A NEGAÇÃO DA VONTADE DE VIDA EM SCHOPENHAUER



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Transcrição:

A NEGAÇÃO DA VONTADE DE VIDA EM SCHOPENHAUER Franciny Costantin Senra Prof. Dr. Aguinaldo Pavão (Orientador) RESUMO Essa comunicação tem objetivo de reconstruir e analisar a tese de Schopenhauer sobre a negação da Vontade de vida. Para tanto, inicialmente farei uma reconstrução da argumentação elaborada por Schopenhauer, partindo da apresentação do conceito de egoísmo. Em seguida, irei expor o modo como o autor fundamenta a ética baseado na compaixão dos indivíduos uns para com os outros, contrapondo o homem bom ao homem mau. Apresentarei como, por meio da ascese e da visão através do princípio de individuação, o homem é capaz de atingir a completa negação da Vontade de vida. Neste ponto, devemos nos ater às práticas necessárias para se alcançar a ascese, resultando na redenção da vida. Concluirei apresentando algumas dificuldades que podem ser apontadas na argumentação de Schopenhauer, em especial a que diz respeito a compatibilidade entre a Vontade como coisa-em-si, que sempre procura afirmar-se, e a ideia da salvação a partir da negação dessa mesma Vontade. Palavras chave: Negação da Vontade de vida; princípio de individuação; salvação 789

Com o intuito de explanar o conceito de negação da Vontade de vida para Schopenhauer, devemos nos ater à sua obra máxima, O Mundo como Vontade e Representação (MVR), porém considerando também alguns pontos importantes apresentados na obra Sobre o Fundamento da Moral (SFM). Especificamente no livro IV do MVR, encontramos o caminho traçado pelo autor para fundamentar a ética na compaixão e posteriormente esclarecer o alcance da ascese. Schopenhauer busca, ao expor sua abordagem ética, descrever e clarificar a mesma. Para ele, a filosofia busca apenas explicitar a essência do mundo, de modo a torná-la conhecimento abstrato da razão, sendo assim, não possui pretensão de prescrever regras ou criar homens virtuosos. Schopenhauer indica, a partir do capítulo 355 61, o egoísmo como ponto de partida para sua fundamentação ética. O homem se posiciona diante dos demais voltado apenas para seus próprios interesses. Cada um, possuidor da Vontade de vida, se defronta com a imagem de sua própria essência por inúmeras vezes. Eis por que cada um quer tudo para si, quer tudo possuir, ao menos dominar, e assim deseja aniquilar tudo aquilo que lhe opõe resistência. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 426) Essa é a motivação principal presente no homem, que o faz sempre buscar a satisfação apenas de si. Os demais indivíduos constituem apenas representação, de modo que é necessária minha própria existência para a percepção dos demais. O indivíduo faz de si o centro do universo, disposto a extinguir quaisquer obstáculos que impeçam sua autoconservação. Um egoísta, no caso da prática de ações caritativas, não procura com isso aliviar o sofrimento alheio, mas busca algum proveito próprio, alguma satisfação na prática de determinada ação. Em suma, uma ação egoísta é caracterizada pela busca do indivíduo por seu próprio bem-estar apenas. Como manifestação máxima desse egoísmo presente nos homens, temos a guerra entre os indivíduos em busca de seus oportunos interesses. 355 Diante da divisão de parágrafos proposta por Schopenhauer, os denominarei por capítulos, e dentro destes, fazendo referência a seus diversos parágrafos. 790

