Compondo Música Viva: Guerra-Peixe e as Quatro Bagatelas (1944) para piano

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Transcrição:

Compondo Música Viva: Guerra-Peixe e as Quatro Bagatelas (1944) para piano MODALIDADE: COMUNICAÇÃO Ana Cláudia de Assis Universidade Federal de Minas Gerais anaclaudia@ufmg.br João Pedro Oliveira Universidade Federal de Minas Gerais jppo@ua.pt Resumo: O presente trabalho tem por objetivo refletir sobre o pensamento composicional de César Guerra-Peixe (1914-1993) no início de sua fase dodecafônica (1944-1949), tendo como referência a obra Quatro Bagatelas(1944) para piano. Pretende-se demonstrar o diálogo entre o compositor, a obra, e seu tempo, ressaltando ainda alguns conflitos vivenciados durante sua trajetória nos 12 sons. Partimos do pressuposto que suas escolhas estéticas expressam e são motivados pela multiplicidade cultural da qual ele participou, muito embora não determinadas por ela. Por meio deste trabalho, desejamos ainda prestar uma homenagem ao centenário de nascimento do compositor, bem como aos 70 anos de seu ingresso no Grupo Música Viva e da obra em tela. Palavras-chave: César Guerra-Peixe. Música Dodecafônica. Quatro Bagatelas para piano. Composing Música Viva: The Quatro Bagatelas (1944) for piano of Guerra-Peixe Abstract: This paper presents some ideas about the compositional thoughts of César Guerra-Peixe (1914-1993) at the beginning of his twelve-tone technique period (1944-1949). The work Quatro Bagatelas for piano (1944) is used as the main reference. We intend to demonstrate the dialogue between the composer, the work, and his time, also emphasizing some conflicts experienced in his twelve-tone music. We assume that his aesthetic choices are motivated and represent the cultural plurality in which he participated, yet they were not totally determined by it. We also wish to pay a tribute to the composer in his 100 th birthday celebrations, as well as the 70 th birthday of Quatro Bagatelas, together with the beginning of his collaboration with the Música Viva ensemble. Keywords: César Guerra-Peixe. Twelve-tone music. Quatro Bagatelas for piano. 1. Do Conservatório ao Música Viva Atraído pela atuação vanguardista do movimento Música Viva 1, cujo objetivo era romper com o marasmo em que se afogava a música brasileira (GUERRA-PEIXE in RAPOSO, 1984: 2), César Guerra-Peixe após ter concluído seu curso de composição no Conservatório Brasileiro de Música 2 (CBM) em 1943, juntou-se a Cláudio Santoro e H.J. Koellreutter formando, a partir de 1944, o núcleo de compositores do Música Viva. Naquela ocasião, o Grupo assumia uma posição ofensiva em relação à música nacionalista vigente, e também ao ensino de composição praticado numa das principais instituições de ensino do país - a Escola Nacional de Música do Rio de Janeiro 3 -, estimulando profunda incompatibilização não só com a própria escola, mas com todo o meio musical conservador carioca (KATER, 2001: 56).

