CRÉDITO RURAL, TÍTULOS DE CRÉDITO RURAL E ENFOQUES (outubro de 2005) Prof. Arnaldo Goldemberg[i] SUMÁRIO 1. Introdução 2. Crédito Rural 2.1. Objetivos do Crédito Rural 2.2. Aplicações do Crédito Rural 2.3. Normatização do crédito rural 3. Dos títulos de crédito rural 3.1. Nota Promissória Rural 3.2. Duplicata Rural 3.3. Nota de Crédito Rural 3.4. Cédulas de crédito (gênero) 3.5. Cédulas de Crédito Rural 3.6. Cédula de Produto Rural 3.7. Cédula de Produto Rural Financeira 3.8. Certificado de Depósito Agropecuário (CDA) e Warrant Agropecuário (WA) 3.9. Certificado de Direitos Creditórios do Agronegócio (CDCA)
3.10. Letra de Crédito do Agronegócio 3.11. Certificado de Recebíveis do Agronegócio 4. Demais enfoques sobre o crédito rural 4.1. Limitação dos juros 4.2. Capitalização dos juros 4.3. Encargos moratórios 4.4. Correção Monetária 4.5. Cláusula de Depósito 5. Considerações Finais. 6. Referências bibliográficas 1. Introdução Este artigo tem por objetivo principal demonstrar posições teóricas sobre o crédito rural, bem como classificar e estudar as espécies de títulos de crédito rural, abordando enfoques acerca do sistema legal do crédito rural. Dada a relevância do crédito rural no atual contexto econômico, não pode ser tratado de forma distante e insensível, como se fosse um crédito comum. Os princípios que regem o crédito rural nem sempre se adequam às estruturas jurídico-formais do crédito em geral. O crédito rural não deve ser interpretado como meio de fomentar e fortalecer as instituições financeiras em detrimento da produção da agricultura e da pecuária nacional. O financiamento da atividade rural deve evidenciar a possibilidade de pagamento com a própria produção rural. Importa antes de tudo na compatibilização entre a atividade desenvolvida pelas instituições financeiras, com a necessidade de estimular os investimentos rurais feitos pelos produtores.
Tais paralelos provocam debate intenso, sem extensão definida, sem termo ou limite. Invocam polêmicas, discussões filosóficas e, sobretudo, exigem um posicionamento que não pode passar de largo com as questões inerentes ao desenvolvimento econômico e social. O estudo abordará a análise dos títulos de crédito rural, classificando os mesmos e destacando suas peculiaridades que os tornam distintos das espécies correlatas de títulos de crédito comuns. Mesmo correndo o risco de incidir em digressões, o estudo abordará questões mais específicas, tais como juros e capitalização, cláusula depósito, cláusula de assistência técnica, preço mínimo e armazenamento, além de discorrer sobre a correção monetária no crédito rural, sob enfoques variados, com a abordagem jurisprudencial. 2. DO CRÉDITO RURAL. 2.1. Objetivos do Crédito Rural. O Crédito Rural tem por escopo o cumprimento dos seguintes objetivos, previstos na lei que o institucionalizou, em 1965[ii]: Estimular o incremento ordenado dos investimentos rurais, inclusive para armazenamento, beneficiamento e industrialização dos produtos agropecuários, quando efetuados por cooperativas ou pelo produtor na sua propriedade rural. Favorecer o custeio oportuno e adequado da produção e a comercialização dos produtos agropecuários.