Observamos não apenas como cada um procura arrancar do outro o que ele mesmo quer ter, mas inclusive como alguém, em vista de aumentar seu bem-estar por um acréscimo insignificante, chega ao ponto de destruir toda a felicidade ou a vida de outrem. Eis aí a suprema expressão do egoísmo, cujos fenômenos, nesse aspecto, são superados apenas por aqueles da pura maldade (...) (Ibidem, p. 428) Antes ainda de adentramos à compaixão, é necessário fazer uma breve consideração acerca da maldade. O homem mau não só busca afirmar sua Vontade, como também é capaz de interferir e de negar a Vontade alheia. Schopenhauer descreve claramente a grande diferença observada entre o egoísmo e a maldade: O egoísmo pode levar a todas as formas de crimes e delitos, mas os prejuízos e as dores causados a outrem são para si um mero meio e não um fim, aí entrando de modo apenas acidental. Em contrapartida, para a maldade e a crueldade o sofrimento e a dor de outrem são fins em si; alcançá-los é o que dá prazer. (SCHOPENHAUER, 1995, p. 126) O autor apresenta ainda a máxima da maldade, em que o homem mau busca prejudicar a todos que puder. A pessoa má é caracterizada pela inclinação à prática da injustiça, de modo a negar a Vontade dos demais indivíduos. Esse incessante querer afirmar a própria Vontade denota sofrimento. Sofrimento, pois a Vontade excessiva revela um querer constante insaciável. Após se confrontar com a infelicidade da não satisfação da própria vontade, o homem deixa de ser apenas egoísta e caminha rumo à crueldade, à pura maldade, onde a dor alheia é bem em si mesmo. Nesse sentido, o homem mau vê no sofrimento do outro um modo de acalmar a própria angústia, a própria dor. A insatisfação de sua Vontade, sendo constantemente frustrada, gera um tormento tal que o indivíduo busca a infelicidade do outro a fim de dissipar a sua própria. 791

Adiante, encontramos o conceito de compaixão apresentado por Schopenhauer em contraposição ao egoísmo. Para que uma ação movida pela compaixão possa ser realizada, é necessário que haja identificação com o outro, que as diferenças entre os indivíduos sejam suprimidas. O egoísmo deve ser extinto. Schopenhauer situa o sentimento da compaixão como base de toda ação moral e também da justiça desinteressada. "A ausência de toda motivação egoísta é, portanto, o critério de uma ação dotada de valor moral." (Ibidem, p. 131) O indivíduo passa a compartilhar do sofrimento do outro, se identificando com ele. Uma pessoa possuidora deste sentimento não se aproxima de outros por proveito próprio, não busca tirar vantagem alguma, deseja apenas que a justiça seja estabelecida e ajuda o outro na necessidade apresentada. O homem justo não mais vê no princípio de individuação uma barreira, diferente do homem mau, que através desse mesmo princípio, se considera alheio aos demais. A compaixão é generalizada e indistinta diante de todos os seres humanos, ela se manifesta como uma bondade natural e o conhecimento da unidade de todos os seres. Por isso a constante identificação com os mesmos. Após o esclarecimento destes conceitos importantes no decorrer da obra de Schopenhauer, é possível focar no modo como o autor apresenta a negação da Vontade de vida. No capítulo 68 do MVR ele faz um detalhamento minucioso de como é possível atingir a completa negação da Vontade. Logo no início do capítulo Schopenhauer contrapõe o egoísmo, envolto no conhecimento do princípio de individuação, com o amor decorrente da visão através do princípio de individuação. Neste último caso, se o amor puro passar a um generoso autossacrifício, encerra-se assim qualquer diferença existente entre o próprio indivíduo e os demais. No terceiro parágrafo encontramos a pessoa que, após conseguir ver através do princípio de individuação, é capaz de excluir todo o 792

egoísmo ainda presente. Desse modo não há distinção entre o próprio indivíduo e os outros, a pessoa se identifica completamente com o sofrimento alheio e se reconhece em todos os casos de padecimento, sendo capaz até de se sacrificar visando à salvação destes. Tal indivíduo vê sofrimento por toda parte, vindo da humanidade e dos animais, e passa a tomar parte disso como algo próprio de si. Sendo assim, o homem acaba culminando na renúncia total e voluntária da Vontade, se destituindo completamente dela. Porém, Schopenhauer alerta que, quando nos encontramos em meio a tamanha dor, envoltos ainda pelo Véu de Maia, o conhecimento da angústia da vida nos faz querer renunciar ao sofrimento e logo a ilusão do fenômeno nos encanta de novo e seus motivos colocam mais uma vez a Vontade em movimento. Não podemos nos libertar. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 482) Reforçamos novamente nossa ligação com o mundo. Adiante no parágrafo quatro, o autor retrata a completa negação da Vontade de vida. O homem que percebe através do princípio de individuação, diferentemente do acima citado, não se ilude com possíveis confortos a seu sofrimento. Tal indivíduo está diante da ascese, conceito chave na teoria ética schopenhauriana. A ascese constitui-se pela repulsa da Vontade de vida, renegando-a e tornando-se indiferente a tudo. Ela parte de uma renúncia pessoal do querer, de uma resignação, de um abandono, procurando não mais alimentar o desejo insaciável da Vontade. Esse é o único modo de vencer o movimento eterno da Vontade, pois por meio da experiência interior, percebendo a unidade de tudo e de todos, a Vontade anulará seu próprio movimento. Essencialmente fenômeno da Vontade, ele cessa de querer algo, evita atar sua vontade a alguma coisa, procura estabelecer em si a grande indiferença por tudo. (Ibidem, p. 482) Como primeiro passo a ser dado em direção à ascese, encontramos a castidade voluntária. Sendo assim, a afirmação da Vontade de vida é negada para além do âmbito individual. Se a castidade fosse acatada por toda humanidade, acarretaria na nossa extinção. Assim teríamos também 793