Em depoimentos públicos, divulgados pelos meios de comunicação correntes, Koellreutter justificava a importância do Grupo Música Viva para o cultivo da música contemporânea, apontando como responsáveis pelas deficiências artísticas e pedagógicas no meio musical brasileiro, os professores de composição da Escola Nacional de Música (KATER, 2001: 56, 57). Em 11 de maio de 1944 4, a Revista Diretrizes lançou um texto de Koellreutter intitulado A música e o sentido coletivista do compositor moderno, criticando o trabalho dos compositores brasileiros formados pela referida instituição de ensino: (...). Não se conhece nenhum compositor, que possa ser levado a sério, entre os músicos brasileiros de 20 a 25 anos, formado pela Escola Nacional de Música. Acho que isso demonstra claramente que nada se faz no sentido de preparar verdadeiros profissionais, que se possam dedicar a um mister da mais alta responsabilidade como a música (...). Falta ao Brasil professores competentes, entusiastas da profissão, gente que estude, que trabalhe, que não seja mestre simplesmente - existem muitos mestres presunçosos, falsos mestres, por aí - mas camaradas e colaboradores dos alunos. Mestres tout court (KOELLREUTTER in KATER, 2001: 57). Ataques generalizados como este, suscitaram reações de toda ordem por parte dos professores daquela instituição. Segundo nota de Carlos Kater (2001), alguns destes professores, por iniciativa dos irmãos João Batista e José Siqueira, realizaram um abaixoassinado propondo a extradição de Koellreutter do Brasil. A crítica de Koellreutter dirigida ao ensino da composição e aos jovens compositores diplomados pela Escola Nacional de Música era endossada por Guerra-Peixe, afinal, para ele o músico alemão foi a única pessoa que chegou ao Brasil para nos transmitir informações sobre a música contemporânea da época (GUERRA-PEIXE, 1971: V,11). Além disso, e embora também recém-formado em composição, Guerra-Peixe se sentia resguardado das acusações de Koellreutter, uma vez que sua formação fora realizada, como já mencionado, no CBM, instituição em que o próprio Koellreutter havia lecionado. Fundado em 1936 por Lorenzo Fernandez, o Conservatório tinha como diretriz pedagógica, a transformação e o aperfeiçoamento do ensino musical no país, incluindo o estudo da música moderna como previsto nos primeiros anos de sua fundação. Foi neste estabelecimento de ensino musical que, em 1939, Koellreutter deu início à sua atividade de professor, responsável pelos cursos de flauta, harmonia, contraponto, composição e teoria geral (KATER, 2001: 180). Uma vez integrante do movimento Música Viva, Guerra-Peixe iniciou seu trabalho como compositor anti-nacionalista, expressão utilizada por ele em diversas ocasiões (ASSIS, 2006). Sua primeira obra para piano baseada na técnica dodecafônica, foi Quatro Bagatelas 5. Composta em 1944, ela anuncia algumas características estilísticas de seu dodecafonismo em formação:

(...). Por essa época [1944] o autor não tem a menor preocupação nacionalizante. O seu pensamento estético pode ser resumido no seguinte: um motivo, um acorde ou um ritmo jamais deverá ser feito exata ou aproximadamente duas vezes; pois toda a repetição, tal e qual, ou semelhante, não passaria de mero primarismo (...) (GUERRA-PEIXE, 1971: V, 1). Além disso, as primeiras obras dodecafônicas de Guerra-Peixe opõem-se à prática nacionalista daquela época, pelo uso sistemático do atonalismo, pela indiferença à facilidade de comunicação com o público, pela economia de meios e brevidade em suas proporções (NEVES, 1981: 102). O dodecafonismo é ainda tratado de forma flexível e pessoal, como veremos por meio de Quatro Bagatelas. 2. (Re)compondo a expressão dodecafônica Porém, antes, devemos assinalar que esta peça foi modificada em 1947, juntamente com outras onze obras. Naquele ano, Guera-Peixe encontrava-se em plena maturidade como compositor dodecafônico e já possuia um estilo bem definido 6. Mas para entendermos as razões que o levaram a modificar as obras de 1944 a 1946, é importante refletirmos sobre alguns fatos. Considerando o conjunto de sua obra, tanto a dodecafônica quanto a nacionalista, o ano de 1947 correspondeu a um período de intensa atividade criadora, refletida na produção de dezenove trabalhos de composição. Em toda sua carreira, este foi o maior número de obras escritas num mesmo ano. Além do trabalho de composição, em 1947, Guerra-Peixe dedicou-se ainda à elaboração de um documento contendo os princípios norteadores de suas obras dodecafônicas, denominado Meus Conceitos Estéticos. Neste, o compositor analisa fragmentos musicais extraídos de suas principais obras, apresentando as transformações em seu processo composicional no período entre 1944 e 1947. Este documento foi enviado a Curt Lange em cartas redigidas nos dias 24 de março e 15 de abril de 1947 e também a João Caldeira Filho, crítico musical de São Paulo, que estava interessado em conhecer o movimento Música Viva do Rio de Janeiro 7. Segundo Guerra-Peixe, (...) este crítico, de São Paulo, publicou um artigo sobre os atonalistas brasileiros. Ele me consultou antes de publicá-lo, mas não sei como saiu. Ainda não o li, depois da consulta (...). O Caldeira Filho está interessado no movimento, desejando esclarecimentos para escrever mais e melhor. Expliquei a ele, pessoalmente, muita coisa quando estive em São Paulo. (Foi a primeira vez que o Peixe saiu do Rio ). Mas, ainda é pouco, para quem não conhece o assunto. A sua boa vontade é notável, e a imparcialidade evidente (Carta de GUERRA-PEIXE a CURT LANGE. Rio de Janeiro, 18 de julho de 1947).

