Discurso científico, poder e verdade. Scientific discours, power and truth

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Transcrição:

ISSN 1981-1225 Dossiê Foucault N. 3 dezembro 2006/março 2007 Organização: Margareth Rago & Adilton Luís Martins Scientific discours, power and truth Valéria Trigueiro Santos Adinolfi Mestre em Educação FE/UNICAMP Professora da Faculdade Inesp e das Faculdades São Sebastião Correio eletrônico: vtrigueiro@yahoo.com Abstract: In this work we want to discuss the scientific discourse and the power relations that produce truth sense by erasing history signals. There is a discursive memory that, by coercion, determines the senses of truth and no-truth, producing and erasing senses. This scientific truth production regime comes from the scientific discourse production. Here we propose some questions about power relations that produce a discourse about the truth and the relation truth-power in scientific discourse according to the Foucault`s text Truth and Power. Key-words: scientific discourse power truth. Resumo: Nesse trabalho queremos discutir o discurso científico e as relações de poder que produzem sentido de verdade pelo apagamento dos sinais da história. Há uma memória discursiva que, pela coerção, determina os sentidos de verdade e nãoverdade, produzindo e apagando sentidos. Esse regime de produção de sentidos de verdade científica vem da produção do discurso científico. Aqui propomos algumas questões sobre relações de poder que produzem um discurso sobre a verdade e a relação verdade-poder no discurso científico de acordo com o texto Verdade e Poder, de Foucault. Palavras-chave: discurso científico poder verdade. 1

Valéria Trigueiro Santos Adinolfi Introdução Apresentamos aqui algumas questões acerca das relações de poder que produzem um discurso de verdade [aqui entendida como conjunto de regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder (2004:13)] e as relações entre verdade e poder no discurso da ciência, a partir de um texto de Foucault intitulado Verdade e Poder, de 1979 em edição de 2004, e alguns diálogos com a Análise do Discurso Francesa.em especial as autoras Jaqueline Authier-Revuz e Eni Orlandi. Ciência metalinguagem científica O discurso científico é essencial para a ciência; romper com as opiniões, com o imediatismo, com a ordem do real e buscar a objetividade e universalidade faz parte da constituição da ciência e sua diferenciação em relação aos demais saberes, ao cotidiano e ao senso comum: Para se constituir, a ciência tem que romper com as evidências e códigos de leitura do real que elas constituem, inventando um novo código... constituindo um novo universo conceitual, um novo sistema de novos conceitos e de relações entre conceitos (Santos, 1989: 32). Esse processo, fundamental para a identificação do saber científico e para a formação do cientista, resulta numa linguagem diferenciada, uma metalinguagem científica que permite o controle e estabelecimento de um conjunto de regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder (Foucault, 2004: 13). Essa metalinguagem científica constitui-se de códigos de circulação restrita à comunidade científica, dominados apenas por seus 2

ISSN 1981-1225 Dossiê Foucault N. 3 dezembro 2006/março 2007 Organização: Margareth Rago & Adilton Luís Martins membros,através de extenso treinamento em si, um processo de assujeitamento a uma formação discursiva específica, própria para o exercício da ciência, através de mecanismos de controle dos sentidos permitidos e não permitidos, de verdade e não-verdade. Os códigos que constituem essa metalinguagem se apresentam ilusoriamente neutros, objetivos, lineares e a-históricos. O cientista se submete à memória do seu saber e se assujeita, se relacionando com essa memória, assimilando o que pode e deve ser dito e o que não pode, ocorrendo aí a inscrição do sentido na história (Orlandi, 1997: 30). O discurso científico é, portanto, um discurso próprio a ser interpretado dentro de uma formação discursiva específica. Formação discursiva e assujeitamento do cientista A formação discursiva é o locus onde arbitrariamente são determinados os sentidos de um discurso, o dizível e o não-dizível, é onde ocorre a produção do sentido de verdade em contraposição aos sentidos nãoverdadeiros. Hetegonênea por natureza, trabalha com sentidos historicamente dados mas ao memso tempo busca apagar essa historicidade ao estabelecer o um-sentido em contraposição ao nãosentido, o sentido verdadeiro excluindo o não-verdadeiro, através de mecanismos de poder. Foucault aponta que o estabelecimento do sentido de verdade é fruto de um processo coercitivo e produtor de efeitos regulamentados de poder (2004: 12). O sujeito se expressa na ilusão de controlar a origem de seu discurso, sem que se dê conta de que o determinante dos sentidos desse discurso é a história, que se manifesta através das diferentes formações discursivas nas quais se 3

