Raquel Márcia Fontes Martins. O cancelamento das líquidas /l/ e / / intervocálicas no português contemporâneo de Belo Horizonte

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Transcrição:

Raquel Márcia Fontes Martins O cancelamento das líquidas /l/ e / / intervocálicas no português contemporâneo de Belo Horizonte BELO HORIZONTE FACULDADE DE LETRAS DA UFMG Dezembro de 2001

Raquel Márcia Fontes Martins O cancelamento das líquidas /l/ e / / intervocálicas no português contemporâneo de Belo Horizonte Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Lingüísticos da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, como requesito parcial à obtenção do título de Mestre em Lingüística. Área de concentração: Lingüística Linha de pesquisa: D (Estrutura Sonora da Linguagem) Orientadora: Prof a. Dr a. Thaïs Cristófaro Silva BELO HORIZONTE FACULDADE DE LETRAS DA UFMG Dezembro de 2001

Aos meus pais, Estrelas da Vida Inteira

AGRADECIMENTOS À Prof a. Thaïs Cristófaro Silva por sua dedicada orientação, por me ensinar a ter seriedade e comprometimento com a pesquisa, por sempre suscitar em mim o desejo de aprender mais sobre Lingüística. Aos professores José Olímpio Magalhães e César Augusto Reis que me despertaram o gosto pela Fonética e pela Fonologia. Aos Professores Antônio Augusto Farias, César Augusto Reis, Edna Reis, Eunice Nicolau, José Olímpio Magalhães e Luiz Carlos Rocha, pelos ensinamentos valiosos em seus cursos. À Prof a. Evelyne Dogliani Madureira, sempre muito solícita, pelas sugestões e pelo interesse em minha pesquisa. Ao João Henrique Totaro, pelo competente trabalho estatístico e pelas discussões bastante frutíferas. Ao Mário Alexandre Garcia, por ter sido tão prestimoso ao me ajudar na análise acústica. Aos meus colegas de curso, André Rossi, Candice Navarro, Fábio Wenceslau, Lúcia Fernanda Barros e Lúcia Valéria Nascimento, pelos proveitosos momentos de estudo e pela amizade. A minha amiga Luciana, pelo carinho. A minha família mãe, pai, Rudy, Isaac, Carol, Dedé, Mari, Ivana, Luciano e Léo pelo amor incondicional e pelo apoio incomensurável. Ao Wagner, pelo amor, pela compreensão e por ser tão companheiro sempre. A CAPES, pela bolsa concedida durante o curso. Por fim, agradeço em especial aos meus informantes. Sem eles, esta pesquisa não teria sido realizada.

Tudo é vivo e tudo fala, em redor de nós, embora com vida e voz que não são humanas, mas que podemos aprender a escutar, porque muitas vezes essa linguagem secreta ajuda a esclarecer o nosso próprio mistério. Como aquele Sultão Mamude, que entendia a fala dos pássaros, podemos aplicar toda a nossa sensibilidade a esse aparente vazio de solidão: e pouco a pouco nos sentiremos enriquecidos. (...) Oh! se vos queixais de solidão humana, prestai atenção, em redor de vós a essa prestigiosa presença, a essa copiosa linguagem que de tudo transborda, e que conversará convosco interminavelmente. (Cecília Meireles)

SUMÁRIO INTRODUÇÃO... 1 1 CARACTERIZAÇÕES FONÉTICAS E FONOLÓGICAS DAS LÍQUIDAS /l/ E / /... 3 1.0 Introdução... 3 1.1 As líquidas /l/ e / / em posição intervocálica... 3 1.2 Parâmetros articulatórios... 9 1.3 Parâmetros acústicos... 11 1.4 O efeito do cancelamento de líquidas intervocálicas observado acusticamente... 15 1.5 A representação fonológica das líquidas /l/ e / /... 17 1.5.1 O comportamento fonológico das líquidas... 17 1.5.2 Traços distintivos... 19 1.5.3 Teoria de elementos... 21 1.6 Conclusão... 22 2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA... 24 2.1 Introdução... 24 2.2 O cancelamento de líquidas intervocálicas e a análise com foco em clíticos... 24 2.2.1 Introdução... 25 2.2.2 O cancelamento de líquidas intervocálicas e a análise de Corrêa... 25 2.2.3 O cancelamento de líquidas intervocálicas e a análise de Bisol... 27 2.2.4 Conclusão... 31 2.3 O cancelamento de líquidas intervocálicas como um reflexo da estrutura prosódica... 32 2.4 O cancelamento de líquidas intervocálicas como um fenômeno fonológico... 33 2.4.1 Lenição... 34 2.4.2 Motivações internas e externas... 37 2.4.3 Um processo variável... 43 2.5 Conclusão... 45 3 METODOLOGIA... 47

3.1 Introdução... 47 3.2 População e amostra... 49 3.2.1 A capital mineira Belo Horizonte... 51 3.2.2 A Universidade Federal de Minas Gerais... 53 3.3 Coleta de Dados... 53 3.4 Seleção de variáveis... 57 3.4.1 Variável dependente... 57 3.4.2 Variáveis independentes... 57 3.4.2.1 Variáveis independentes lingüísticas... 57 3.4.2.2 Variáveis independentes extralingüísticas... 58 3.5 Levantamento dos dados... 59 3.6 Conclusão... 60 4 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS... 61 4.1 Introdução... 61 4.2 Apresentação geral dos dados... 61 4.3 Variáveis independentes lingüísticas... 64 4.3.1 Padrão acentual (paroxítono e paroxítono)... 68 4.3.2 Posição da líquida em relação ao acento pretônico ou postônico... 69 4.3.3 Qualidade das vogais precedente e seguinte à líquida... 75 4.3.4 Conclusão... 83 4.4 Variáveis independentes extralingüísticas... 83 4.4.1 Sexo... 84 4.4.2 Faixa etária (escolaridade)... 85 4.4.3 Estilo de fala... 86 4.4.4 Área acadêmica... 87 4.4.5 Curso acadêmico... 89 4.4.6 Indivíduo... 90 4.4.7 Correlações entre variáveis independentes extralingüísticas e testes estatísticos feitos com o programa estatístico SPSS... 95 4.4.7.1 Teste-F... 96 4.4.7.2 Teste de variância... 97 4.4.7.3 Teste-qui... 98 4.4.7.4 Teste de desvio-padrão... 100 4.4.7.5 Teste de significância... 101 4.4.7.6 Considerações estatísticas sobre o fator palavra... 101 5 CONCLUSÃO... 105

6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS... 107 ANEXOS... 115

LISTA DE FIGURAS FIGURA 1 Espectograma da lateral ápico-alveolar /l/ do Arrernte... 12 FIGURA 2 Espectogramas da palavra [ka o], caro... 13 FIGURA 3 Espectogramas das líquidas /l/ e / /... 14 FIGURA 4 Elementos que compõem os segmentos /l/ e / /... 22 FIGURA 5 Estrutura do léxico proposta pela fonologia lexical (cf. LEE, 1995: 5)... 28