Os dodecafonistas brasileiros se empenhavam em conquistar a credibilidade dos críticos musicais de sua época, convidando-os, frequentemente, a comparecerem aos concertos e atividades públicas do Grupo Música Viva. Era preciso fornecer à crítica especializada, informações quanto à necessidade e responsabilidade do trabalho musical realizado pelos compositores adeptos ao dodecafonismo, uma vez que a imagem da música dodecafônica construída pelos nacionalistas perpetuava equívocos e preconceitos cada vez maiores. Naturalmente que as declarações de Koellreutter relativas à principal instituição de ensino musical do país daquela época, como já mencionado, contribuíam ainda mais para a formação desta imagem. De acordo com o documento enviado a Curt Lange e a Caldeira Filho, os conceitos estéticos de Guerra-Peixe tinham como objetivo, compor de uma maneira mais fácil da música ser compreendida (Carta de GUERRA-PEIXE a CURT LANGE. Rio de Janeiro, 24 de março de 1947). Para alcançar esta meta, ao longo dos quatro primeiros anos sob a orientação dodecafônica, o compositor desenvolveu alguns procedimentos para imprimir à sua música dodecafônica uma sonoridade mais compatível com os sons habituais em seu meio. Este projeto, denominado pelo compositor como projeto da cor nacional (ASSIS, 2006) e ainda incipiente nas obras iniciais, se configurou, de fato, a partir de 1946. Dentre os procedimentos nacionalizantes está a concepção de séries geradoras inspiradas em padrões melódicos e harmônicos da música tonal e da música popular: série de doze sons com centros tonais, como ocorre nas Três Peças para violão (1946); série com características melódicas do choro carioca, como no Quarteto n.1 (1947); série com sons repetidos, presente no Duo para flauta e violino (1947). Da mesma forma, desde a Música n.1 para piano (1945), Guerra- Peixe priorizou o uso de séries simétricas, nas quais a segunda metade da série é uma reprodução transposta ou invertida da primeira 8. Com este tipo de série, o compositor podia criar um discurso musical mais inteligível para o público, visto que a reiteração de certos intervalos melódicos facilitaria o reconhecimento das relações estruturais da obra. Ao contrário da música tonal tradicional, a repetição na música dodecafônica não é uma repetição clara, direta ou literal. Devemos compreendê-la como um processo permanente de variações ou, segundo WEBERN (1984), como várias aparências de uma mesma coisa. Para Guerra-Peixe, a repetição direta de intervalos melódicos assim como também de pequenas células rítmicas era, em 1947, fundamental para atingir a comunicabilidade com o público.

