46 A PESCA ARTESANAL E O ESTOQUE PESQUEIRO NO CÂNION DO RIO SÃO FRANCISCO, NORDESTE DO BRASIL Luanna Oliveira de Freitas 1 ; Eliane Maria de Souza Nogueira 1 1 Programa de Pós-Graduação em Ecologia Humana e Gestão Socioambiental, Universidade do estado da Bahia (UNEB Campus VIII). freitas-luanna@hotmail.com; emsnogueira@gmail.com Resumo O estudo analisa a atividade pesqueira desenvolvida no cânion do rio São Francisco, em trechos da Bahia e Alagoas e a percepção dos pescadores locais quanto ao estoque pesqueiro. O trabalho de campo foi realizado em 2012, e os dados foram coletados através de entrevistas aplicadas a 84 indivíduos, com idades entre 20 e 83 anos. Os resultados apontam que, dentre os problemas elencados pelos pescadores, o que mais ameaça a pesca artesanal ainda é a diminuição dos estoques pesqueiros, com reflexos imediatos na renda familiar, levando os pescadores a aumentarem o esforço de captura do pescado. Este esforço, além do praticado normalmente, tem ocasionado agravos à saúde desses trabalhadores. Além disso, os dados obtidos no presente estudo apontam que o estoque de espécies nativas como Pacu (Myleus micans), Mandi (Pimelodus sp) e Piau-verdadeiro (Leporinus elongatus) tem sofrido diminuição relevante para a região em questão. Ressalta-se a importância em desenvolver estudos com as comunidades, por serem indicadores da necessidade ambiental local, a fim de nortear a adoção de medidas de manejo da pesca. Palavras-chave: peixes nativos; comunidades locais; qualidade ambiental. Introdução A pesca artesanal é definida como aquela em que o pescador sozinho ou em parcerias participa diretamente da captura, usando instrumentos relativamente simples (DIEGUES; ARRUDA, 2001). A pesca além de ser uma profissão, é um modo de vida, sendo também unidade de produção, de consumo e de partilha onde o trabalho é livre e tem um regime autônomo e coletivo, no qual os pescadores são donos dos seus meios de produção (CNPA, 2009). Historicamente, o rio São Francisco foi uma das principais fontes brasileiras de pescado, atendendo o comércio de regiões do nordeste e do sudeste do Brasil e fornecendo peixes suficientes para alimentar e gerar recursos, através da pesca, à população ribeirinha (GODINHO; GODINHO, 2003). Nesta bacia, são registradas cerca de 158 espécies de peixes, excetuando-se as diádromas. No entanto, mesmo apresentando essa diversidade, boa parte dos estoques pesqueiros encontra-se em queda em função das alterações no fluxo e na qualidade da água e impedimento à migração reprodutiva (BARBOSA; SOARES, 2009, GODINHO; GODINHO, 2003). Diante do exposto, o presente estudo objetivou investigar a situação atual da pesca artesanal no Cânion do rio São Francisco, bem como a percepção dos pescadores quanto ao estoque pesqueiro nesta região.
47 Metodologia A área selecionada para o presente estudo foi o cânion do Rio São Francisco, situado no Baixo São Francisco. O Cânion abrange três estados Alagoas, Bahia e Sergipe - e cinco municípios, Paulo Afonso/BA, Canindé do São Francisco/SE, Delmiro Gouveia/AL, Olho D água do Casado/AL e Piranhas/AL. O Rio São Francisco tem aproximadamente 2.700 km de extensão, é considerado o terceiro maior rio brasileiro, possui uma área de 639.219 km², onde habitam cerca de 13 milhões de pessoas, que correspondem a 8% da população do país (ANA, 2004). Para realização deste estudo, inicialmente foi feita uma pesquisa bibliográfica, seguida da atividade de campo, realizada durante o ano de 2012. As informações foram coletadas por meio de conversas informais e entrevistas, formuladas com questões abertas e fechadas, aplicados a 84 pescadores artesanais residentes em comunidades situadas às margens do cânion São Francisco. No universo amostral estudado a maior representação é masculina com um percentual de 79,3%, a distribuição etária inclui pescadores de 20 a 83 anos, a grande maioria é casada, com baixa escolaridade e renda mensal que varia de R$ 200,00 a cerca de R$ 1000,00. No que tange a atividade pesqueira, o tempo de pesca varia de um a mais de 40 anos, destes 88,7% possuem registro profissional de pescador (RGP). Resultados e Discussão A atividade pesqueira desenvolvida pelos pescadores do cânion do São Francisco é do tipo artesanal, conforme as definições pertinentes ao tema, praticada em um intervalo de tempo que varia de um a mais de 40 anos. Vivem exclusivamente da pesca, 67,1% dos pescadores, revelando a importância da qualidade ambiental e estabilidade dos estoques pesqueiros para manutenção desta atividade, que caracteriza-se tanto como uma profissão quanto como um modo de vida e expressão cultural. Os pescadores que moram próximo ao trecho em que pescam deslocam-se diariamente até essas localidades, não se enquadrando no grupo que se utiliza de acampamento as margens do rio (Figura 1). Figura 1 Ranchos construídos as margens do Cânion para abrigo durante o período de acampamento.