LISTA DE TABELAS TABELA 1 Variantes (1) e (2) envolvidas no fenômeno de cancelamento de líquidas intervocálicas... 4 TABELA 2 Fonemas consonantais do português brasileiro em contexto intervocálico... 6 TABELA 3 Graus de abertura dos sons... 10 TABELA 4 Freqüências dos formantes (em Hz) das laterais do Arrernte... 12 TABELA 5 Classes naturais apontadas por LADEFOGED (1981: 111) e CHOMSKY; HALLE (1968)...... 18 TABELA 6 Traços distintivos atribuídos às classes vogal, consoante, líquidas e glides... 20 TABELA 7 Elementos apresentados por HARRIS (1990: 12)... 21 TABELA 8 Escala de sonoridade... 38 TABELA 9 Vocábulos do ganda... 39 TABELA 10 Vocábulos do coreano... 39 TABELA 11 Cursos por áreas acadêmicas... 49 TABELA 12 Distribuição dos informantes em 12 células sociais... 51 TABELA 13 As 20 palavras com líquidas intervocálicas utilizadas na entrevista do tipo nomeação de figuras... 55 TABELA 14 Dados da entrevista do tipo conversa livre... 61 TABELA 15 Dados da entrevista do tipo nomeação de figuras... 63 TABELA 16 Dados de todo corpus... 63 TABELA 17 Palavras que tiveram líquida intervocálica cancelada... 65

TABELA 18 Posição da líquida quanto ao acento, em palavras proparoxítonas... 70 TABELA 19 Posição da líquida quanto ao acento, em palavras paroxítonas... 71 TABELA 20 Vogal anterior à líquida : i... 76 TABELA 21 Vogal anterior à líquida: e... 76 TABELA 22 Vogal anterior à líquida:... 76 TABELA 23 Vogal anterior à líquida: a... 77 TABELA 24 Vogal anterior à líquida:... 77 TABELA 25 Vogal anterior à líquida: o... 77 TABELA 26 Vogal anterior à líquida: u... 78 TABELA 27 Vogais posteriores à líquida... 79 TABELA 28 Vogal i... 80 TABELA 29 Vogal e... 80 TABELA 30 Vogal... 80 TABELA 31 Vogal a... 81 TABELA 32 Vogal... 81 TABELA 33 Vogal o... 81 TABELA 34 Vogal u... 82 TABELA 35 Sexo (entrevista do tipo conversa livre)... 84 TABELA 36 Sexo (entrevista do tipo nomeação de figuras)... 84 TABELA 37 Faixa etária (entrevista do tipo conversa livre)... 85 TABELA 38 Faixa etária (entrevista do tipo nomeação de figuras)... 86

TABELA 39 Área acadêmica (entrevista do tipo conversa livre)... 87 TABELA 40 Área acadêmica (entrevista do tipo nomeação de figuras)... 88 TABELA 41 Comparação entre os resultados do fator área acadêmica para a entrevista do tipo conversa livre e a do tipo nomeação de figuras... 88 TABELA 42 Curso acadêmico (entrevista do tipo conversa livre)... 89 TABELA 43 Curso acadêmico (entrevista do tipo nomeação de figuras)... 90 TABELA 44 Indivíduo (entrevista do tipo conversa livre)... 91 TABELA 45 Indivíduo (entrevista do tipo nomeação de figuras)... 93 TABELA 46 Cancelamento de líquidas intervocálicas nas entrevistas do tipo conversa livre e do tipo nomeação de figuras, para alguns indivíduos... 94 TABELA 47 Palavras mais expressivas... 103 TABELA 48 Correlações entre os itens mais expressivos... 103

LISTA DE GRÁFICOS GRÁFICO 1 Teste-F (conversa livre (A) e nomeação de figuras (B))... 96 GRÁFICO 2 Teste de variância (conversa livre (A) e nomeação de figuras (B)) quanto ao não-cancelamento... 98 GRÁFICO 3 Teste-qui (conversa livre (A) e nomeação de figuras (B)) quanto ao cancelamento... 99 GRÁFICO 4 Desvios-padrão das percentagens (conversa livre (A) e nomeação de figuras (B))... 100 GRÁFICO 5 Significância das percentagens (confiança = 95%) conversa livre (A) e nomeação de figuras (B)... 101

RESUMO Este estudo analisa o cancelamento das líquidas /l/ e / / intervocálicas no português contemporâneo de Belo Horizonte: esk la > esk a, f sforo> f sfo. Argumenta-se que esse é um fenômeno incipiente. Propõe-se que tal fenômeno se apresenta como um caso de variação lingüística. Dessa maneira, há uma alternância entre as seguintes formas: variante (1) em que a líquida é mantida (esk la, f sforo) e variante (2) em que a líquida é cancelada (esk a, f sfo). Esta dissertação discute duas propostas teóricas principais para a abordagem da mudança lingüística: o modelo neogramático e o modelo da difusão lexical. Dentro da perspectiva neogramática, como é o som que regula a mudança sonora, o cancelamento de líquidas intervocálicas é considerado um processo fonológico. Sendo assim, a seguinte regra poderia ser predita: o cancelamento das líquidas /l/ e / / ocorre, opcionalmente, quando tais líquidas figuram em contexto intervocálico. Dentro da perspectiva difusionista, como é a palavra que regula a mudança lingüística, considera-se que o fenômeno em estudo se aplica nos itens lexicais. Palavras com o mesmo ambiente fonético podem ou não ser afetadas por uma mudança. Depende da história de cada vocábulo. Contudo, depois de iniciada a mudança de uma palavra, o contexto fonético pode ser ativado, funcionando como um estabilizador da mudança (cf. OLIVEIRA, 1992). Os dados analisados foram obtidos de entrevistas com 24 informantes, nascidos ou residentes em Belo Horizonte, há pelo menos 20 anos. Os informantes são professores e alunos da UFMG. Este trabalho propõe que os fatores indivíduo e curso acadêmico do informante favorecem a aplicação do fenômeno em estudo. Também a palavra é um fator importante. Constata-se que a sílaba postônica final é o único fator estrutural que influencia o cancelamento de líquidas intervocálicas. Esse contexto fonético pode estar sendo o estabilizador de tal mudança.