As experiências do aprendiz preocupavam o mestre. Koellreutter temia que o projeto da cor nacional de Guerra-Peixe o conduzisse a um anacronismo estético semelhante ao da música produzida pelos nacionalistas da geração anterior e pelos compositores oriundos da Escola Nacional. Guerra-Peixe chegou a comentar com Curt Lange a respeito da hesitação de Koellreutter: já estou com novas idéias para o tratamento da série, as quais assustam o amigo Koell..., que tem medo que eu me enverede por caminhos diferentes da linha justa (Carta de GUERRA-PEIXE a CURT LANGE. Rio de Janeiro, 18 de abril de 1947). Entretanto, como já mencionado, em 1944 quando da criação das Quatro Bagatelas, o compositor não se detinha ainda ao problema da comunicação e a repetição era vista por ele como mero primarismo. Assim, esta e outras obras anteriores a 1947 deveriam ser modificadas e adaptadas ao novo estilo, ao da cor nacional. A simplificação do texto musical visava não somente a aceitação do público, mas, também, uma tentativa de atrair os jovens intérpretes brasileiros, cuja formação musical oferecida pelas instituições oficiais de ensino do país não os preparava para lidar com as dificuldades técnicas e interpretativas da música contemporânea 9. 3. Compondo as Quatro Bagatelas Mesmo com as reformulações na partitura, as Quatro Bagatelas ilustram o dodecafonismo inicial de Guerra-Peixe, visto que algumas características da época parecem ter sido preservadas. Na série geradora são destacados 4 agrupamentos de três sons cada (letras A, B, A, B na Fig. 1), segundo indicação do compositor em sua Relação Cronológica de Composições desde 1944 (GUERRA-PEIXE, 1993). Entretanto, para além desta segmentação reconhecemos outra que se torna igualmente importante no contexto da peça, formando acordes perfeitos maiores e menores, indicados pelos retângulos na Fig.1 10 : Fig.1: Série geradora de Quatro Bagatelas (original e inversão) O compositor parece estar consciente desta particularidade da série, permitindo o aparecimento frequente de acordes perfeitos na estrutura da obra - derivados dos acordes assinalados acima - através de transposições ou inversões. No entanto, tais acordes perfeitos,

aparecem revestidos de dissonâncias por meio do acréscimo de ½ tom (ou 9ª menor), ou por vezes de 1 tom. Na Fig.2, ao acorde Sib, Solb, Réb (Dó#) são imediatamente acrescentados o Si e o Fá. Da mesma forma, ao aparecer o Láb superior, transparece um novo acorde maior (Dó#, Fá, Láb) com um 1 tom acrescentado (si grave): Fig. 2: Quatro Bagatelas, I mov. C. 8 O que percebemos é que o compositor utiliza a série de forma livre em relação aos principios schoenberguianos, mas mantendo certo rigor, um pouco como Alban Berg no Concerto para violino (OLIVEIRA, 1999). Nas Quatro Bagatelas, a ordem das notas não é necessariamente respeitada, e os vários grupos de notas extraídos da série também podem ser empregados com alguma liberdade. No entanto há um procedimento que é recorrente: Guerra- Peixe, frequentemente, utiliza duas ou mais notas da série e acrescenta-lhes livremente uma outra nota, à distância de um intervalo que ele pretende enfatizar na sonoridade da obra (geralmente 2ª menor ou sua inversão 7ª maior). Muitas vezes essas notas inicialmente escolhidas, não se apresentam de forma sequencial na própria série. O exemplo a seguir é bastante elucidativo: Fig. 3: Quatro Bagatelas, I mov. C. 1-2 No compasso 2 da primeira Bagatela, as notas selecionadas Fá#, Lá, Ré#, Mi, Sol# (letra A da Fig.3) pertencem ao primeiro hexacorde da inversão (ver Fig.1), enquanto Si, Réb, Ré, Sol, Dó (letra B da Fig.3) pertencem ao segundo hexacorde da inversão. Para a série ficar completa faltam Fá e Sib que aparecem no acorde final desse compasso (letra C da Fig.3), no qual Guerra-Peixe acrescenta livremente Solb (intervalo de 9ª menor em relação ao fá grave desse acorde), a mesma nota que iniciou esta frase, fechando assim o ciclo. Esta manipulação livre dos elementos da série ainda lhe permite repetir no final do compasso 2 o acorde Ré,

