OLHARES SOBRE O PATRIMÔNIO EDIFICADO: O CONCEITO DE VALOR

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Transcrição:

OLHARES SOBRE O PATRIMÔNIO EDIFICADO: O CONCEITO DE VALOR RIBEIRO, Rosina Trevisan M. ; ANDRADE, Inês El-Jaick; COELHO, Carla M. T.; MELO, Carina M. S.; PIMENTEL, Viviane L. 1. A MISSÃO DA ARQUITETURA E AS PERCEPÇÕES DA SIGNIFICAÇÃO CULTURAL DO OBJETO ARQUITETÔNICO A arquitetura tem como finalidade organizar e ordenar o espaço visando atender a um programa de necessidades. Além de resolver as questões funcionais, a cada fase do trabalho o arquiteto está sempre tomando decisões plásticas para solucionar os problemas encontrados nesta sua tarefa, considerada um processo artístico. A tarefa artística requer uma reflexão, uma tomada de escolhas, de comparações e de concentração para exprimir a sua verdade em função do ambiente cultural em que se manifesta e em função das premissas estéticas que expressa. A elaboração de um projeto arquitetônico é um processo que envolve muito mais testes e experimentações do que simplesmente uma "uma boa idéia". Nestas tomadas de decisões configura-se o projeto edificado, ora reconhecido como uma obra de arte. A arte é uma das linhas mestras de desenvolvimento da civilização, a qual em função da época em que a edificação foi construída, da técnica empregada e do contexto físico e social em que está inserida passa a ser um testemunho do saber artístico humano e do momento histórico em que foi criado, um patrimônio cultural edificado. Assim, a arte edificada (arquitetura), talvez a mais exemplar das artes onde as forças entre vanguarda e poder econômico estão em constante confronto e apoio, deve ser interpretada como um documento, ou melhor, monumento fundamentado na realidade social de seu tempo, a qual seus valores culturais estão presentes e representados, seja de forma clara ou não. Para Giulio Argan 1, são os homens que atribuem valor às "pedras", logo cabe aos que se dedicam ao campo da historia da arte (artistas, arquitetos, historiadores, antropólogos, etc.) explicar o significado intrínseco dos fatos artísticos, através da atribuição 1

de valores. No entanto, tais valores têm atribuição subjetiva e não estão isentos de influências da realidade histórica em que vivemos. As noções modernas de monumento histórico, de patrimônio e de preservação só começam a ser elaboradas a partir do momento em que surge a idéia de estudar e conservar um edifício pela única razão de que é um testemunho da história e/ou uma obra de arte 2. Para Jacques Le Goff 3, tanto a concretização quanto a permanência de um monumento tem como característica a de "ligar-se ao poder de perpetuação, voluntária ou involuntária, das sociedades históricas (é um legado à memória coletiva)". Neste sentido o monumento enquanto testemunho (ou documento histórico) de uma cultura não deixa de ser um registro cultural de uma época, pois não é "qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de força que aí detinham o poder" 4. Para a utilização deste monumento como fonte histórica é necessário reconhecer as forças de poder que agiram sobre sua concepção, execução e perpetuação. Se hoje, consideramos historicamente interessantes os fenômenos artísticos de todas as épocas e de todas as civilizações, isso se deve ao fato de que os artistas de nosso tempo [...] escolheram seus pontos de referência histórica em toda a área fenomênica da arte, com a liberdade mais isenta de preconceitos 5. Acreditando que a arte é produto de um processo dialético, faz-se história da arte não apenas porque se pensa que se tenha de conservar e transmitir a memória de fatos artísticos, mas porque se julga que o único modo de objetivá-los e explicá-los seja o de historiá-los. Tais fatos urbanos não se restringem mais somente aos palácios ou outras construções ligadas à perpetuação de poder (Igrejas, castelos, edificações institucionais, etc.), mas também à produção popular (edificações isoladas ou em conjunto). Atualmente, as interpretações do que seja um objeto arquitetônico munido de significação cultural é muito abrangente, mas nem sempre isso foi regra geral. Não só o juízo de valor da obra de arte muda com o tempo e à medida do conhecimento do historiador, mas também a sua conceituação. Inicialmente, as categorias para tombamento nacional (Decreto Lei nº 25 de 30/11/1937) restringiam-se a quatro linhas básicas, diretamente relacionadas a disciplinas de arte, 2