INTRODUÇÃO Objetiva-se, neste trabalho, descrever o fenômeno do cancelamento das líquidas intervocálicas /l/ e / / na fala atual do português de Belo Horizonte. Reconhecemos que a língua falada, material de nossa pesquisa, é diversa sob o ponto de vista de que se apresenta em variação e mudança constantemente. Não reina o caos em seu funcionamento. A língua falada funciona porque os falantes, que a utilizam como um instrumento de convívio social, compartilham de um conhecimento comum em relação às variações e mudanças. Há duas perspectivas teóricas principais para a abordagem de fenômenos de mudança, as quais serão discutidas no presente estudo: o modelo neogramático e o modelo da difusão lexical. No modelo neogramático, as regras são categóricas e as poucas exceções são tratadas como casos de empréstimo ou analogia. A mudança sonora é considerada pelos neogramáticos como foneticamente gradual e lexicalmente abrupta. Assim, para eles, uma mudança sonora atinge todas as palavras que apresentam o contexto fonético para essa mudança. As análises históricas do latim como base para o surgimento de línguas românicas são evidências para o modelo neogramático. O modelo da difusão lexical, ao contrário do neogramático, postula que a mudança sonora é foneticamente abrupta e lexicalmente gradual. Cada palavra tem a sua própria história, ou seja, é a palavra que regula a mudança, A mudança atinge as palavras uma a uma, podendo ou não chegar a se completar para todo o léxico. Com base nessas idéias, pretendemos avaliar se o fenômeno em questão é melhor explicado pelo modelo neogramático ou pelo modelo da difusão lexical. O cancelamento das líquidas /l/ e / / intervocálicas no português de Belo Horizonte é um fenômeno incipiente. Ele não é recorrente, não se encontra em um estágio avançado como o fenômeno da palatalização, por exemplo, que ocorre em muitas variedades do português brasileiro. Segundo a regra de tal fenômeno, o fonema /t/ torna-se [t ] toda vez que ocorre diante de /i/. Não há como prever uma regra fonética deste tipo para o

2 cancelamento de líquidas intervocálicas. Ainda assim, tal fenômeno merece ser estudado, já que é atestado em pelo menos uma variedade do português. Esta dissertação foi organizada em cinco capítulos. No primeiro capítulo, discutimos as líquidas /l/ e / / em posição intervocálica, segundo as caracterizações fonéticas e fonológicas. Nas caracterizações fonéticas, abordamos os parâmetros articulatórios e acústicos das líquidas intervocálicas e também o efeito acústico do cancelamento de /l/ e / / em posição intervocálica. Nas caracterizações fonológicas, abordamos o comportamento fonológico de /l/ e / / como classe natural, os traços distintivos de tais líquidas e a teoria de elementos. No segundo capítulo, fazemos uma revisão bibliográfica relevante ao tratamento do tema aqui pesquisado. Discutimos três análises possíveis para o fenômeno do cancelamento das líquidas /l/ e / / intervocálicas: análise com foco em clíticos, análise como um reflexo da estrutura prosódica e análise como um fenômeno fonológico. Ainda neste capítulo, abordamos o modelo da fonologia lexical (cf. KIPARSKY, 1982a, b; MOHANAN, 1982). No terceiro capítulo, apresentamos a metodologia adotada em nossa pesquisa que se fez com base na teoria variacionista. Mostramos os critérios de seleção dos informantes e dos dados e justificamos os fatores externos e internos abordados no presente estudo. No quarto capítulo, apresentamos a análise e discussão dos dados, em que se procedeu à análise quantitativa desses. Finalmente, no quinto capítulo, concluímos o estudo e buscamos indicar pesquisas futuras potenciais. Avaliamos também a pertinência dos modelos que tratam da variação nas línguas naturais.

3 CAPÍTULO 1 CARACTERIZAÇÕES FONÉTICAS E FONOLÓGICAS DAS LÍQUIDAS /l/ e / / 1.0. Introdução Neste capítulo, faremos um estudo sobre as líquidas /l/ e / / intervocálicas nas áreas da fonética e da fonologia. Dentro da fonética, analisaremos os parâmetros articulatórios e acústicos das líquidas /l/ e / / intervocálicas, bem como o efeito do cancelamento de tais líquidas, observado acusticamente. Discutiremos ainda a representação fonológica de /l/ e / /, segundo as três abordagens apresentadas em (1): (1) a. Classe natural b. Traços distintivos c. Teoria de elementos 1.1. As líquidas /l/ e / / em posição intervocálica Os estudos lingüísticos (a lingüística histórica especialmente) já comprovavam o caráter dinâmico da língua, antes de a lingüística ser reconhecida como ciência no início do século passado (cf. FARACO, 1991). Além de se saber que as línguas mudam com o passar do tempo, observou-se que elas são heterogêneas, mesmo em uma análise sincrônica. Essa é uma noção contrária à idéia de homogeneidade em um estado de língua, proposta por SAUSSURE (1916), no Curso de lingüística geral. TARALLO (1990) diz que há uma heterogeneidade sistemática nas línguas, seja em qual for o recorte, diacrônico ou sincrônico. Ele afirma que só é possível entender a estrutura e o funcionamento das línguas levando-se em consideração essa idéia de heterogeneidade.

4 Tendo em vista tal noção, apresentamos neste trabalho um fenômeno que assumimos representar um caso de variação lingüística. Esta pesquisa discute o cancelamento das líquidas intervocálicas /l/ e / / no português contemporâneo de Belo Horizonte. O cancelamento de líquidas intervocálicas é opcional em princípio. Duas variantes concorrem para essa variável: a variante (1) em que a líquida é mantida e a variante (2) em que a líquida é cancelada. Como exemplos que ilustram esse fenômeno tem-se: TABELA 1 Variantes (1) e (2) envolvidas no fenômeno de cancelamento de líquidas intervocálicas Variante (1) Variante (2) l l escola es k la para pa a escola es k a para pa televisão televi za fósforo f sfo o televisão tevi za fósforo fosfo A tabela acima apresenta exemplos da variante (1), em que a líquida é mantida, e da variante (2), em que a líquida é cancelada, para as duas líquidas intervocálicas /l/ e / /. A forma ortográfica das palavras aparece em itálico, na tabela. A forma fonética de cada uma dessas palavras aparece do lado direito de sua respectiva forma ortográfica. Além da perda de uma das duas consoantes líquidas /l/ ou / / em cada uma das quatro palavras apresentadas, há também, em três delas, a perda de uma sílaba, como (2) demonstra: (2) a. televi za tevi za b. pa a pa c. f sfo o f sfo