Sol, Dó, presente no primeiro compasso (mão esquerda), estabelecendo assim uma relação harmônica bastante evidente. Um outro exemplo também relacionado com este procedimento recorrente, encontra-se no compasso 13 da Bagatela IV. Fig. 4: Quatro Bagatelas, IV mov. C. 13 As notas Si, Sib, Sol (letra A da Fig.4) correspondem às 11ª, 9ª, 10ª notas da série em sua forma de inversão (Fig.1), sendo as notas Dó e Réb, a 12ª e a 7ª notas, respectivamente. Guerra-Peixe evita a nota ré natural, 8ª nota, preferindo enfatizar o intervalo de 7ª maior a partir do Dó, saltando, assim uma nota da série. Na sequência do Réb, aparecem Láb e Mib (letra B da Fig. 4) que são respectivamente a 6ª e 4ª notas da inversão, formando então uma sequência com os sons 11, 9, 10, 12, 7, 6, 4 da série invertida. Mas o que mais nos chama a atenção neste exemplo é que os intervalos quartais gerados por estas três últimas notas Réb, Láb e Mib relacionam-se diretamente com os acordes iniciais da peça (Fig.3). Na verdade, somente após termos realizado uma análise minucisosa na tentativa de descobrir a chave para a operação desenvolvida pelo compositor no tratamento da série, é que pudemos compreender, de fato, os acordes iniciais e finais da obra. Estes, formados por sobreposição de quartas e quintas já anunciam, desde o primeiro ataque da obra, as escolhas do compositor quanto à organização das harmonias a partir da distribuição das notas ao longo da série. Ao analisarmos o compasso 1 da Bagatela I (Fig.5), formado por acordes quartais, verificamos que as notas Ré, Sol, Dó da pauta inferior correspondem ao 8º, 10º e 12º sons da série na sua forma invertida (letra A da Fig.6) e as notas Mib, Sib, Fá da pauta superior, correspondem ao 4º, 6º e 7º sons da série original (letra B da Fig.6). Fig.5: Acordes iniciais

Fig. 6: Relação das notas da série com os acordes iniciais Esta correlação, à primeira vista, insurge quase como uma escolha aleatória dos sons da série sem nenhum indício significativo de um pensamento mais sistemático do compositor. Entretanto, após detectarmos os procedimentos recorrentes no contexto da peça, estes acordes iniciais que pareciam lançados aleatoriamente em harmonias quartais, se justificam completamente. 4. Considerações finais Da mesma forma como Guerra-Peixe buscava soluções pessoais para o uso da série, o ritmo foi um dos principais temas problematizados por ele durante sua fase dodecafônica, chegando a manifestar a Curt Lange, em 1947, sobre a incapacidade dos atonalistas de criar músicas mais ritmadas ou de dar ritmo à obra sem recorrer aos exageros de abusar das seqüências e, assim, estreitar o diálogo da obra com público de seu tempo (Carta de GUERRA-PEIXE a CURT LANGE. Rio de Janeiro, 9 de maio de 1947). No entanto, ainda em 1944, sua obra se torna pronunciadamente instável quanto ao ritmo, um ritmo excessivamente complexo (GUERRA-PEIXE, 1971: V, 11). Embora não tenhamos condições de aprofundarmos, no âmbito deste artigo, no aspecto rítmico das Quatro Bagatelas, acreditamos que tenha sido ele, de fato, o principal parâmetro reformulado em 1947, devido, sobretudo, ao caráter dançante que lhe é peculiar. Por fim, durante sua fase dodecafônica, Guerra-Peixe compôs cerca de 37 obras para as mais diversas formações instrumentais. Esta produção, ainda hoje pouco conhecida nas salas de concerto, é reveladora não apenas do seu pensamento composicional como também da relação entre este - o pensamento - e questões mais amplas que estavam na ordem do dia daquela época e que ainda guardam sua atualidade: identidade, hibridismo, transculturação, transfiguração, além da antiga dicotomia nacional/universal, tradicional/moderno. Ao se colocar diante do dodecafonismo com uma postura crítica e em constante diálogo com seu