48 O tempo de acampamento entre os pescadores que desenvolvem essa modalidade variou de 3 a 15 dias. Cabe ressaltar que o pescador não tem um ponto fixo para pescar, mas mantém locais específicos para se abrigarem durante o período da pescaria. A pesca é realizada em pequenas embarcações, principalmente canoas, das quais 90,2% são de propriedade do pescador e o petrecho mais utilizado são as redes (38,8%). O pescado capturado em 93,9% dos casos é destinado tanto para o consumo quanto para o comércio, sendo que Pirambeba, tucunaré, curvina, traíra e tilápia foram as etnoespécies mais capturadas e disponíveis para venda no período em que o trabalho foi realizado. O pescado é comercializado em sua maioria congelado (35,4%) ou fresco (32,9%), assim como limpo e eviscerado (67,1%). Estes dados estão de acordo aos apresentados por Burda e Schiavetti (2008) e Costa-Neto e Marques (2001), que registraram resultados semelhantes em estudos realizados em outras localidades da Bahia. Os autores observaram que o pescado das áreas estudadas era comercializado imediatamente após a sua captura ou congelado e vendido posteriormente. Dentre os problemas elencados pelos pescadores sobre a atividade de pesca, destaca-se a diminuição do peixe, resultado dos barramentos das águas do rio São Francisco para geração de energia elétrica. Eles afirmaram que, por ocasião das cheias e redução da correnteza da água, houve um comprometimento do período reprodutivo dos peixes de piracema. Outro aspecto citado diz respeito à introdução de espécies exóticas como o Tucunaré, predador das espécies nativas apreciadas na região. A percepção de escassez do pescado, no que diz respeito à pesca predatória, também elencada pelos atores, é um conflito existente, uma vez que há um embate dos pescadores artesanais com aqueles que praticam essa modalidade. Descrita por Rosa e Mattos (2010) a pesca predatória é aquela que é realizada em períodos de defeso, ou quando é feita com material impróprio e esforço excessivo da mesma. O período de defeso corresponde ao período de desova, caracterizado como o ápice da vida dos reprodutores (SANTOS; SANTOS, 2005). Ainda quanto a pesca predatória, faz-se necessário lembrar que há um desequilíbrio entre o material alocado do meio aquático e o que ele consegue repor, com possibilidades de limite da produtividade pesqueira e, consequentemente, com impacto social e comprometimento do equilíbrio ecológico da área. Das 21 espécies inventariadas na pesquisa (Quadro 1), destacam-se as exóticas e aquelas que são consideradas pelos pescadores como raras ou que desapareceram, sendo as mais citadas o dourado (Salminus hilarii), o surubim (Pseudoplatystoma corruscans) e o Pirá (Conorhynchus conirostris). A situação se agrava com diminuição significativa de outras espécies como Pacu (Myleus micans), Mandi (Pimelodus sp), Piau-verdadeiro (Leporinus elongatus) e Apaiari (Astronotus ocellatus).