5 Somente uma palavra, na tabela 1, perde apenas a consoante líquida, nesse caso, a lateral alveolar ou dental /l/: es k la es k a. Podemos perceber que os casos apontados em (2) apresentam líquidas que estão entre vogais iguais. Podemos supor, para os casos de (2), a aplicação do Princípio do contorno obrigatório (PCO). Segundo o PCO, seqüências adjacentes de unidades idênticas são proibidas nas representações fonológicas (cf. CRISTÓFARO-SILVA, 1999b: 208; HARRIS, 1994: 172). Assim, o que há nos casos de (2) é a fusão de segmentos idênticos ou seja, de duas vogais idênticas o que resulta na redução de uma sílaba. Por exemplo, em televi za, a líquida [l] está entre duas vogais idênticas (ee) que, após o cancelamento de tal líquida, são reduzidas a uma única vogal (e): tevi za. Além do contexto intervocálico, as líquidas /l/ e / / podem ocorrer no português brasileiro, em final de sílaba sal, salto, mar, porta [sal, salto, ma, po ta] e em encontro consonantal tautossilábico plano, prato, exemplo, livro [pla no, p ato, eze plo, liv o]. A variação das líquidas no contexto de final de sílaba foi estudada por OLIVEIRA (1983, 1997). CALLOU; MORAES; LEITE (1996) estudaram a variação sonora relacionada ao arquifonema /R/, estando incluído nessa análise o tepe / / em fim de sílaba. A variação sonora das líquidas /l/ e / / em encontro consonantal é discutida em CRISTÓFARO-SILVA (2000a, 2000b) e FREITAS (2000). Estes dois últimos trabalhos sugerem que o cancelamento das líquidas /l/ e / / é opcional em encontros consonantais tautossilábicos. O comportamento das líquidas em contexto intervocálico foi investigado por CRISTÓFARO-SILVA (1999a) e CRISTÓFARO-SILVA; FONTES MARTINS (No prelo). Tais trabalhos apontam que o cancelamento das líquidas /l/ e / / intervocálicas é opcional no português de Belo Horizonte contemporâneo. No entanto, fatores internos e externos não foram avaliados nestes dois estudos. Não houve também um tratamento estatístico na investigação do fenômeno. Dessa maneira, a pesquisa apresentada nesta Dissertação de Mestrado pretende preencher essas lacunas.

6 No português brasileiro, são 19 os fonemas consonantais e todos eles ocorrem em contexto intervocálico, como se pode verificar na tabela 2 abaixo: TABELA 2 Fonemas consonantais do português brasileiro em contexto intervocálico Fonemas consonantais Exemplo ortográfico Transcrição fonética 1- p capa kapa 2- b cabo kabo 3- t gata ata 4- d cada kada 5- k maca maka 6- mago ma o 7- f café ka f 8- v nova n va 9- s caça kasa 10- z casa kaza 11- cocho ko o 12- cajá ka a 13- h carro kaho 14- m dama da ma 15- n lona lo na 16- manha ma a 17- vara va a 18- l tala tala 19- calha ka a A tabela 2 apresenta, na primeira coluna, as 19 consoantes do português brasileiro. Na segunda coluna, são apresentadas, na forma ortográfica, palavras que contêm, cada uma, 1 das 19 consoantes do português brasileiro em posição intervocálica. Na terceira coluna, essas mesmas palavras aparecem transcritas foneticamente. O presente trabalho estuda o cancelamento das líquidas /l/ (lateral alveolar ou dental) e / / (tepe ou vibrante simples) intervocálicas (cf. números 17 e 18 destacados na

7 tabela acima) no português de Belo Horizonte atual 1. Em nossa língua, os fonemas consonantais líquidos são /l/, / / e / /. A líquida / / intervocálica não foi considerada nesta pesquisa. Essa lateral palatal 2 foi analisada por MADUREIRA (1987) que estudou a sua vocalização no português, um caso de lenição. O fenômeno da vocalização da lateral palatal é, segundo Madureira, um caso de variação lingüística. Observa-se que ele ocorre, regularmente, na fala de pessoas de um grupo social menos favorecido, com baixa escolaridade. Exemplos são ilustrados em (3): (3) a. olho o o> oyo b. calha ka a> kaya c. filho fi o> fiyo De acordo com MADUREIRA (1987), na fala de pessoas de um grupo social mais favorecido, com maior escolaridade, não se observa a aplicação do fenômeno da vocalização da lateral palatal. MADUREIRA (1997, 1999) ressalta, contudo, que a vocalização da lateral palatal ocorre na fala destas pessoas de maior escolaridade também, no entanto, em apenas alguns poucos itens que são apresentados em (4): (4) a. velho v o> v yo b. trabalho t a ba o> t a bayo c. palha pa a> paya d. orelha o e a> o eya e. mulher mu h> mu y 1 Em nosso corpus, observamos o cancelamento da nasal /m/ em palavras como, uma, alguma, respectivamente: u ma> u a; aw gu ma> aw gu a. Contudo, essa observação foi feita de maneira assistemática, por isso não trabalharemos com esse caso de cancelamento no presente estudo. SILVEIRA (1971:8) aponta para esse fenômeno quando afirma: Antigamente dizia-se algu a e u a... 2 O segmento / / ocorre somente em contexto intervocálico no português, como nos mostram os seguintes exemplos: bolha /bo a/, milho /mi o/, ovelha /ove a/, etc. Há um único caso em que o / / ocorre em início de palavra: lhama / ama/. Contudo, esse é um caso de empréstimo.

8 Para Madureira, a vocalização nessas palavras ocorre em função de uma especificidade de sentido, pela conotação afetiva desses vocábulos. Neste caso da fala de pessoas com maior escolaridade, o fato de a vocalização não ser regulada foneticamente, ou seja, / / não é vocalizado em todo ambiente intervocálico, faz Madureira optar por uma análise segundo o modelo da difusão lexical. Nesse modelo, a mudança é regulada pela palavra. Discutiremos mais amplamente a teoria da difusão lexical no terceiro capítulo. Um primeiro estudo a ser mencionado aqui, o qual aponta para o cancelamento das líquidas /l/ e / / intervocálicas no português brasileiro, é AMARAL, M. (1999). Amaral analisa o fenômeno da síncope em palavras proparoxítonas do português. Nestes sete exemplos de AMARAL, M. (1999: 216-217), observamos o cancelamento das líquidas /l/ e / / intervocálicas, como ilustrado em (5): (5) a. árvore > [arvi] b. abóbora > [ab ba] c. úlcera > [ursa] d. triângulo > [tria u] e. víspora > [vispa] ~ [vispu] f. fósforo > [f su] ~ [s fi] g. pílula > [pila] AMARAL, M. (1999: 15-16) cita três trabalhos que apresentam, entre outros, casos de cancelamento das líquidas /l/ e / / intervocálicas também 3. Estes estudos são mencionados a seguir. O primeiro destes trabalhos é AMARAL, A. (1955: 53). Em O Dialeto Caipira, este autor apresenta um caso de cancelamento da líquida /l/ intervocálica: ridículo> ridico. O segundo trabalho é O linguajar carioca em 1922, de Antenor Nacentes, em que o autor apresenta os seguintes exemplos de cancelamento com a líquida intervocálica / /: árvore> arve; mármore> marme; pólvora> porva. 3 Como AMARAL, M. (1999) estuda a síncope em palavras proparoxítonas, todos os exemplos apontados por tal autora são de palavras proparoxítonas.