Possibilitar o fortalecimento econômico dos produtores, notadamente considerados ou classificados como pequenos e médios. Incentivar a introdução de métodos racionais de produção, visando o aumento da produtividade e a melhoria do padrão de vida das populações rurais e à adequada defesa do solo. Portanto, os objetivos do crédito rural podem ser descritos como a estimular dos investimentos rurais feitos pelos produtores ou por suas associações (cooperativas, condomínios, parcerias etc.), favorecendo o oportuno e adequado custeio da produção e a comercialização de produtos agropecuários. A motivação do crédito rural não é outra senão a busca pelo fortalecimento do setor rural, incentivando a introdução de métodos racionais no sistema de produção, visando ao aumento de produtividade, melhoria do padrão de vida das populações rurais sem afastar da adequada utilização dos recursos naturais. Destaca-se, do texto do art. 3º e incisos, da Lei nº. 4.829/65, que são objetivos sociais, políticos e econômicos do crédito rural: * estimular o incremento ordenado dos investimentos rurais. * favorecer o custeio oportuno e adequado; possibilitar o fortalecimento econômico dos produtores rurais e incentivar a introdução de métodos racionais de produção. Os objetivos sociais, econômicos e políticos da legislação de crédito rural de incrementar e fomentar a produção agropecuária e fortalecer o produtor rural.
O crédito rural não deve ser interpretado como meio de fomentar e fortalecer as instituições financeiras em detrimento da produção da agricultura e da pecuária nacional. O financiamento da atividade rural deve evidenciar a possibilidade de pagamento com a própria produção rural. O subsídio à produção agropecuária é prática adotada, com maior ou menor intensidade e de forma diversificada, pelos governos de todos os principais países produtores, como política de incentivo. Não se pode afastar do fato inconteste de que a atividade rural revela a dependência aos fatores climáticos como um risco adicional, quando comparada à indústria, ao comércio ou outra atividade. Segundo os arts. 184 e 186 da Constituição Federal, toda propriedade rural tem o mister de cumprir uma função social que prima pelo seu aproveitamento racional e adequado, mediante exploração que favoreça o bem estar dos proprietários e trabalhadores. Constituição Federal. Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.... Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. Acerca da função social da propriedade rural, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, assim declara: O direito de propriedade não se reveste de caráter absoluto, eis que, sobre ele, pesa grave hipoteca social,
a significar que, descumprida a função social que lhe é inerente (CF, art. 5º, XXIII), legitimar-se-á a intervenção estatal na esfera dominial privada, observados, contudo, para esse efeito, os limites, as formas e os procedimentos fixados na própria Constituição da República. O acesso à terra, a solução dos conflitos sociais, o aproveitamento racional e adequado do imóvel rural, a utilização apropriada dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente constituem elementos de realização da função social da propriedade. (ADI 2.213, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 23/04/04) Já o art. 187, da ordem constitucional determina uma política agrícola planejada e executada na forma da lei, com a participação efetiva dos produtores e trabalhadores rurais, levando em conta os instrumentos creditícios para as atividades agroindustriais, agropecuárias e florestais. Art. 187. A política agrícola será planejada e executada na forma da lei, com a participação efetiva do setor de produção, envolvendo produtores e trabalhadores rurais, bem como dos setores de comercialização, de armazenamento e de transportes, levando em conta, especialmente: I - os instrumentos creditícios e fiscais; II - os preços compatíveis com os custos de produção e a garantia de comercialização; III - o incentivo à pesquisa e à tecnologia; IV - a assistência técnica e extensão rural; V - o seguro agrícola; VI - o cooperativismo; VII - a eletrificação rural e irrigação; VIII - a habitação para o trabalhador rural.
1º - Incluem-se no planejamento agrícola as atividades agroindustriais, agropecuárias, pesqueiras e florestais. 2º - Serão compatibilizadas as ações de política agrícola e de reforma agrária. Uma vez que o art. 184 da Constituição Federal concede à União o direito de desapropriar o imóvel rural que não cumpre sua função social, exsurge o entendimento de que todo proprietário de área rural tem o dever jurídico de torná-la produtiva, aproveitamento racional e adequado, utilização ajustada às disponibilidades cabíveis dos recursos naturais e a preservação do meio ambiente. A omissão do dever de tornar a terra produtiva, impõe ao proprietário a sanção da desapropriação, e estando "o acesso à propriedade da terra condicionado pela sua função social" (art. 2º. da Lei nº. 4.504/64), tem-se que os produtores não dispõem apenas do direito de produzir. Caracterizado que a propriedade é produtiva, não se opera a desapropriação-sanção, por interesse social para os fins de reforma agrária, em virtude de imperativo constitucional que excepciona, para a reforma agrária, a atuação estatal, passando o processo de indenização, em princípio, a submeter-se às regras constantes do inciso XXIV, do artigo 5, da Constituição Federal, 'mediante justa e prévia indenização'. (MS 22.193, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 29/11/96)[iii] Os proprietários rurais, na realidade, estão onerados pelo dever social de produzir. Tal dever de produzir provem de normas de ordem pública. São direitos-deveres indisponíveis. É evidente que o proprietário rural não pode ser afastado de sua prerrogativa de garantir seu direito de propriedade, assegurado no art. 5º, XXI, da CF, observando e cumprindo sua função social.