história, arqueologia e etnografia: Livro do Tombo de Belas Artes, Livro do Tombo Histórico, Livro do Tombo Arqueológico e Livro do Tomo Etnológico. Apenas aqueles exemplares que se enquadrassem nestas categorias fixas, em especial na de belas-artes e no de histórico, eram considerados para tombamento, ficando de fora obras utilitárias (engenharias) e o chamado patrimônio imaterial (danças, lendas, cantos, festas populares e etc.). Somente a partir de 1979 são incorporados novos conceitos de bem patrimonial: patrimônio material e patrimônio imaterial. Assim, a conceituação de monumentos é ampliada, passando a serem consideradas as obras arquitetônicas que sejam um único ou pelo menos um excepcional testemunho de uma tradição cultural ou para uma civilização existente ou perdida, que sejam um exemplar de uma tipologia arquitetônica, ou uma paisagem que ilustre um significante estágio da história humana e finalmente, que sejam um importante representante de uma ocupação tradicional humana ou da apropriação do território de uma cultura, especialmente quando este tornou-se vulnerável pelo impacto de seu entorno. 2. IDEALIZAÇÂO DO PATRIMONIO NO SÉCULO XX NO BRASIL Na história moderna da preservação, a atribuição de valor dos monumentos históricos está diretamente ligada à característica de excepcionalidade do exemplar, isto é, a representatividade ou o caráter de exemplaridade do bem patrimonial. Desde os primeiros anos de atividade do Serviço do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (SPHAN, o atual IPHAN) até a década de 1970, os exemplares reconhecidos para serem salvaguardados eram aqueles representantes de um passado histórico nacional oficial. Esse passado era calcado no ideal da elite intelectual moderna de então, que afirmava a nacionalidade tanto na preservação dos marcos do passado, como na construção de símbolos do presente. Convivendo com essa ambiguidade, os intelectuais do patrimônio baseavam suas escolhas em determinados preceitos estéticos de "boa arquitetura" e na identificação canônica dos exemplares "não artístico" (principais alvos: arquitetura eclética e a neocolonial), sem contextualizá-los ou historiá-los. Assim, a atribuição de valores, estava subordinada aos 3

ideais daquele contexto histórico e de poder, o qual privilegiava o valor estético em detrimento do valor histórico. Na cidade do Rio de Janeiro, além do IPHAN outras instituições ligadas às esferas públicas, a partir de 1960, também desenvolvem políticas de manutenção e proteção de bens patrimoniais, tais como o Instituto Estadual de Patrimônio Artístico e Cultural (INEPAC) e o Departamento Geral do Patrimônio Cultural (DGPC). A partir de 1970, inovadoras propostas de preservação de tecidos urbanos ecléticos surgem dentro do DGPC, chegando a se concretizar em 1980 com o projeto "Corredor Cultural". Constava da proposta de preservação de sítios urbanos e não apenas os marcos arquitetônicos isolados, de valor histórico e cultural, na cidade do Rio de Janeiro. Embora datem de 1960 as primeiras tentativas de tombamento do conjunto eclético da Avenida Rio Branco como testemunho nacional, o conjunto de edificações ecléticas do inicio do século XX não foi imediatamente considerado dentro do IPHAN. O Projeto do "Corredor Cultural" foi posteriormente ampliado para diversas áreas de interesse cultural na cidade. A partir desta experiência são criadas as Áreas de Proteção Ambiental (APA s), hoje denominadas Áreas de Proteção do Ambiente Cultural (APAC s), para proteger complexos edificados no município, que embora não fossem dotados de valor excepcional que justificassem o seu tombamento mantinham características de conjunto, detectadas como de importância para a ambiência (testemunho histórico e estético) e identidade cultural de sua área (valor afetivo). 3. VALOR HISTÒRICO E VALOR ARTÍSTICO: atributos do reconhecimento do patrimônio A obra é sempre a mesma, mas as consciências mudam 6. O nosso patrimônio edificado normalmente está classificado em duas categorias básicas: monumento histórico que constitui toda e qualquer edificação tombada e inscrita no Livro de Tombo Histórico, e monumento artístico, aquelas tombadas e inseridas no Livro de Tombo 4