9 O terceiro trabalho mencionado por AMARAL, M. (1999: 15) é MARROQUIM (1934). Marroquim apresenta um exemplo em que há cancelamento da líquida / / intervocálica: pássaro> passo. Como podemos notar, todos os casos, apresentados acima, de cancelamento de /l/ e / / intervocálicos em palavras proparoxítonas se dão em sílaba postônica final. Portanto, consideramos que o fator estrutural tipo de sílaba deve ser investigado na presente pesquisa. Devemos confirmar ou não se o cancelamento das líquidas /l/ e / / intervocálicas, pelo menos em palavras proparoxítonas, ocorre em sílaba postônica final. Além da posição da líquida em relação ao acento (pretônico ou postônico), investigaremos também, como fatores estruturais que podem influenciar o fenômeno estudado, o padrão acentual (proparoxítono e paroxítono) e a qualidade das vogais precedente e seguinte à líquida. 1.2. Parâmetros articulatórios Segundo CRYSTAL (1988: 164), líquido é o termo utilizado por alguns foneticistas na classificação dos sons da fala, referindo-se a todos os sons ápico-alveolares dos tipos /l/ e / /. CRYSTAL (1987: 166) diz que a maior parte das línguas naturais tem pelo menos uma líquida e que 72% das línguas têm mais de uma líquida. Nesta última obra, o autor diz que os segmentos /l/ são mais recorrentes que os segmentos / / nas línguas naturais. As líquidas são chamadas de vocóides silábicos por LAVER (1994: 270) quando funcionam como centro da sílaba, o que não ocorre em português. Em nossa língua, as líquidas funcionam como margem da sílaba, ou seja, as líquidas precedem e seguem o núcleo da sílaba. Na seção 1.5.1, discutiremos o fato de as líquidas se assemelharem com as consoantes. As líquidas estudadas nesta pesquisa são o tepe / / e a lateral alveolar /l/. CRYSTAL (1987: 157) define essas duas líquidas em termos articulatórios. Segundo esse autor, o tepe é produzido com uma única batida do articulador ativo (ápice da língua) contra o articulador passivo (alvéolos). A lateral é definida por Crystal como um segmento

10 produzido com o fechamento parcial em um ponto da boca (alvéolos), de modo que a corrente de ar escape pelos lados desse fechamento. ABERCROMBIE (1967: 145), LAVER (1994: 142, 144), PIKE (1943: 124-125) e TRASK (1996: 198, 350) apresentam conceituações muito semelhantes as de Crystal para as líquidas /l/ e / /. Seguindo CRYSTAL (1987, 1988), NETTO (2001: 49) diz que o termo líquida abrange três tipos articulatórios, apresentados em (6): (6) a. lateral b. tepe ou vibrante simples c. trill ou vibrante múltipla Nesta pesquisa, iremos nos restringir à lateral /l/ e ao tepe / /, como já foi dito anteriormente. LASS (1984) apresenta classes mais largas em que as líquidas tradicionais são agrupadas com os glides. As líquidas, juntamente com os glides, são também chamadas de aproximantes. CLARK; YALLOP (1995: 47) definem uma aproximante como uma articulação potencialmente estável em que a constrição é normalmente maior do que a da vogal, mas não tão grande o bastante para produzir turbulência no ponto de constrição. Clark e Yallop dizem que: seguindo Ladefoged, o termo [aproximante] abrange as categorias tradicionais de contínuo não-fricativo, semivogal e soante. Essas categorias identificam as líquidas (contínuo não-fricativo, soante) e os glides (semivogais). O grau de abertura ou aproximação, distância que se estabelece entre os articuladores passivo e ativo, é um importante caracterizador da articulação de sons. O grau de abertura é discutido por NETTO (2001: 48-53). Tal autor propõe um esquema que demonstra os graus de abertura dos sons. A tabela 3 apresenta um esquema baseado em NETTO (2001: 50): TABELA 3 Graus de abertura dos sons Graus de abertura consoantes 0 oclusivas obstruintes 1 fricativas 2 nasais soantes 3 líquidas aproximantes vibrante glides vogais 4-6 vogais

11 Na primeira coluna da tabela 3, há uma divisão entre consoantes e vogais. O grau de abertura para cada tipo de som da terceira coluna (oclusivas, fricativas, nasais, líquidas, vibrante, glides e vogais) é apresentado na segunda coluna. O grau de abertura varia de 0 a 6 para cada tipo de som. Quanto maior o grau, maior é a distância entre os articuladores ativo e passivo na produção do som. Na quarta coluna, há uma outra classificação para os tipos de consoantes em obstruintes, soantes e aproximantes. Como se pode ver, o grau de abertura das líquidas (juntamente com os glides) só é menor que o grau de abertura das vogais. Esse fato aponta para a similaridade articulatória que há entre vogais e consoantes líquidas. A tabela 3 também mostra que as líquidas, juntamente com os glides, são classificadas como aproximantes por esse autor. Os parâmetros articulatórios das líquidas, evidenciados acima, apontam para o fato de que /l/ e / / se comportam como classe natural. Na seção 1.5.1, discutiremos mais amplamente tal fato. Na próxima seção, abordaremos os parâmetros acústicos das líquidas /l/ e / / intervocálicas. Na seção 1.4, apresentaremos, o efeito do cancelamento das líquidas /l/ e / / observado acusticamente e, assim, terminaremos a caracterização fonética de tais consoantes líquidas. 1.3. Parâmetros acústicos Nesta seção, faremos a caracterização acústica das líquidas /l/ e / / intervocálicas. Tal caracterização servirá para mostrar a semelhança acústica que há entre essas duas consoantes. Comecemos pelas propriedades acústicas da lateral /l/. A lateral é caracterizada acusticamente por formantes bem-definidos. De acordo com LADEFOGED (1996: 193), o primeiro formante é tipicamente de baixa freqüência. O segundo formante pode ter uma freqüência central com larga extensão, dependendo do local da oclusão e da postura da língua. O terceiro formante tem geralmente uma aplitude relativamente forte, como também uma freqüência alta. Se a lateral /l/ é adjacente a vogais, uma mudança abrupta na localização dos formantes pode ser observada em ambas, quando o fechamento médio para a lateral é formado e então realizado. Já as laterais laminais e dorsais, quando adjacentes a vogais, apresentam transições mais lentas nos formantes. A

12 tabela 4 abaixo apresenta as freqüências dos formantes de laterais do Arrernte, segundo LADEFOGED (1996: 194): TABELA 4 Freqüências dos formantes (em Hz) das laterais do Arrernte n F1 F2 F3 F3-F4 1. Lateral lamino-dental 40 391 1811 2891 1080 2. Lateral ápico-alveolar 75 386 1677 3162 1481 3. Lateral ápico-pós-alveolar 37 368 2132 3278 1146 4. Lateral lamino-pós-alveolar 34 376 2324 3096 772 5. Lateral palatalizada retroflexa 26 415 2282 3290 1008 A primeira coluna da tabela 4 apresenta os tipos de laterais do Arrernte. Na segunda coluna, é apresentado o número da amostra para cada tipo de lateral. Nas outras colunas, são apresentados os formantes desses tipos de laterais. Nesta tabela 4, interessam-nos os números relacionados à lateral ápico-alveolar /l/, objeto de nossa pesquisa (cf. número 3 na tabela 4). Esses números podem ser confirmados no espectograma retirado de LADEFOGED (1996: 195), apresentado na figura 1 abaixo: FIGURA 1 Espectograma da lateral ápico-alveolar /l/ do Arrernte