a extinção dos animais, já que com o fenômeno mais elevado da Vontade, também o mais abaixo dela seria abolido, ou seja, o mundo animal. (Ibidem, p. 483) Seguindo essa linha, o mundo terminaria por desaparecer, pois não é possível haver objeto sem sujeito. A natureza espera a redenção do homem, e a ele tudo está ligado. Schopenhauer ilustra esse ponto com passagens de Ângelus Silesius, Meister Eckhard, Buda, e até mesmo a Bíblia. No sétimo parágrafo Schopenhauer expõe de modo claro as práticas do asceta. A pobreza voluntária é buscada não como meio de suavizar o sofrimento alheio, mas como mortificação da própria Vontade. O homem se afasta de tudo o que poderá lhe incitar desejos, não sacia suas vontades. Sendo possuidor de um corpo ainda vivo quem busca a ascese reprime o seu querer propositalmente e passa a fazer apenas o que não gostaria. Se ocorrer de um indivíduo egoísta agir de modo injusto com o asceta, este não se importará, pois entenderá como uma contribuição para o processo de negação de sua Vontade. Assim, passa a padecer dos desgostos com ânimo, impondo ele mesmo muitas punições a si, como o jejum; a castidade (já antes citada como essencial a essa prática); a autopunição; o autoflagelo, almejando assim torturar a Vontade, identificada como a causa de seu próprio sofrimento e do mundo como um todo. Se todo esse processo resultar na morte do indivíduo, esta será apreciada e abraçada como a redenção. Para Schopenhauer, neste caso, a essência que ainda persistia pelo fenômeno, encerra-se, o mundo termina para ele. Poderíamos pensar que, ao se entregar diante de tantas aflições, o indivíduo esteja de fato querendo isso, ele quer sofrer, ele quer buscar sua redenção. Se assim fosse, ele estaria agindo de acordo com seu querer, o que entraria em desacordo com o que Schopenhauer propõe. Porém, precisamos nos recordar da motivação do indivíduo, que é a negação da Vontade, ou seja, ele age de modo para alcançá-la, freando seus anseios. 794

No parágrafo seguinte, Schopenhauer esclarece que toda essa concepção exposta não foi simplesmente inventada por ele em um momento de inspiração, mas é o retrato da vida dos santos e praticantes religiosos. Independentemente de suas formações, se revelam através de suas condutas de vida movidas pelo conhecimento intuitivo, conforme ele apresentou no capítulo 66. Lembrando da distinção entre conhecimento intuitivo e conhecimento abstrato, apenas os filósofos são capazes de transformar o conhecimento intuitivo em conhecimento abstrato. Schopenhauer acredita conseguir expressar abstratamente o que se vê apresentar como modelo de vida dos santos. Apenas a sua conduta o evidencia como santo. Pois só ela, em termos morais, procede não do conhecimento abstrato, mas sim do conhecimento imediato do mundo e da sua essência, apreendido intuitivamente e expresso por ele em dogmas apenas para satisfazer sua faculdade racional. (Ibidem, p. 487) contrário. E desse modo, não é necessário que um santo seja filósofo ou o No parágrafo dez Schopenhauer assume que, diante de todas as considerações feitas até então, ele pôde apenas elucidar de modo geral e abstrato o conceito da negação da Vontade de vida. Entretanto, como a ascese se dá intuitivamente, não bastam apenas explanações filosóficas, mas são necessários exemplos reais para ilustrar o que foi dito até então. Como primeiro personagem citado temos São Francisco de Assis, que após uma juventude conturbada, se converteu e viveu inteiramente dedicado aos pobres e a vida religiosa. Envolto na colocação de algumas biografias, Schopenhauer alerta que é indiferente se os casos expostos provêm de uma religião teísta ou atéia. Em seguida, o autor cita, tecendo muitos elogios, a autobiografia de Madame Guion, a biografia de Espinosa, 795