Artístico. A distinção destas classificações implica na atribuição de valor histórico e de valor artístico, podendo um mesmo monumento estar inscrito em ambos os livros. Tais valores são considerados como valores de ordem da cultura, no entanto outros valores simbólicos podem ser conferidos a esses bens (material ou imaterial), tais como: a atribuição de valores econômicos, utilitários e afetivos. Isto porque o "olhar" do indivíduo ou grupo de indivíduos que o interpreta, leigos ou eruditos, é subjetivo levando-se muitas variáveis em consideração. No entanto, os valores consagrados - valor histórico e estético -, fazem parte da identidade coletiva de uma comunidade. Segundo Riegl 7, para que seja possível estabelecer os limites da intervenção em um patrimônio cultural edificado precisamos identificar que valores são determinantes daquele bem. Denomina-se histórico tudo que existiu em algum momento. A isto vinculamos a idéia de que o que alguma vez existiu não pode voltar a existir, e que tudo que existiu constitui um elo imprescindível e indispensável de uma cadeia evolutiva. Quanto ao monumento artístico, todo ele é, ao mesmo tempo, um monumento histórico, pois representa um determinado estado da evolução das artes plásticas, para a qual não se pode encontrar nenhuma substituição equivalente. Além do valor histórico-artístico que todas as obras antigas (monumentos), possuem, sem exceção, para nós existe também o valor puramente artístico que se mantém independente da posição da obra de arte na cadeia histórica da evolução. Riegl em relação às intervenções possíveis num monumento e os valores a ele atribuído, coloca que o monumento que possui um valor de antiguidade não pode sofrer qualquer tipo de intervenção já que ser antigo (velho) é o que determina o seu valor, já naquele que possui valor histórico ele admite ações de conservação pois o valor histórico de um monumento será tanto maior quanto menor seja a alteração sofrida em seu estado fechado original, o que possuiu imediatamente depois de sua gênesis (mostra-se a nós como se pertencesse ao presente). As deformações e as deteriorações parciais são para o valor histórico um fator acessório molesto e desagradável. 5

As deteriorações produzidas até o momento pelas forças da natureza já são irremediáveis e do ponto de vista histórico tampouco devem ser eliminadas, mas as deteriorações que se podem produzir a partir de agora e no futuro, devem ser evitadas de modo categórico, porque dificulta o trabalho científico de restituir a obra humana originária em seu estado de gênesis. Deste modo, deve-se cuidar de que o estado que nos há chegado hoje os monumentos se conserve na maior medida possível. Quanto ao valor rememorativo intencionado, tem desde o princípio, isto é, desde que se erige o monumento, o propósito de não permitir que este monumento se converta nunca em passado, de que se mantenha sempre presente e vivo na consciência da posteridade. Aspira à imortalidade, ao eterno presente, ao permanente estado de gênesis, ou seja, as forças destruidoras da natureza devem ser combatidas e os efeitos paralisados. Sendo assim Riegl, admite ações de restauração, sem as quais os monumentos deixariam rapidamente de ser intencionados, por conseguinte, o valor de antiguidade é por natureza inimigo mortal do valor rememorativo intencionado. Da mesma forma, é admitida a restauração nos monumentos de valor instrumental, visto que é em si absolutamente indiferente ao tratamento que se dê ao monumento, enquanto não afete sua existência e, além disso, não pode fazer nenhuma concessão ao valor de antiguidade. (ex.: um edifício antigo que ainda hoje possui uma utilização prática, deve manter-se em um estado tal que possa abrigar ao homem sem por em perigo sua segurança, assim todo indício de deterioração deverá ser tratado). 4. CONCEITO DE VALOR AUXILIANDO EM SUA CONSERVAÇÂO O termo autenticidade já havia sido incorporado na Carta de Veneza, em 1964, como recomendação primordial para a conservação da essência da obra de arte. No entanto, o debate internacional sobre o assunto é bastante recente, e vem ocorrendo principalmente devido à ampliação do conceito de patrimônio e como resposta à tendência à homogeneização causada pela globalização. Em 1994 ocorreu em Nara, no Japão, uma 6