13 LADEFOGED (1996: 231) também apresenta dois espectogramas do tepe / /. Tais espectogramas mostram a palavra espanhola [ka o], caro, o que vemos na figura 2 abaixo: FIGURA 2 Espectogramas da palavra [ka o], caro Os espectogramas da palavra [ka o], caro, acima, mostram a produção do tepe por uma falante feminina do espanhol peninsular (espectograma à direita) e por um falante masculino do espanhol do Peru (espectograma à esquerda). No espectograma à esquerda, há uma elevação no segundo formante, quando o tepe é formado. Essa elevação não ocorre com o tepe do espectograma à direita. Isso mostra que o lugar de articulação difere nessas duas produções do tepe RUSSO; BEHLAU (1993:46), fazendo a análise acústica do português brasileiro, abordam as características acústicas das consoantes líquidas separadamente das outras consoantes. Isso aponta para o fato de que tais líquidas possuem propriedades acústicas semelhantes. As autoras afirmam que, no caso dos sons laterais, a primeira região de ressonância é determinada pelo volume da área posterior à zona articulatória. O trato vocal para /l/ é

14 mais longo e a primeira ressonância ocorre em torno de 350 Hz, a segunda, por volta de 800 Hz e a terceira, em torno de 1.500 Hz. Quanto ao tepe / /, RUSSO; BEHLAU (1993: 46) apontam que o trato vocal é mais curto e, por isso, as ressonâncias são mais agudas que para /l/. O tepe apresenta como primeira ressonância 550 Hz, como segunda, 1.100 Hz e como terceira, 1.800Hz. Segundo Russo & Behlau, a duração da oclusão de / / é, no mínimo, quatro vezes menor que a de /l/. Este é um importante parâmetro acústico que diferencia essas duas líquidas. RUSSO; BEHLAU (1993: 47) apresentam espectogramas em barras de /l/ e / / em sílabas, o que pode ser visto na figura 3 abaixo: FIGURA 3 Espectogramas das líquidas /l/ e / /

15 Na figura 3, o espectograma à direita apresenta a lateral /l/. O espectograma à esquerda apresenta o tepe / /. Em tais espectogramas, há setas indicativas dos tempos de duração das duas consoantes líquidas e os efeitos da coarticulação subseqüente, nos dois casos, a vogal /a/. 1.4. O efeito do cancelamento de líquidas intervocálicas observado acusticamente É importante ressaltar que, auditivamente, não é possível identificar nenhum traço que aponte para o fato de que uma líquida foi cancelada em posição intervocálica. Decidimos, então, investigar o registro acústico. Em pesquisa no Laboratório de Fonética da Faculdade de Letras da UFMG, pesquisamos, acusticamente, o efeito do cancelamento das líquidas /l/ e / / intervocálicas. A investigação foi realizada no programa Macquaire. Tínhamos previamente investigado na literatura o correlato acústico das líquidas /l/ e / / (cf. seção 1.3). Sendo assim, consideramos algumas palavras em que a líquida intervocálica foi cancelada, pois já sabíamos o que observar no sinal como correlato das líquidas. Estas palavras foram agrupadas em: Grupo 1: a. /l/ b. / / Grupo 2: a. cancelamento ocasionou hiato (escola es k la > es k a) b. cancelamento ocasionou formação de ditongo (mole m le > m e) c. cancelamento ocasionou fusão de duas vogais (televisão televi za tevi za ) Nos espectogramas de palavras em que o tepe foi cancelado, não foi possível identificar qualquer traço que fornecesse evidência de que o tepe estivesse presente naquela palavra. O tepe é facilmente identificado acusticamente, pois ocorre um corte no espectograma (cf. figura 2). Contudo, no local esperado para se observar o tepe, nenhum

16 traço residual foi observado. Onde deveria aparecer o tepe (ou o seu resquício) aparecem duas vogais em seqüência. Tais vogais seriam aquelas que eram adjacentes ao tepe antes do seu cancelamento. Por exemplo, ao ocorrer o cancelamento do tepe na palavra a ra (variante(1)), no espectograma, aparecem as vogais / / e /a/ em seqüência: a a (variante (2)). Este caso expressa o tepe adjacente às vogais que ficaram em hiato. Nos casos em que a formação de ditongo ocorre (mole m le > m e) ou em que uma vogal funde-se a outra (televisão televi za tevi za ), também não foi possível identificar traços residuais do tepe. Com relação à lateral, é importante dizer que suas características acústicas mesclamse com as das vogais adjacentes. Sendo assim, diferentemente do tepe, não há uma marca específica no sinal para se proceder à investigação. Em alguns casos, suspeitamos de um traço residual. Contudo, este traço não foi recorrente em todos os dados e, além do mais, o material não nos permitiu afirmar que, de fato, o que se observou no sinal era um traço residual da lateral. Vale apontar ainda que nos casos em que o cancelamento do /l/ implica a formação de hiato, o traço residual foi potencialmente formulado. Nos casos de formação de ditongos e de fusão de vogais, não ocorre traço que nos permita avançar nas investigações. Uma conclusão parcial, que podemos fornecer no estágio atual da pesquisa, é que os indícios encontrados para demonstrar a presença da líquida ou de um traço residual são opacos nos casos em que ocorre o cancelamento. Considerando-se que a investigação detalhada de traços da líquida (ou de algum resíduo relacionado ao cancelamento da líquida) nos desviaria dos propósitos desta Dissertação, optamos por não aprofundar mais a investigação deste aspecto. Reconhecemos que uma investigação sólida sobre este tópico pode contribuir para a discussão dicotômica das perspectivas neogramática e difusionista. Afinal, enquanto a presença de resíduo para as líquidas poderia apontar que a mudança sonora é foneticamente gradual (perspectiva neogramática), a não-presença de resíduo para as líquidas poderia apontar que a mudança sonora é foneticamente abrupta (perspectiva difusionista). Contudo, tal trabalho deve ser empreendido com seriedade e idealmente considerar casos de lenição de líquidas em outras línguas naturais. Este é certamente um tópico importante a ser investigado em trabalhos futuros.

17 1.5. A representação fonológica das líquidas /l/ e / / Devemos levar em conta o fato de que o fenômeno do cancelamento das líquidas /l/ e / / intervocálicas envolve dois segmentos que são muito semelhantes fonética e fonologicamente. A fim de continuarmos demonstrando tal semelhança, iremos agora abordar a representação fonológica das líquidas /l/ e / / segundo a noção de classe natural (seção 1.5.1), segundo a teoria de traços distintivos (seção 1.5.2) e a teoria de elementos (seção 1.5.3). 1.5.1. O comportamento fonológico das líquidas Fonologicamente, em português, as líquidas ocupam a posição de margem na sílaba como as consoantes. As margens de uma sílaba são preenchidas por segmentos que precedem e/ou seguem o núcleo da sílaba (que é tipicamente preenchido por uma vogal). É o que ocorre, por exemplo, na palavra [le ], em que [l] e [ ] ocupam posição de margens da sílaba e a vogal [e] ocupa o núcleo da sílaba. Ainda quanto ao comportamento fonológico das líquidas /l/ e / /, é preciso considerar que elas, tradicionalmente, formam uma classe natural. LADEFOGED (1981: 111) apresenta um esquema que especifica o maior número de classes naturais de acordo com dois sistemas: o de LADEFOGED (1981) e o de CHOMSKY; HALLE (1968). As classes naturais apresentadas pelos dois sistemas podem ser conferidas na tabela 5 4 abaixo: 4 No interior da tabela 5, os espaços marcados com os sinais (+) e (-) se referem aos traços relevantes para identificar as classes naturais em questão. Os espaços em branco não são relevantes para a caracterização de tais classes naturais.