e Goethe, que apresenta a vida idealizada de sua personagem, senhorita Klettenberg, narra a vida de São Felipe e apresenta também sua biografia. Para Schopenhauer é importante sempre admirarmos estas pessoas, já que elas se diferem dos demais indivíduos ordinários que buscam apenas afirmar sua Vontade. Para quem se ocupa do estudo da conduta ética, deve sempre saltar aos olhos as pessoas que buscam incessantemente a renúncia da Vontade e transmitem o conhecimento intuitivo. Como exemplo mais próximo do que acabou de ser colocado temos o cristianismo. Desde os apóstolos nos deparamos com preceitos que encaminham à ascese, tratado nos evangelhos como abnegação de si e carregar a própria cruz. Durante o percurso do cristianismo encontramos mais manifestações nesse sentido, porém são nos santos e místicos que, de uma forma mais completa, vemos o renascimento em Deus e o esquecer-se de si próprio. Aqui Schopenhauer apresenta edições que, a seu ver, ilustram maravilhosamente este ponto, sendo mais útil do que qualquer explanação teórica. No décimo segundo parágrafo o autor nos apresenta ao hinduísmo, visto como uma doutrina mais desenvolvida perante o cristianismo, já que este último ainda encontra-se em muitos aspectos preso à doutrina judaica. Apesar do pouco conhecimento que se tem da literatura hindu, é possível observar, pela leitura do que temos acesso, os casos de total negação da Vontade de vida por meio de inúmeras práticas que corroboram com a mesma. A meu ver é importante ressaltar aqui a imperturbável solidão para constante reflexão e a morte voluntária a que se encaminham. O autor faz referência à semelhança, neste quesito, entre as práticas cristãs e hindus. Apesar de serem diferentes nos demais aspectos, elas persistem e são relatadas a milhares de anos. 796

Tanta concordância em épocas e povos tão diferentes é uma prova factual de que aqui se expressa não uma excentricidade ou distúrbio mental, como a visão otimista rasteira de bom grado o afirma, mas um lado essencial da natureza humana, e que, se raramente aparece, é tão-só em virtude de sua qualidade superior. (Ibidem, p. 493) Adiante, é contraposto o asceta ao homem mau. O homem mau, além de não cessar o seu querer, passa a causar dor nos demais indivíduos, sendo tomado por um sofrimento exaustivo. Já o asceta é capaz de ser alegre, pois encontra a paz ao resignar-se e não mais se entregar à busca e saciedade de seus desejos. Para comparar com a ascese, Schopenhauer retoma, conforme tratou no livro III do MVR, a contemplação estética. Do mesmo modo que diante da admiração do belo esquecemo-nos de nós próprios e nos livramos de nossas preocupações por alguns instantes, o asceta permanece desta maneira constantemente. Ele desfaz os seus laços com o mundo. Nesse ponto encontramos uma citação de Madame Guion colocada por Schopenhauer. Tudo me é indiferente. Nada mais posso querer. Constantes vezes ignoro se existo ou não. (Ibidem, p. 495) Porém, o autor alerta que não é simples permanecer em estado de completa negação da Vontade. Uma vez atingida, é necessário lutar para mantê-la. Este é um processo caracterizado pela luta contínua com a Vontade de vida, onde é preciso muito empenho e constantes renúncias às tentações. O indivíduo que almeja a redenção precisa se privar de todas as suas vontades e buscar sempre o que lhe desagrada, se punindo e buscando a contínua mortificação da Vontade. Schopenhauer, no décimo sétimo parágrafo, mostra outro caminho para se alcançar a negação da Vontade de vida. Ele admite que são poucos os casos em que os indivíduos conseguem alcançá-la apenas pela visão através do princípio de individuação, conhecendo o sofrimento 797