Valéria Trigueiro Santos Adinolfi inscreve e das quais não pode se despojar. O próprio sujeito, os sentidos de seus discursos, o dizível e o não dizível são determinados pelas formações discursivas que operam através de memórias discursivas próprias às diversas posições desse sujeito, e mostram as relações de poder que se estabelecem para a determinação da verdade: As formações discursivas são diferentes regiões que recortam o interdiscurso (o dizível, a memória do dizer... O dizível (o interdiscurso) se parte em diferentes regiões (as diferentes formações discursivas) desigualmente acessíveis aos diferentes locutores (Orlandi, 1992:20). O sujeito pertence simultaneamente a múltiplas formações discursivas, de acordo com as diversas posições (de gênero, raça, situação civil, profissão e os mais variados grupos sociais aos quais pertence) que ocupa. Cada formação rege, de forma específica a produção de sentidos permitidos, válidos: Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua 'política geral' de verdade; isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros (Foucault, 2004: 12). As diferentes formações discursivas equivalem à representação imaginária dos lugares sociais de um sujeito, e variam de acordo com a raça, gênero, origem social e situação social atual, profissão e outras formas de classificação, enfim, sua posição. Não meras situações sociais empíricas ou apenas traços sociológicos, mas projeções de formações imaginárias constituídas a partir das relações sociais, que refletem a imagem que se faz, por exemplo, de uma cientista, de um professor, de uma poeta, de um pai, motivo pelo qual Orlandi não menciona situação e sim posição do sujeito em relação ao que diz (1989:130). Os mecanismos de interpretação são definidos de acordo com a posição do sujeito no momento da fala. A mesma palavra tem diferentes significações se dita por um sujeito enquanto cientista ou 4

ISSN 1981-1225 Dossiê Foucault N. 3 dezembro 2006/março 2007 Organização: Margareth Rago & Adilton Luís Martins se dita por esse mesmo sujeito na posição de poeta. Orlandi afirma ainda que: É a formação discursiva que determina o que pode e deve ser dito, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada. Isso significa que as palavras, expressões etc. recebem seu sentido da formação discursiva na qual são produzidas. Na formação discursiva é que se constitui o domínio de saber que funciona como um princípio de aceitabilidade discursiva para um conjunto de formulações (o que pode e deve ser dito) e, ao mesmo tempo, como princípio de exclusão do não-formulável (Orlandi, 1988:108). O sentido de verdade varia conforme as diversas formações discursivas em que aparecem, memórias que determinam os sentidos permitidos para aquelas palavras, memórias que constituem o já-dito, que autorizam certos sentidos e desautorizam outros tantos: considerando que toda palavra, por se produzir em meio ao já-dito de outros discursos, é habitada por um discurso outro (Authier-Revuz 1998:193). Múltiplas formações discursivas, que se relacionam de modo tenso, num embate de sentidos em torno da verdade no interior de cada formação discursiva. Cada discurso é dito no interior de um já-dito, um interdiscurso - lugar em que ocorre outro discurso, polifônico, heterogêneo, que reproduz as tensões do interior da formação discursiva da qual procede. Assim as formações discursivas estabelecem os sentidos do discurso através de mecanismos de permissão e censura, de coerção, e determina o que pode e o que não pode ser dito de certa forma por certo sujeito num determinado momento. O sentido de verdade não é 5