18 TABELA 5 Classes naturais apontadas por LADEFOGED (1981: 111) e CHOMSKY; HALLE (1968) Classes naturais consonatal silábico soante nasal 1. Vogais e glides - + 2. Consoantes + - 3. Vogais - + + 4. Plosivas e fricativas + - - - 5. Nasais, líquidas e glides - + 6. Nasais e líquidas + - + 7. Líquidas e glides - + - 8. Consoantes nasais + - + + 9. Líquidas + - + - 10. Glides - - + - Na primeira coluna da tabela, são apresentadas as classes naturais que apresentam os valores [+] ou [ ] para os traços especificados nas outras três colunas. Como se pode conferir na tabela, Ladefoged e Chomsky e Halle apontam as líquidas como sendo uma classe natural. Deve-se dizer que, no português brasileiro, a classe natural das líquidas é formada não só pela lateral alveolar ou dental /l/ e pela vibrante simples ou tepe / /, mas também pela lateral palatal / / e pela vibrante múltipla [r ]. É o traço [+ anterior] que irá diferenciar /l/ e / /, líquidas aqui focalizadas, de / / e [r ], líquidas não abordadas nesta pesquisa. As líquidas /l/ e / / são [+anterior], enquanto que as líquidas / / e [r ] são [ anterior]. LADEFOGED (1996: 182) diz que as líquidas formam uma classe natural. Segundo Ladefoged, na fonotática das línguas, por exemplo, em encontro consonantal, os segmentos líquidos são os que ocorrem mais freqüentemente. Em português, os encontros consonantais tautussilábicos encontro de consoantes na mesma sílaba se fazem com

19 uma obstruinte (p, b, t, d, k,, f, v) seguida de uma líquida, no caso, /l/ ou / / (cf. CRISTÓFARO-SILVA, 2000a). Este aspecto de as líquidas formarem uma classe natural será explorado posteriormente (cf. seção 2.4.2). 1.5.2. Traços distintivos Os fonemas sons que apresentam uma relação de oposição entre si (cf. CAGLIARI, 1997:12) eram considerados a unidade mínima de análise no estruturalismo. Um dos principais exemplos de estudo estruturalista em que o fonema é visto como unidade mínima de análise é PIKE (1947). Essa proposta de caráter funcional ganhou o nome de fonêmica no estruturalismo. Uma outra proposta teórica estruturalista importantíssima foi o Círculo Lingüístico de Praga. Na área da fonologia, os trabalhos de maior destaque são TRUBETZKOY (1939) e JAKOBSON (1967). O Círculo Lingüístico de Praga propõe que os fonemas não são a unidade mínima de análise. Os fonemas seriam constituídos de partes menores, traços distintivos, e estas partes é que seriam a unidade mínima de análise. Assim, o fonema é entendido como sendo constituído de um feixe de traços distintivos (cf. JAKOBSON; FANT; HALLE, 1951). Os traços distintivos seriam propriedades atribuídas aos segmentos ou fonemas. JAKOBSON; FANT; HALLE (1951) propõem um primeiro inventário de traços distintivos. CHOMSKY; HALLE (1968) propõem um segundo inventário de traços distintivos que é hoje o mais conhecido. Embora tenha sido concebida no estruturalismo, essa proposta de traços distintivos foi assumida pela fonologia gerativa padrão. CALLOU; LEITE (1990: 65) afirmam que os traços [vocálico] e [consonantal] traços inerentes de sonoridade caracterizam quatro grandes classes de sons: as consoantes, as vogais, as líquidas e os glides. Callou e Leite apresentam o seguinte esquema, demonstrado na tabela 6, que atribui os valores [+] ou [ ] para os dois traços nas quatro classes citadas:

20 TABELA 6 Traços distintivos atribuídos às classes vogal, consoante, líquidas e glides VOGAL CONSOANTE LÍQUIDAS GLIDES CONSONANTAL - + + - VOCÁLICO + - + - Os traços [consonantal] e [vocálico] são apresentados na primeira coluna. Nas outras colunas, são apresentadas as quatro classes vogal, consoante, líquidas e glides com os valores [+] ou [ ] para cada um dos dois traços citados. Por esse esquema de Callou e Leite, percebemos que as líquidas apresentam valor positivo para os dois traços: [+consonantal] e [+vocálico]. Isso se deve ao fato de a classe das líquidas apresentar tanto características de vogal (traço [+vocálico]) quanto de consoante (traço [+consonantal]). É somente o traço [lateral] que diferencia /l/ e / /. Os conjuntos de traços distintivos das líquidas /l/ e / / são apresentados em (8), abaixo: (8) Conjuntos de traços distintivos de /l/ e / / +soante +soante +contínuo +contínuo +anterior +anterior /l/ +coronal / / +coronal +sonoro +sonoro -nasal -nasal +lateral -lateral Notamos que o único traço que diferencia as líquidas /l/ e / / é o traço [lateral]. Este traço tem valor positivo para /l/ e valor negativo para / /. Todos os outros traços apresentam valores idênticos para as duas líquidas. Além do traço [lateral], ambas as líquidas são: [+soante], [+contínuo], [+anterior], [+coronal], [+sonora], [ nasal].

21 1.5.3. Teoria de elementos A teoria de traços distintivos caracteriza os segmentos por propriedades individuais que podem ter valor negativo ou positivo. Uma outra proposta de representação segmental é a teoria de elementos. De acordo com a teoria de elementos, um segmento é composto de um elemento ou de uma combinação de elementos. Os elementos são considerados como unidades independentes. Nesta teoria, são adotados os valores positivo (+), negativo ( ) e neutro ( o ) para determinar propriedades dos segmentos. Os segmentos marcados com valor positivo são associados a uma posição nuclear (núcleo). Os segmentos marcados com valor negativo são associados a uma posição não-nuclear (onset ou coda). E os segmentos marcados com valor neutro são associados ou a uma posição nuclear, ou a uma posição não-nuclear. As cavidades de ressonância (cavidade oral, cavidade nasal e cavidade faríngea) caracterizam os elementos. HARRIS (1990: 12), discutindo o fenômeno da lenição consonantal no inglês, apresenta alguns elementos que são mostrados na tabela 7: TABELA 7 Elementos apresentados por HARRIS (1990: 12) Propriedade saliente Propriedades não-marcadas Lugar U o labial aproximante, alto, baixo,... I o palatal não-labial, alto, aproximante,... V o nenhuma não-labial, baixo, alto, aproximante,... R o coronal Tepe,... Maneira o não contínuo glotal,... h o obstruinte glotal,... N + nasal não-labial, aproximante,... Fonte H - L - cordas vogais tensas cordas vogais frouxas