do mundo todo. Importante levar em consideração as tentações e seduções que atormentam estes homens, tentações estas que muitas pessoas se referem e caracterizam como vindas do diabo. Porém, a maioria das pessoas só consegue alcançar a redenção através do sofrimento pessoal. Após passar pelos diversos graus de aflição, o indivíduo passa a reconhecer a si e ao mundo, suprimindo a dor até alcançar a paz e receber a morte. Há neste caso a possibilidade do homem mau ser purificado mediante um padecimento intenso. Mesmo tendo cometido muitas injustiças, ele pode se converter e buscar a paz interior através do sofrimento interno pelo qual passou. O autor cita aqui como exemplo o Fausto, de Goethe. Não são poucas as pessoas que se encontram nessa situação, em que devido a inúmeras circunstâncias, mesmo tendo cometido atos maldosos, atingem a conversão. Isso ocorre devido a completa falta de esperança em que se encontram. Passam a desprezar todos os tipos de maldade e perdoam com pureza seus inimigos, buscando sempre a prática da caridade sem distinções. Isso mostra o quanto os homens são capazes de realizar uma mudança na maneira de pensar. Após conhecer a maldade e o sofrimento, negam a Vontade de vida, visto que isso independe de quaisquer dogmas. Para exemplificar esse ponto, Schopenhauer menciona uma passagem de Mathias Claudius, que mostra o quão surpreendente e irreparável é a conversão católica. Importante ressaltar também que a proximidade da morte e a carência de esperança não são condições necessárias para a ocorrência da conversão. Isso é possível também através de uma forte desgraça, da prostração diante do horror. Para Schopenhauer, os reis, heróis e aventureiros se encaixam nesse quadro em muitos casos, por abandonarem suas vidas agitadas em detrimento de algo que os perturbam, para então levar uma vida dedicada aos demais. No vigésimo primeiro parágrafo o autor retoma a Vontade de vida com possibilidade de se afirmar novamente, mesmo em face do desespero. Ainda diante de sofrimentos intensos aparece uma vontade 798

veemente para sobrepô-los, de modo que desaparecem tais sofrimentos e retoma-se a afirmação da vida. Diante disso, só é admissível observar com distinção aqueles que empregam seu padecer não de modo individual, na esperança de melhorar a própria vida, mas elevando-o universalmente, apreendendo o todo e só assim se encaminhando para a resignação. Esse nobre caráter até então retratado carrega consigo tristeza, trata-se aqui de uma consciência nascida da nulidade de todos os bens e do sofrimento de toda vida, e não apenas do sofrimento pessoal. (Ibidem, p. 501) O indivíduo resignado nada mais deseja apenas se retrai e desfaz seus vínculos com o mundo. Aqui podemos observar certa alegria diante do pressentimento da morte. Para alcançar a redenção é preciso que o sofrimento assuma a forma do conhecer e não apenas fique preso à tristeza e ao sentimentalismo sem resignação. De um modo mais reduzido podemos dizer que quando observamos o padecimento pessoal e alheio, remontamos a uma imagem de santidade, e no que se refere às satisfações de desejos e prazeres, apenas notamos o apego à vida. A dor pode ser vista como a cura da maldade. No último parágrafo Schopenhauer sintetiza o que já havia proposto no decorrer do capítulo. Em geral, a negação da Vontade de vida deriva do conhecimento do conflito interno da Vontade e de sua nulidade, por meio do sofrimento. Para tal é indispensável pensar na salvação e redenção da vida. Anterior a isso somos apenas expressão da Vontade em um mundo no qual todos estão igualmente presos. Sua tese expõe novamente o indivíduo mau distante do conhecimento e da redenção, em que se encontra aprisionado às coisas mundanas, e mesmo suas alegrias não passam de fenômenos ilusórios ligados ao princípio de individuação. Já quando o princípio de individuação é transposto através do amor puro, é possível alcançar a salvação, a paz e a tranquilidade da morte. 799

Referências Bibliográficas: SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. Tradução de Jair Barboza. São Paulo: UNESP, 2005. SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. Tradução de Maria Lúcia Mello Oliveira Cacciola. São Paulo: Martins Fontes, 1995. 800