano em que Carlos de Oliveira publicava Cantata, António Ramos Rosa Viagem através de Uma Nebulosa e Voz Inicial, e uma geração ainda mais nova despontava já, com A Noite Vertebrada de Luiza Neto Jorge, insere-se nesse processo poético, apesar de o livro ter aparecido, pela primeira vez, em 1948. Eugénio de Andrade, que nele encontrara o seu evidente momento de maturação, trazia para a poesia portuguesa uma revalorização da palavra, enquanto suporte poético da imagem e da metáfora, como unidade essencial do discurso, que era também o projecto, muitas vezes teorizado nos próprios poemas, dos autores mencionados, de outros, como Sophia de Mello Breyner Andresen, e ainda dos que se afirmariam ao longo da década de 1960: Herberto Helder, Ruy Belo, Fiama Hasse Pais Brandão. Quando, em 1966, Eugénio de Andrade reúne, pela primeira vez, toda a sua obra poética, é com As Mãos e os Frutos que esta se ini- 9
cia, numa desvalorização óbvia dos dois livros anteriores, Adolescente (1942) e Pureza (1945), dos quais só muito mais tarde resgataria um escasso total de dez textos, sob o título de Primeiros Poemas. Trata-se de um caso semelhante ao da recuperação de Turismo por Carlos de Oliveira, o seu livro de estreia (1942), também ele ausente de Poesias (1962), a primeira reunião de toda a obra deste poeta. E Carlos de Oliveira foi, porventura, ainda mais longe, no processo de reescrita e depuração empreendido. Relidos hoje, os Primeiros Poemas, curtos e exactos, acabam (e coisa semelhante sucede em Carlos de Oliveira, no que à reelaboração do livro de 1942 se refere) por mostrar talvez maior proximidade com a poesia de fases mais recentes de Eugénio de Andrade do que em relação aos livros que imediatamente lhes sucederam. Um bom exemplo da concentração procurada pelo poeta é «Acorde» (há, em Ostinato Rigore, um poema, igualmente muito despojado, intitulado «Acorde perfeito»): Onde passou o vento são altas as ervas, e os olhos água só de olhar para elas. Existe, nos poemas que, dessa fase inicial, Eugénio de Andrade entendeu conservar, um acentuado pendor lírico, com o amor, ou, talvez mais precisamente, o coração, no centro de tudo, e com os sentimentos plasmados numa relação purificadora do corpo com a natureza, como, numa dimensão mais extensa e profunda, voltará a acontecer em As Mãos e os Frutos e, de uma forma geral, em toda a subsequente poesia do autor. Imagens como «vento», «ervas», «água», «fonte», «amieiro», «ribeiro», «pinheiros», «moscardo», «rãs», «fruto», «folhas», «juncos», «olival», entre outras, sinalizam esta dezena de poemas, conferindo- 10
-lhes um enquadramento paisagístico e tornando mais concreta e atenta aos sentidos a experiência sentimental que eles registam. Como em Sophia, nos seus primeiros livros, também aqui o «puro», o «limpo», são o objectivo a alcançar, o estado ideal de uma natureza considerada mais perfeita do que o homem, que a ela pertence: Fonte pura, fonte fria (Onde vais, minha canção?) Fonte pura assim queria que fosse meu coração: fluir na noite e no dia sem se desprender do chão. Outro poema, «Quase nada», é uma crítica ao amor, à sua vulnerabilidade, devida à ignorância de que o silêncio é mais limpo que as palavras, o que implica a admissão de que a própria poesia é limitada pela sua natureza verbal. É esta que a impede de atingir o silêncio para que ela tenderia, se tal não correspondesse ao seu próprio desaparecimento: O amor é uma ave a tremer nas mãos de uma criança. Serve-se de palavras por ignorar que as manhãs mais limpas não têm voz. Este conceito está, evidentemente, no cerne da arte poética de Eugénio de Andrade. Não podendo ser silêncio, tendo de utilizar as palavras, a poesia irá exigir-lhes a pureza, a claridade, a transpa- 11
rência, que as poderão talvez aproximar dessa impossibilidade de ser uma poesia sem voz. Títulos como Ostinato Rigore, O Peso da Sombra ou Branco no Branco apontam nessa direcção, definindo o caminho para uma quase imponderabilidade (embora, em certos momentos, o poeta acabe por insurgir-se contra isso, lançando mão de uma agressividade vocabular e de uma adesão à realidade mais dura ou mais sórdida, que são a excepção que confirma a linha largamente dominante). Porém, a própria imponderabilidade não corresponde a nada que verdadeiramente caracterize a poesia de Eugénio de Andrade: «a sombra» é densa, afinal, e o seu «peso» é aquele que, num soneto de Cantata, Carlos de Oliveira, poeta de quem Eugénio de Andrade está, algumas vezes, muito perto, na primeira fase de ambos, identificou como o peso das palavras. Aproximar as palavras do silêncio será, pois, investi-las da sua máxima densidade, do seu sentido e do seu peso absolutos, de modo que não as rodeiem nenhumas excrescências, ou melhor, de forma que nenhumas palavras sejam excrescências no discurso poético. Em 1960, os poemas de As Mãos e os Frutos continuavam a ser poemas novos, apesar de Eugénio de Andrade ter, entretanto, publicado mais quatro livros: Os Amantes sem Dinheiro (1950), As Palavras Interditas (1951), Até Amanhã (1956), Coração do Dia (1958), este último na mesma colecção de Iniciativas Editoriais em que o livro de 1948 seria reeditado. As Mãos e os Frutos não tinha, realmente, perdido nada do brilho que fascinara os seus primeiros leitores. E estava em plenas condições de, como aconteceu, deslumbrar a geração seguinte à de Eugénio de Andrade. Os poemas falavam, de forma muito particular, a uma juventude que crescera num país sufocado pela repressão exercida por um governo fascista e um catolicismo reaccionário, que tentavam impor uma moral de sacristia, juntamente com todas as formas de opressão imagináveis. 12
OS AMANTES SEM DINHEIRO Tinham o rosto aberto a quem passava. Tinham lendas e mitos e frio no coração. Tinham jardins onde a lua passeava de mãos dadas com a água e um anjo de pedra por irmão. Tinham como toda a gente o milagre de cada dia escorrendo pelos telhados; e olhos de oiro onde ardiam os sonhos mais tresmalhados. Tinham fome e sede como os bichos, e silêncio à roda dos seus passos. Mas a cada gesto que faziam um pássaro nascia dos seus dedos e deslumbrado penetrava nos espaços. 86