22 A tabela 7 apresenta os elementos apontados por Harris em sua análise sobre a lenição de /t/ que se realiza como o tepe [ ] em contexto intervocálico. Na primeira coluna da tabela 7, são apresentados os elementos. Na segunda coluna, é apresentada a propriedade saliente de cada elemento. Na terceira coluna, são apresentadas as propriedades nãomarcadas dos elementos. Seguindo Harris, podemos caracterizar os segmentos /l/ e / /, na figura 4, como: l x x o R o R o FIGURA 4 Elementos que compõem os segmentos /l/ e / / Os segmentos estudados na presente pesquisa são as consoantes líquidas /l/ e / /. Ao compararmos a representação de Harris para o tepe / / e para a lateral /l/, na figura 4, percebemos que existe uma semelhança entre esses dois segmentos em termos de elementos. Ambos /l/ e / / apresentam o elemento R o em sua composição. O elemento R o expressa a coronalidade. Por essa análise das líquidas /l/ e / / intervocálicas segundo a teoria de elementos, percebemos novamente que tais líquidas formam uma classe natural. Isto porque as representações segmentais de /l/ e / / apresentam o elemento R o. No próximo capítulo, apresentaremos mais evidências que nos permitem assumir que /l/ e / / formam uma classe natural. 1.6. Conclusão

23 A fim de discutirmos o termo líquida, empregado para definir as consoantes /l/ e / /, abordamos, inicialmente, os aspectos articulatórios de tais segmentos. Constatamos então que as consoantes líquidas recebem esse nome, em especial, porque articulatoriamente se assemelham às vogais. É isso que diferencia as líquidas das demais consoantes. Ainda, dentro das características fonéticas, vimos os parâmetros acústicos que definem essas duas líquidas. Uma caracterização de /l/ e / / dentro da fonologia foi apresentada. Primeiramente, demonstramos que essas líquidas, em português, se assemelham às consoantes, porque, assim como estas últimas, as líquidas funcionam como margem da sílaba. É nesse ponto que as líquidas se afastam das vogais, que funcionam como centro da sílaba. Depois, vimos que /l/ e / / formam uma classe natural, motivo pelo qual se faz necessário abordar essas duas consoantes em conjunto, no presente trabalho. Em seguida, apresentamos os traços distintivos de /l/ e / / e então constatamos que é somente o traço [lateral] que diferencia tais consoantes líquidas: /l/ recebe o traço [+lateral], e / / recebe o traço [ lateral]. Por fim, abordamos semelhança entre essas duas líquidas dentro da teoria de elementos. Toda a caracterização das líquidas /l/ e / /, feita neste capítulo, aponta para o fato de que tais consoantes apresentam muitas semelhanças em termos fonético e fonológico. Portanto, justifica-se abordar tanto /l/ como / / no fenômeno do cancelamento de consoantes líquidas intervocálicas, no português de Belo Horizonte atual.

24 CAPÍTULO 2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 2.1. Introdução Neste capítulo, discutiremos orientações teóricas possíveis para o nosso estudo. A fim de analisarmos o fenômeno do cancelamento das líquidas /l/ e / / intervocálicas, apresentamos três abordagens possíveis. A primeira abordagem seria considerar a variante (2) do fenômeno em estudo (forma que tem a líquida cancelada) como um clítico. Para tanto, apresentaremos dois trabalhos que nortearão a nossa discussão sobre o fenômeno da cliticização: CORRÊA (1998) e BISOL (2000). Na segunda abordagem, o cancelamento de líquidas intervocálicas seria analisado como um reflexo da estrutura prosódica. A fim de discutirmos a influência da prosódia no fenômeno aqui pesquisado, apresentaremos um estudo que aborda a relevância da estrutura prosódica na língua italiana (CUTUGNO; SAVY, 1999). A terceira e última abordagem seria analisar o cancelamento das liquidas /l/ e / / intervocálicas como um fenômeno fonológico. Sendo um fenômeno sonoro opcional, temos um caso de variação. A variação e a mudança podem ser abordadas pela visão neogramática ou pela visão difusionista. Estas duas perspectivas serão tratadas posteriormente. A seguir, discutimos cada uma das três abordagens para o cancelamento das líquidas /l/ e / / intervocálicas: 1) fenômeno de cliticização; 2) fenômeno prosódico; 3) fenômeno fonológico. 2.2. O cancelamento de líquidas intervocálicas e a análise com foco em clíticos

25 2.2.1. Introdução O interesse em estudar o cancelamento das líquidas /l/ e / / intervocálicas com foco em clíticos advém da relevância de se discutir dois trabalhos que podem contribuir para o estudo do fenômeno aqui focalizado: CORRÊA (1998) e BISOL (2000). Em sua pesquisa, Corrêa apresenta formas pronominais de 3 a pessoa que têm a líquida /l/ intervocálica cancelada. Por exemplo, de acordo com Corrêa, as formas plenas [eles] e [ la] transformam-se nas formas reduzidas [es] e [ a], respectivamente. Esse autor argumenta que tais formas reduzidas são clíticas. Já Bisol faz uma relação entre a sintaxe e a fonologia, discutindo o status do clítico no componente prosódico, dentro da teoria da fonologia lexical. A discussão dessa teoria interessa à presente pesquisa, pois o fenômeno do cancelamento das líquidas /l/ e / / intervocálicas pode ser avaliado dentro da fonologia lexical. Consideremos os estudos de Bisol e de Corrêa separadamente. 2.2.2. O cancelamento de líquidas intervocálicas e a análise de Corrêa A primeira abordagem que investigaremos está relacionada ao fato de as formas que apresentam o cancelamento de líquidas intervocálicas poderem refletir um comportamento sintático de clítico. Assim, devemos apresentar inicialmente a definição de clítico. De acordo com NESPOR; VOGEL (1986), os clíticos têm dependência fonológica que outros elementos fonológicos não têm; não ocorrem sós, não podendo constituir único elemento da elocução. A etimologia da palavra clítico nos ajuda a compreender o seu sentido. Clítico tem raiz grega e significa inclinar. Segundo HOPPER; TRAUGOTT (1993), uma forma que se inclina em direção a outra. Esta última definição aponta para o fato de o clítico não poder ocorrer sozinho em um enunciado. Consideremos então o trabalho de CORRÊA (1998). Esse autor estuda a alternância das formas plenas (ele(s), ela(s)) e reduzidas (el, éa, éiz, ês, êz, ezi) dos pronomes de terceira pessoa, no português falado na cidade de Belo Horizonte. Segundo Corrêa, as