tempo (haja visto a reformulação de algumas obras visando a comunicaçao com seu público), o compositor reinvidicou para o plano da criação musical um espaço não apenas de escolhas estéticas mas de expressão da multiplicidade cultural a qual pertencia. Referências: ASSIS, Ana Cláudia. Os Doze Sons e a Cor Nacional: conciliações estéticas e culturais na produção musical de César Guerra-Peixe. Belo Horizonte, 2066. 268f. Tese (Doutorado em História). Departamento de História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. EGG, André Acastro. O debate no campo do nacionalismo musical no Brasil dos anos 1940 e 1950: o compositor Guerra Peixe. Curitiba, 2004. 243f. Dissertação (Mestrado em História). Departamento de História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná, Curitiba. KATER Carlos. Música Viva e H.J.Koellreutter: movimentos em direção à modernidade. São Paulo: Atravez/Musa, 2001. LIMA, Cecília Nazaré. A fase dodecafônica de Guerra-Peixe: à luz das impressões do compositor. Campinas, 2002. 245 f. Dissertação (Mestrado em Artes, Música), Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas. NEVES, José Maria. Música Contemporânea Brasileira. São Paulo: Ricordi Brasileira, 1981. OLIVEIRA, João Pedro. Teoria Analítica da Música do Século XX. Lisboa: Fundação Gulbenkian, 1998. RAPOSO, Lucas. Guerra-Peixe, 70 Anos. Música, falando em brasileiro. Jornal Minas Gerais. Belo Horizonte, 21 de abril de 1984. Ano XIX, n. 916, Suplemento Literário, 12 páginas. WEBERN, Anton. O Caminho para a música nova. Tradução, introdução e notas de Carlos Kater. São Paulo: Novas Metas, 1984. GUERRA-PEIXE, César. Curriculum Vitae - Catálogo de obras. Belo Horizonte: Biblioteca da Escola de Música da UFMG, 1971, VI. 21 f. Texto datilografado. Curriculum Vitae - Principais traços evolutivos da produção musical. Belo Horizonte: Biblioteca da Escola de Música da UFMG, 1971, V. 12 f. Texto datilografado. Relação Cronológica de Composições desde 1944. Belo Horizonte: Biblioteca da Escola de Música da UFMG, 1993, Texto manuscrito. e LANGE, Francisco Curt. Correspondência (1946-1985). Acervo Curt Lange, Biblioteca Universitária da UFMG: Série Correspondências.176f. Quatro Bagatelas para piano. Rio de Janeiro, 1944. Partitura Manuscrita. Notas 1 O Grupo Música Viva, como se sabe, foi fundado pelo músico alemão Hans-Joachim Koellreutter em 1938, e teve como principais representantes César Guerra-Peixe, Cláudio Santoro, Edino Krieger e Eunice Katunda. Dentre suas principais atividades estava o trabalho de criação musical a partir da técnica dos 12 sons. Ver KATER (2001), LIMA (2002), EGG (2004), ASSIS (2006). 2 César Guerra-Peixe foi o primeiro aluno a obter o título de compositor pelo Conservatório Brasileiro de Música, no ano de 1943 (LIMA, 2002).

3 Atual Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 4 Foi também neste ano, em 1944, que o Música Viva lançou seu primeiro Manifesto, o Manifesto 1944. 5 Além desta obra, em 1944, Guerra-Peixe compôs outra peça para piano solo intitulada À Infância, cuja partitura foi extraviada, segundo declaração do compositor. Sendo assim, a partitura de Quatro Bagatelas corresponde ao único documento pianístico existente daquele ano (GUERRA-PEIXE, 1971: VI, 2). 6 Segundo NEVES (1981), com pouco tempo de estudo, Guerra-Peixe já dominava a técnica dodecafônica. De forma espontânea, o compositor tornou-se o representante máximo da nova escola e seu defensor mais ardente (p.102). 7 Em meados de 1944, Koellreutter fundou, em São Paulo, movimento análogo ao do Rio de Janeiro (KATER, 2001). 8 Isso significa que uma série simétrica, embora constituída de doze notas diferentes é, em síntese, uma sequência de seis sons originais cujas relações intervalares são reproduzidas literalmente ou de forma invertida. 9 O Quarteto Misto (1945), provavelmente ainda hoje inédito, foi reformulado visando facilitar o aspecto rítmico, pois oferecia grande dificuldade para o entrosamento dos intérpretes (GUERRA-PEIXE, 1971). 10 Todas as figuras apresentadas neste trabalho, correspondem aos manuscritos de Guerra-Peixe.