A IVA NA CONTABILIDADE A IVA está para a Contabilidade assim como a Justiça está para o Direito. Dado que a abreviatura IVA é normalmente usada com o significado de Imposto Sobre o Valor Acrescentado, esclarecemos que neste trabalho a utilizaremos com o significado de Imagem Verdadeira e Apropriada (i.e., a IVA e não o IVA ). A frase em frontispício 1 é, sem dúvida, elucidativa sobre a importância da IVA na Contabilidade, constituindo um dos principais motivos para a elaboração deste breve apontamento. Na verdade, a comparação da IVA/Contabilidade com a Justiça/Direito dános uma imagem real do tema, da qual sublinhamos a característica da subjectividade ou relatividade inerente a essa dupla dicotomia. A IVA, traduzida da expressão anglo-saxónica a true and fair view 2, é, por vezes, considerada um macro-princípio contabilístico, em torno do qual se orientam os denominados Princípios Contabilísticos Geralmente Aceites (PCGA) ou, como se refere no Capítulo 4 do Plano Oficial de Contabilidade (POC), Princípios Contabilísticos Fundamentais 3. A IVA pode ser considerada um termo filosófico e, de certa forma, abstracto que se entende geralmente como uma apresentação de contas, realizada de acordo com princípios contabilísticos aceites, usando importâncias tão exactas quanto seja possível e, doutro modo, estimativas razoáveis, procurando evidenciar, entre os limites das práticas contabilísticas actuais, uma imagem o mais livre possível de critérios subjectivos, distorções, manipulações ou ocultações de factos importantes. 1 Aparece em algumas comunicações apresentadas em congressos de contabilidade e em livros sobre Contabilidade Internacional, mas não descortinamos o autor. 2 A 4.ª e 7.ª Directivas da União Europeia e os Planos de Contabilidade Espanhol e Francês utilizam a expressão imagem fiel. 3 A título de curiosidade, sublinhamos que o art.º 22.º do ex-código da Contribuição Industrial, substituído a partir de 1989 pelo Código do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC), referia a expressão sãos princípios de contabilidade. 1
O Capítulo 3 Características da Informação Financeira, item 3.2 Características Qualitativas, do POC, estabelece que as características da relevância, da fiabilidade e da comparabilidade, juntamente com conceitos, princípios e normas contabilísticas adequadas, fazem com que surjam demonstrações financeiras geralmente descritas como apresentando uma IVA da posição financeira e do resultado das operações da empresa. Um dos aspectos conceptuais mais importantes da Contabilidade associado à IVA é o denominado mecanismo derrogatório que se traduz na eventualidade de não se cumprirem determinados PCGA, se o objectivo for o de possibilitar uma IVA mais adequada, i.e., que traduza uma maior veracidade das contas das empresas representadas pelas demonstrações financeiras 4 elaboradas pelo órgão de gestão. Assim se compreende que, numa linguagem metafórica, consideremos a IVA como um princípio-mãe, sendo os PCGA os princípios-filhos, ou, como atrás referimos, a IVA pode ser entendida como um macro-princípio contabilístico. O mecanismo derrogatório da IVA encontra-se previsto nas demonstrações financeiras, mais concretamente na nota n.º 1 do Anexo ao Balanço e à Demonstração dos Resultados (ABDR) prevendo que, com carácter excepcional, as disposições do POC, nomeadamente os referidos PCGA, possam ser derrogadas (entenda-se não cumpridas ) em prol da IVA. Neste contexto, tais derrogações não devem ser usadas indiscriminadamente, pois, como referimos, têm carácter de excepção, e funcionam como uma cláusula de salvaguarda da IVA, como descrevemos no esquema seguinte: A IVA E O MECANISMO DERROGATÓRIO CARACTERÍSTICAS MECANISMO QUALITATIVAS DERROGATÓRIO A IVA de: 4 (NOTA 1 DO ABDR) Englobam + o Balanço, as Demonstrações dos Resultados por Naturezas e por Funções, a POSIÇÃO FINANCEIRA Demonstração PCGA dos Fluxos de Caixa e os respectivos anexos. (BALANÇO) e 2 + RESULTADO DAS OPERAÇÕES OUTROS CONCEITOS (DEMONSTRAÇÕES DOS E NORMAS CLÁUSULA DE SALVAGUARDA RESULTADOS)
Fonte: Elaboração Própria De notar que ao órgão de gestão 5 como primordial responsável pela preparação e apresentação das demonstrações financeiras 6, de acordo com o item 3.1 Objectivos do POC e o item n.º 6 da Norma Internacional de Contabilidade n.º 1 (NIC n.º 1) do IASB, cumpre definir as práticas/políticas contabilísticas adequadas (v.g. amortizações, provisões, acréscimos e diferimentos, reavaliações) e pugnar pela utilização correcta e apropriada do mecanismo derrogatório da IVA. Por outras palavras, sempre que o órgão de gestão entenda, dentro do referido carácter excepcional, alterar as suas práticas/políticas contabilísticas e os PCGA associados deve fazê-lo tendo em consideração a IVA. Destacamos, ainda, que a alteração das práticas/políticas contabilísticas e a utilização do mecanismo derrogatório tem subjacente outros dois aspectos conceptuais intimamente ligados: o princípio contabilístico Da Consistência e a característica qualitativa da comparabilidade. Relativamente ao princípio Da consistência, o Capítulo 4 Princípios Contabilísticos do POC/89 prevê: Considera-se que a empresa não altera as suas políticas contabilísticas de um exercício para o outro. Se o fizer e a alteração tiver efeitos materialmente relevantes, esta deve ser referida de acordo com o anexo (nota 1).. Deste postulado ressaltamos o seguinte: 5 Administração, Gerência ou Direcção, conforme a estrutura orgânica da sociedade. 6 O art.º 65.º do Código das Sociedades Comerciais também atribuiu ao órgão de gestão essa responsabilidade. 3