49 Quadro 1 Etnoespécies de peixes citadas, segundo a percepção dos pescadores do Cânion São Francisco. Etnoespécie* Nome Científico Apaiari Astronotus ocellatus (Cuvier, 1829)* Caboge/Mandim armado Franciscodoras marmoratus (Reinhardt, 1874) Cari/Acari Curimatã/Crumatá/Bambá Hypostomus sp. Prochilodus sp. Curvina/Corvina/Cruvina Pachyurus francisci (Cuvier, 1830) e P.squamipinnis Agassiz, 1831 Dourado/Tubarana Salminus hilarii (Cuvier, 1829) e Salminus franciscanus Lima & Britski, 2007 Mandi Pimelodus SP Pacamã Lophiosilurus alexandri Steindachner, 1877 Pacu Myleus micans (Reinhardt, 1874) Pescada Piaba Piau Plagioscion squamosissimus* Astyanax sp. e outros morfotipos Leporinus sp. Piau-verdadeiro Leporinus elongatus Valenciennes, 1850 Pirá Conorhynchus conirostris (Valenciennes, 1840) Pirambeba Serrasalmus brandti (Lütken, 1875) Piranha Pygocentrus piraya (Cuvier, 1819) Surubim Pseudoplatystoma corruscans (Spix & Agassiz, 1829) Tambaqui Colossoma macropomum (Cuvier, 1818)* Tilápia/Fidalgo Oreochromis niloticus (Linnaeus, 1758) * Traíra Hoplias malabaricus (Bloch, 1794) Tucunaré/Tupunaré Cichla sp.* Fonte: Entrevistas realizadas na coleta de campo, 2012; BARBOSA; SOARES, 2009 Nota: Os nomes das etnoespécies correspondem à denominação nativa fornecida no decorrer das entrevistas e a classificação científica segue Barbosa e Soares, 2009. * Espécies exóticas A queda dos estoques pesqueiros a redução da renda familiar levam os pescadores a uma sobrecarga de trabalho, aumentando o esforço de captura do pescado, o que reflete agravos à saúde desses trabalhadores. Em sua jornada de trabalho ficam expostos a variadas condições ambientais e climáticas, e mais susceptíveis a problemas de saúde e possíveis acidentes de trabalho. Dos entrevistados, 64,6% se queixam de problemas de saúde, sendo principalmente relacionados a problemas de coluna (52,5%).
50 Considerações Finais A existência da pesca artesanal nas comunidades ribeirinhas assume um papel essencial na vida de muitos pescadores, tanto em função da necessidade financeira, quanto na necessidade de preservar e exercitar a cultura pesqueira. Em função disso, informações sobre o conhecimento dessas comunidades são importantes por auxiliarem na adoção de medidas de manejo da pesca e por serem indicadores da necessidade ambiental local. Deve-se levar em consideração, também que a avaliação do conhecimento local é de grande importância como ferramenta para entender as atividades dos impactos causados pelo homem no ambiente, assim como a importância do recurso para a população, permitindo assim, uma análise contextualizada e de maior aplicabilidade às causas locais de alterações ambientais. Referências ANA/GEF/PNUMA/OEA. Projeto de Gerenciamento Integrado das Atividades Desenvolvidas em Terra na Bacia do São Francisco, Sub-projeto 4.5C Plano Decenal de Recursos Hídricos da Bacia do Rio São Francisco PBHSF (2004-2013). Controle de cheias. Estudo Técnico de Apoio nº 10. Brasília: SUM/ANA, 2004. 58p. BARBOSA, J. M.; SOARES, E. C. Perfil da ictiofauna da Bacia do São Francisco: estudo preliminar. Revista Brasileira de Engenharia de Pesca, v. 4, n. 1, p. 155-172, 2009. BURDA, C. L., SCHIAVETTI, A. Análise ecológica da pesca artesanal em quatro comunidades pesqueiras da Costa de Itacaré, Bahia, Brasil: Subsídios para a Gestão Territorial. Revista da Gestão Costeira Integrada, v. 8, n. 2, p. 149-168, 2008. COSTA-NETO, E. M.; MARQUES, J. G. W. Atividades de pesca desenvolvidas por pescadores da comunidade de Siribinha, Município de Conde, Bahia: uma abordagem etnoecológica. Sitientibus, v.1, n. 1, p. 71-78, 2001. (Série Ciências Biológicas) CONFERÊNCIA DOS PESCADORES ARTESANAIS DO BRASIL- IºCNPA: Pescadores e pescadoras na luta por território, afirmando políticas de direitos para a pesca artesanal 2009. Texto-base. Brasília, 2009. 26p. DIEGUES, A. C.; ARRUDA, R. S. V. Saberes tradicionais e biodiversidade no Brasil. Brasília: Ministério do Meio Ambiente; São Paulo: USP, 2001. GODINHO, A. L.; GODINHO, H. P. Breve visão do São Francisco. In: Águas, peixes e pescadores do São Francisco das Minas Gerais. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003. 468p. SANTOS, G. M.; SANTOS, A. C. M. Sustentabilidade da pesca na Amazônia. Estudos avançados, v. 19, n. 54, p.165-182, Ago 2005.