Valéria Trigueiro Santos Adinolfi transparente, linear, mas resulta de coerção e efeitos de poder, e produz também efeitos de poder (Foucault, 2004;12). Verdade e não-verdade: o silêncio e a constituição de sentidos Os sentidos de uma palavra passam também pelo que ela não diz, o que exclui a literalidade de um discurso e tornando o silêncio um objeto de interpretação. Cada grupo social sanciona uns discursos como verdadeiros e outros como não-verdadeiros, de acordo com a sua política geral de verdade (Foucault, 2004:12) Para cada palavra enunciada pelo sujeito há muitas que deixaram de ser ditas, havendo relação direta entre o dito e o não-dito. Só é possível a interpretação de um discurso passando por esse não-dito, esse silêncio. Sem ele não há produção de sentido, pois ele representa a ilusão do um-sentido (a literalidade), ao mesmo tempo em que evidencia o não-um (os vários sentidos). O silêncio sustenta os sentidos e os efeitos de literalidade (Orlandi, 1992: 15), e seu trabalho se dá no lugar do equívoco, do semsentido, do sentido 'outro' e da noção de sentido único, que se relaciona diretamente com a noção de múltiplos sentidos. A construção do sentido único acontece pela existência dos sentidos múltiplos, o dito é determinado pelo não-dito, pelo silêncio que não é ausência de som ou palavras, vazio ou falta, mas condição de produção de sentidos. O silêncio de que falamos aqui não é ausência de sons ou palavras. Tratase do silêncio fundador, ou fundante, princípio de toda significação... O Silêncio de que falamos é o que instala o limiar do sentido. (Orlandi, 1992: 70). São as formações discursivas que determinam o sentido do silêncio: Um discurso não é unidirecional enquanto espaço simbólico, mas traz sempre a possibilidade de outros sentidos, outros textos, 6

ISSN 1981-1225 Dossiê Foucault N. 3 dezembro 2006/março 2007 Organização: Margareth Rago & Adilton Luís Martins ligando a linguagem necessariamente ao silêncio e assinalando a incompletude de todo discurso. O funcionamento do silêncio atesta o movimento do discurso que se faz na contradição entre o 'um' e o 'múltiplo', o mesmo e o diferente, entre paráfrase e polissemia. Esse movimento, por sua vez, mostra o movimento contraditório, tanto do sujeito quanto do sentido, fazendo-se no entremeio ente a ilusão de um sentido só (efeito da relação com o interdiscurso) e o equívoco de todos os sentidos... (Orlandi, 1992: 17). A produção do sentido no discurso da ciência: relações de poder Aqui voltamos ao discurso científico, constituído como uma metalinguagem que silencia os demais discursos possíveis. Na ilusão de saberes cristalizados, a-históricos, universais, neutros e objetivos a ciência se constitui, estabelecendo uma linguagem que pretensamente traz as mesmas características. A comunidade científica é o lugar do estabelecimento desses sentidos, e se constitui uma formação científica com um regime de produção de verdade científica à qual o cientista se assujeita. É pela assimilação de técnicas e procedimentos válidos para a obtenção e produção da verdade, pelo treinamento no uso e reprodução da metalinguagem científica, que se constitui enquanto cientista. Entretanto, a língua do cientista tem sua materialidade específica, não é transparente (Orlandi, 1997: 27), pois tanto ele quanto o discurso científico são, como os demais, heterogêneos em sua essência Essa noção de um discurso único e uno, dotado de objetividade e neutralidade, não passa de ilusão. O cientista se constitui quando se submete, se assujeita aos mecanismos e técnicas de determinação e produção de verdade, do dizível e não-dizível na formação discursiva da 7