A concessão do crédito rural, portanto, passa a ser tida como um direito subjetivo do proprietário rural, por ser o instrumento capaz de assegurar ao mesmo o cumprimento de seu dever jurídico de tornar a propriedade adequadamente produtiva. Para efetivar a possibilidade de tornar e manter adequadamente produtiva a propriedade rural, é indispensável permitir ao produtor rural todos os requisitos previstos na Política Agrícola de que trata o art. 187 da CF, notadamente quanto às previsões dos incisos I e II, que determinam o acesso aos instrumentos creditícios, a segurança de preços compatíveis com os custos de produção e a garantia de comercialização. O acesso aos instrumentos creditícios não pode ser dissociado da segurança dos preços compatíveis e da garantia de comercialização da produção rural. Significa, pois, assegurar que as quantias emprestadas ao produtor rural devam receber encargos compatíveis com a possibilidade do produtor rural cobrir todo o custo efetivo da produção, despesas de transporte e comercialização, bem como assegurar sua margem de lucro. Portanto, qualquer cálculo dos encargos que incidem sobre o empréstimo rural, deverá considerar, prima facie, que a evolução da dívida não poderá ser superior ao valor necessário para cobertura do custo efetivo da produção, despesas de transporte e comercialização, bem como assegurar sua margem de lucro do produtor rural. Pensar em contrário significaria tornar completamente ineficazes as referidas normas constitucionais que impõe ao proprietário rural o dever social de produzir e que asseguram o acesso aos instrumentos creditícios, com a garantia de preços compatíveis. O custo da produção deve compreender todas as despesas custeio com insumos, materiais, beneficiamento, salários, tributos etc. É certo que as apurações do custo efetivo da produção, bem como das despesas de transporte e comercialização, são plenamente viáveis mediante cálculos estimativas com aceitáveis margens de aproximação. Entretanto, no estudo dos preços compatíveis, estaríamos diante de uma incerteza notória, quanto à fixação da margem de lucro do produtor rural, não fosse a previsão legal, constante do Estatuto da
Terra, que estabelece uma base para o lucro mínimo do produtor rural, consoante o art. 85, 1º. da Lei nº.4.504/64: Art. 85. A fixação dos preços mínimos, de acordo com a essencialidade dos produtos agropecuários, visando aos mercados interno e externo, deverá ser feita, no mínimo, sessenta dias antes da época do plantio em cada região e reajustados, na época da venda, de acordo com os índices de correção fixados pelo Conselho Nacional de Economia. 1 Para fixação do preço mínimo se tomará por base o custo efetivo da produção, acrescido das despesas de transporte para o mercado mais próximo e da margem de lucro do produtor, que não poderá ser inferior a trinta por cento. 2º As despesas do armazenamento, expurgo, conservação e embalagem dos produtos agrícolas correrão por conta do órgão executor da política de garantia de preços mínimos, não sendo dedutíveis do total a ser pago ao produtor Chega-se, desta forma a conclusão jurídica de que a União tem o dever de possibilitar a produção e garantir preços mínimos condizentes que proporcione ao produtor rural um lucro não inferior a 30%. Tal afirmação não é mera proposição. É a conseqüência da aplicação sistematizada dos preceitos fundamentais que ensejam à atividade rural, porque o produtor rural deve ter garantido seu direito de propriedade não podendo ser impedido de atender aos requisitos essenciais de sua função social, pois resulta passível da sanção constitucional trazida pelo art. 184, ou seja, a desapropriação por descumprimento da função social. Por conseguinte, o acesso ao crédito rural, com encargos que permitam a garantia do lucro mínimo de 30% constitui, portanto, direito subjetivo do proprietário rural, sob pena de violação às garantias fundamentais e pétreas da Constituição Federal, previstas no art. 5º, incisos XXII e XXIII, ou seja, a garantia do direito de propriedade e o direito de fazer com que a propriedade atenda a sua função social.