conferência específica sobre o tema, onde a autenticidade foi definida como o principal fator de atribuição de valores aos monumentos. Durante este encontro, foram estipulados parâmetros que deveriam guiar as soluções dos profissionais nas intervenções, convencionalmente denominados "teste de Autenticidade" 8, a fim de garantir que os atributos originais dos monumentos (juízo de valor conferido) não fossem perdidos: a autenticidade da forma (problemas que comprometem a autenticidade; reconstruções), a autenticidade do material (evitando a utilização de materiais agressivos, como o concreto), a autenticidade da técnica (está intimamente ligado aos materiais), a autenticidade da função (até então não era considerada) e a autenticidade do sítio (contexto urbano que está inserido). Em 1995, a Carta de Brasília destaca que a autenticidade dos valores se manifesta, se alicerça e se mantém na veracidade dos patrimônios que recebemos e que transmitimos à posteridade 9. Coloca que a intervenção deve resgatar o caráter do edifício ou do conjunto sem alterar sua essência e equilíbrio, mas sim enaltecendo seus valores. Autenticidade Autenticidade da forma Autenticidade da função Autenticidade do material Autenticidade do sítio (ou entorno) Autenticidade da técnica 2 Itens incluídos a partir da Conferência de Nara 1994 Figura 01 - Esquema da introdução dos novos conceitos presentes na Carta de Nara. A preservação de bens não deve objetivar torná-los peças de museus, pois esta concepção poderia levar-nos a conferir ao monumento uma propriedade de vida e morte. Pois, uma vez considerando que o monumento teve sua época de apogeu, o que hoje se conserva seria apenas o resquício ou casca da sombra do que foi um dia. Revitalizar os bens preservados 7

através do uso é reintegrá-los à comunidade e perpetuá-los às gerações futuras acrescidos com novas cargas de memória. No entanto, tais cargas devem ser compatíveis com os seus valores específicos, ou seja, com os quais foram originalmente atribuídos como significação cultural destinado para a preservação. Neste aspecto encontra-se a validade e finalidade do bem tombado e preservado, pois são livros que falam, sem que seja necessário lê-los e cuja última página está em branco para ainda ser escrita pelas futuras gerações. 1 ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 2 FONSECA, Maria Cecília Londres. O Patrimônio em Processo. Rio de Janeiro: UFRJ/IPHAN, 2005. p.53. 3 LE GOFF, Jacques. História e Memória. 2.ed. Campinas, São Paulo: UNICAMP, 1992. p.536 4 Ibid., p.545. 5 ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p.37. 6 ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p.24. 7 RIEGL, Alois. El culto moderno a los monumentos: caracteres y origen. 2.ed. Madrid, España: Visor, 1999. 8 CLEERE, Henry. The evaluation os autenticity in the context of the World heritage convention. In. UNESCO. Nara Conference on Authenticity: Unesco Worl Heritage Convention, 1994, Nara, Japan. Proceedings... Nara, Japan: UNESCO/ICCROM/ICOMOS, 1994, p. 57-66. 9 CURY, Isabelle (Org.). Cartas patrimoniais. 2 ed. Rio de Janeiro: IPHAN, 2000. p. 324. 8