Valéria Trigueiro Santos Adinolfi ciência, e por esse processo de assujeitamento, de inscrição num jádito, numa memória discursiva, num já-estabelecido, que é autorizado a falar a partir da posição de cientista. Inscrição num já-dito, já estabelecido, uma memória prévia:...há sempre exterioridade constitutiva: o interdiscurso, a memória, um 'já-dito' anterior à existência de qualquer dizer (Orlandi, 1997: 30). Ao postular um discurso neutro, único, objetivo, a ciência estabelece o que pode ou não ser dito, determinando o gesto de interpretação necessário ao seu entendimento. A ciência é construída a partir de memórias discursivas prévias, de uma formação discursiva que aponta os sentidos possíveis e coíbe os demais sentidos estabelecendo uma metalinguagem técnica, científica. O cientista recebe em seu treinamento os sentidos aceitos para determinadas formulações e os que não são, e dessa forma conhece o que é permitido e o que não é em sua área, através do domínio da metalinguagem específica de sua área, constituída através de uma memória discursiva prévia. O domínio da linguagem técnica é parte importante do aprendizado do cientista... ninguém poderá ser químico, físico ou biólogo sem dominar o jargão de sua área... Mais do que para aos discursos ordinários ou os das ciências humanas, vale certamente para o das ciências exatas a postulação de Pêcheux e Fuchs (1975) de que o significado das palavras e dos enunciados depende do discurso a que pertencem. Repetindo, é nesses discursos, e como conseqüência de um longo e trabalho histórico, que tais palavras e tais enunciados têm uma leitura unívoca, e não em língua portuguesa, inglesa, etc.. Do ponto de vista do treinamento do cientista, parece evidente que ele implica um processo de subjetivação que produz como efeito um assujeitamento às regras do discurso de um grupo institucional... (Possenti, 1997: 20). Ao se constituir, o discurso científico apaga as marcas dos outros discursos possíveis e da historicidade na formação dos sentidos, de 8

ISSN 1981-1225 Dossiê Foucault N. 3 dezembro 2006/março 2007 Organização: Margareth Rago & Adilton Luís Martins onde vem a ilusão de universalidade.ao fazê-lo silencia a história, e aparece como um discurso já pronto, acabado, a-histórico, mediando a relação do cientista com o mundo através da linguagem, determinando os sentidos de sua fala, filiando-o a uma formação discursiva própria, caracterizando-o, interpelando-o enquanto sujeito assujeitado às regras dessa formação discursiva. Nesse processo o qual o discurso científico sob a forma de uma metalinguagem científica - se apresenta como portador de verdade e apaga as relações de poder contidas em seu interior para a determinação desse sentido de verdade e as marcas de historicidade - que, para Foucault, é belicosa, e não lingüística, diz respeito a relações de poder, e não de sentido (2004:05). Há um embate em torno do estatuto da verdade, do conjunto de regras segundo as quais se estabelece o falso e o verdadeiro (2004:13). Essa metalinguagem científica significa poder nas mãos do cientista que a produz, poder esse bem concreto, derivado de seu saber, e que lhe permite interferir politicamente, tanto para o favorecimento quanto para a preservação quanto para a extinção da vida no planeta. Bibliografia AUTHIER-REVUZ, J. Palavras Incertas: as Não-Coincidências do Dizer. 1998. Campinas, Editora da UNICAMP. FOUCAULT, M. Verdade e Poder. In: Microfísica do Poder. 2004. Rio de Janeiro, Edições Graal. ORLANDI, E. P. Discurso e Leitura. 1988. São Paulo, Cortez. 9

Valéria Trigueiro Santos Adinolfi. As Formas do Silêncio: no Movimento dos Sentidos. 1992. Campinas/SP, Editora da Unicamp.. 1997. Leitura e Discurso Científico. Cadernos Cedes. Campinas, ano XVII, nº 41, pp. 25-35. POSSENTI, S. 1997. Notas sobre Linguagem Científica e Linguagem Comum. Cadernos Cedes. Campinas, ano XVII, nº 41, pp 09-24. SANTOS, B. S. S. Introdução a uma Ciência Pós-Moderna. 1989. Rio de Janeiro, Edições Graal. Recebido em dezembro/2006. Aprovado em fevereiro/2007. 10