- A regra é a de que as políticas contabilísticas não devem ser alteradas; - Excepcionalmente, as políticas contabilísticas podem ser alteradas e se o efeito for materialmente relevante (apelo ao principio contabilístico Da materialidade ) deverá ser justificado na nota 1 do ABDR; - Embora se refira apenas a nota 1 do ABDR, relativa ao mecanismo derrogatório, a alteração da política contabilística origina, também, a evidenciação na nota 2 relativa à característica da comparabilidade, i.e., os conteúdos não comparáveis com os exercícios anteriores. Em relação à característica da Comparabilidade, o POC preceitua (item 3.2.3): A divulgação e a quantificação dos efeitos financeiros de operações e de outros acontecimentos devem ser registadas de forma consistente pela empresa e durante a sua vida, para identificarem tendências na sua posição financeira e nos resultados das suas operações. Por outro lado, as empresas devem adoptar a normalização, a fim de se conseguir comparabilidade entre elas. A necessidade de comparabilidade não deve confundir-se com a mera uniformidade e não pode tornar-se um impedimento à introdução de conceitos, princípios e normas contabilísticas aperfeiçoados. Também a empresa não deve permitir-se continuar a contabilizar da mesma maneira uma dada operação ou acontecimento se a política contabilística adoptada não se conformar com as características qualitativas da relevância e da fiabilidade, nem, tão-pouco, deixar de alterar as suas políticas contabilísticas quando existam alternativas relevantes e fiáveis.. Neste conceito salientamos o seguinte: 4
- O apelo explícito ao princípio contabilístico Da consistência ; - O facto da característica da comparabilidade destacar a importância das outras duas características qualitativas do POC, a relevância e a fiabilidade. - É curioso o facto de, na expressão Também a empresa não deve permitir-se continuar a contabilizar... quando existam alternativas relevantes e fiáveis, se apelar à alteração da política contabilística quando se pretende dar uma imagem mais relevante e fiável. Ou seja, a própria conceptualização da característica da comparabilidade incute prioridade às características da relevância e da fiabilidade. Por outras palavras, estas duas características são hierarquicamente superiores à da comparabilidade. - A título exemplificativo, sublinhamos que esta abordagem conceptual tem sido reforçada, recentemente, a propósito da dicotomia custo histórico vs justo valor 7, especialmente nos instrumentos financeiros derivados, colocando-se do lado do custo histórico a característica da fiabilidade e do lado do justo valor a característica da relevância. O órgão de gestão deverá, ainda, assegurar que tais práticas/políticas contabilísticas sejam as mais adequadas e úteis para a decisão dos utilizadores/stakeholders internos (v.g., trabalhadores, accionistas, órgão de gestão) e externos (v.g., fornecedores, clientes, banca, administração fiscal, público em geral) dessas mesmas demonstrações financeiras. É o denominado paradigma da utilidade que preconiza que as contas da empresa deverão cumprir um dos requisitos essenciais da Contabilidade, i.e., o de constituir um sistema de informação útil para a tomada de decisões, não só dos gestores mas também dos restantes utilizadores/stakeholders. Neste contexto, tendo em conta essa possibilidade de alteração das práticas/políticas contabilísticas, dentro dos referidos parâmetros conceptuais, há quem adopte a utilização da expressão Contabilidade Criativa, traduzida da expressão anglo-saxónica Creative Accounting. Esta, de acordo com Amat 7 Esta dicotomia foi por nós sublinhada em estudo sob o título A Contabilidade - Utilidade para a Gestão (Decisão), publicado na revista Revisores & Empresas n.º 25 de Abril/Junho de 2004 (pp. 44 50). 5
Salas e Blake 8, consiste em manipular a informação contabilística para aproveitar-se dos vazios das normas existentes e das possíveis escolhas entre diferentes práticas de valorimetria oferecidas, transformando as contas anuais que têm que ser naquelas que quem as prepara preferem que sejam. Opinamos, porém, que numa abordagem positiva da Contabilidade Criativa, a mesma deverá ser interpretada e usada respeitando os princípios e normas contabilísticas, completando-os com o objectivo de melhorar a informação, ou seja, deve pugnar-se pela IVA da entidade, de forma a ser útil aos referidos destinatários das demonstrações contabilísticas. 8 AMAT SALAS, Oriol e BLAKE, Jonh: Contabilidad Creativa = 2+2 =?, Ediciones Gestión 2000, S.A., Barcelona, 1996 (p.9). 6