2.2. Aplicações do Crédito Rural. O crédito rural se destina ao financiamento das atividades de custeio das despesas normais de cada ciclo produtivo, investimento em bens ou serviços cujo aproveitamento se estenda por vários ciclos produtivos, ou ainda, na comercialização da produção. O Banco do Brasil classifica o crédito rural em três grupos[iv]: Custeio: quando atende às despesas do ciclo produtivo. Investimento: quando é destinado a inversões em bens e serviços que gerem benefícios por mais de um ciclo de produção. Comercialização: quando atende às despesas de pósprodução. O Banco Central do Brasil classifica o custeio em[v]: custeio agrícola; custeio pecuário; custeio de beneficiamento ou industrialização. Assim, o crédito de custeio refere-se às despesas decorrentes do ciclo produtivo de lavouras periódicas, de entressafra de lavouras permanentes ou da extração de produtos vegetais espontâneos, incluindo o beneficiamento primário da produção obtida e seu armazenamento, de exploração pecuária e de beneficiamento ou industrialização de produtos agropecuários.
Têm acesso ao crédito rural, o produtor rural (pessoa física ou jurídica) e suas associações (cooperativas, condomínios, parcerias etc.) de produtores rurais. O crédito rural também é acessível por pessoa física ou jurídica que, mesmo não sendo produtor rural, se dedique à pesquisa ou produção de mudas ou sementes fiscalizadas ou certificadas; inseminação artificial; prestação de serviços mecanizados de natureza agropecuária, em imóveis rurais, inclusive para a proteção do solo e exploração de pesca, com fins comerciais. 2.3. Normatização do crédito rural. Os principais dispositivos legais que normatizam o crédito rural, são: Lei nº.4.595, de 31 de dezembro de 1964, que criou o Sistema Nacional de Crédito Rural; Lei nº.4.829, de 5 de novembro de 1965, que institucionalizou o Crédito Rural; Decreto nº.58.380, de 10 de maio de 1966, que aprovou a regulamentação da Lei nº.4829; Decreto-Lei nº.167, de 14 de fevereiro de 1967, que dispõe sobre títulos de crédito rural e dá outras providências; Lei nº.8.929, de 22 de agosto de 1994, que institui a cédula de produto rural e dá outras providências; Lei nº.11.076, de 30 de dezembro de 2004, que dispõe sobre o Certificado de Depósito Agropecuário CDA, o Warrant Agropecuário WA, o Certificado de Direitos Creditórios do Agronegócio CDCA, a Letra de Crédito do Agronegócio LCA e o Certificado de Recebíveis do Agronegócio CRA.
3. Dos títulos de crédito rural. Os títulos de crédito rural são instrumentos utilizados para a formalização do crédito rural, sem afastar, no entanto, a possibilidade de formalização do crédito rural por meio de contrato, no caso de peculiaridades insuscetíveis de adequação aos títulos de crédito rural previstos em lei. Portanto o acesso ao crédito rural não se encerra por meio dos títulos de crédito rural. Contudo, não se poderá inovar ou criar títulos de crédito diversos dos previstos numerus clausus nas legislações específicas que tratam de crédito rural. Os títulos de crédito rural são promessas de pagamento sem ou com garantia real cedularmente constituída, isto é, no próprio título. A garantia pode ser ofertada pelo próprio financiado, ou por um terceiro. Embora seja considerado um título civil, é evidente seu conteúdo comercial, por sujeitar-se à disciplina do direito cambiário. De acordo com a legislação vigente, a formalização do crédito rural pode ser realizada por meio dos seguintes títulos: Nota Promissória Rural; Duplicata Rural; Nota de Crédito Rural;