Cirurgia bariátrica e bulimia: quando o necessário se transforma em nada.



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Transcrição:

Cirurgia bariátrica e bulimia: quando o necessário se transforma em nada. Patricia Gipsztejn Jacobsohn 1 Antes de mais nada este trabalho trata das aparentes ambiguidades. A começar pelo título. Como o que é necessário se transforma em nada? Como num mesmo trabalho iremos aproximar anorexia e obesidade? Mas a contemporaneidade é igualmente ambígua. Nunca antes a oferta de alimentos foi tanta e tão diversificada. E nunca antes se exigiu tanto corpos perfeitos, magros, malhados. Há o peso da gordura, mas também o peso da leveza. A gordura é realmente um fardo pesado numa sociedade que privilegia a magreza, a leveza, a velocidade, a mobilidade e a ação em detrimento da reflexão. Me dizia um paciente: Emagrecer para mim requer muito esforço. É muito pesado. Bem mais pesado dos que os meus 160 quilos. As cirurgias bariátricas (do latim: baros, peso e iatren, tratar) têm se popularizado. E cada vez mais estes pacientes têm chegado aos consultórios dos psicanalistas. Para alguns pacientes que recebemos a cirurgia não é fonte de conflitos, já outros vivenciam a cirurgia de forma bastante sofrida. No caso que apresento, um transtorno alimentar se anunciou com a chegada da cirurgia. Quero deixar claro que não é a maioria dos casos. Que a cirurgia quando bem indicada e acompanhada de um trabalho analítico é uma excelente ferramenta no combate a obesidade. Sem dúvida nenhuma propicia a estes pacientes uma vida melhor, longe do preconceito e discriminação a que foram alvo, às vezes pela vida toda. Uma obesidade que carrega a marca do sofrimento. Freqüentemente vistos como horrorosos, desleixados, largados, nojentos e fracos de caráter. Totalmente culpados pela sua doença. Desobedientes e transgressores de um mundo voltado a estética corporal e ao culto desmedido ao corpo perfeito. Não é de se estranhar, portanto, que alguns pacientes, comemorem todo ano o dia da cirurgia, como um aniversário. 1 Psicóloga e Psicanalista. Especialista em Psicoterapia Psicodinâmica da Pré-Adolescência e Adolescência pelo Instituto Sedes Sapientiae. Membro da CEPPAN. Membro do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

Algumas questões são mais frequentemente presentes em pacientes operados. Claro que a reverberação psíquica de cada uma delas se efetua de maneira muito particular. Citando as duas de maior impacto, diria sobre a passagem da dieta líquida para a pastosa e sólida (efetuada nos primeiros meses da cirurgia) e a rápida e vertiginosa perda de peso. Com relação a primeira delas penso que muito mais do que o caráter regressivo que esta alimentação efetua nos pacientes (a analogia com a alimentação de um bebe é bastante óbvia: leite/papa/comida), o que acontece é que com a fabricação de um novo estômago e um novo jeito de se alimentar, transformam-se também as sensações corporais. Uma paciente conta que pergunta ao cirurgião no segundo mês de cirurgia o que era um arzinho que ela sentia que saia do estômago. Ao que o cirurgião responde: é fome, querida! Outra imagem obvia e familiar aos psicanalistas: a mãe que nomeia as sensações para seu pequeno bebê. Com relação a perda de peso rápida, posso dizer que além de ser difícil para o psiquismo acompanhar este novo desenho corporal, percebo que o peso perdido leva consigo a identidade destes pacientes. Por dentro (sensações corporais e imagem mental de si) e por fora (imagem no espelho) uma grande mudança se efetua. As indagações são muitas quando me deparo com sintomas anoréxicos ou bulímicos desenvolvidos depois da cirurgia. Do que se trata especificamente? Qual paralelo existe com as anoréxicas e bulímicas que recebemos? Existe alguma especificidade nestes casos? Algum manejo técnico específico? Para pensar estas questões, recorro a um caso clínico. Danuza é uma mulher interessante, de presença marcante com ideias firmes e fala macia. Tem 60 anos e dois filhos. Separou-se do marido há 15 anos quando começou a relacionar-se com uma mulher, com quem viveu por 12 anos. Atualmente tem namoros (homoafetivos) breves. Nas entrevistas preliminares tem como principal queixa o fato de estar engordando e vomitar diariamente. Freqüentemente mais de duas vezes ao dia. Tinha sido operada há 6 anos (Fobbi-Capella com anel) 2. Diz ter emagrecido quase 60 quilos, sendo que nos últimos 5 anos voltou a ganhar peso (por volta de 30 Kg). Diz ter verdadeiro pânico de voltar a engordar. 2 Atualmente há uma diversidade de técnicas cirúrgicas. Resumidamente tem-se as técnicas restritivas (que restringem a capacidade gástrica), técnicas disabsortivas (que reduzem a capacidade de absorção do intestino) e as chamadas técnicas mistas (como a Fobbi-Capella) que associam a restrição de ingestão alimentar com a disabsorção intestinal.

Fico intrigada frente aos vômitos. Na investigação clínica tento entender se teriam um sentido bulímico: como uma descarga da excitação pulsional,uma passagem ao ato. Procuro entender se tinham alguma relação com o medo de voltar a engordar, sendo um comportamento compensatório, como as purgações bulímicas. Ou estes vômitos eram reflexos de uma compulsão que entra em choque com uma contenção física, com a impossibilidade do comer? A distância em relação ao corpo era tamanha que a paciente era incapaz de discriminar. Não sabia se vomitava por estar empanturrada de comida ou pelo medo de engordar. Não percebia também quando estava com fome ou cheia de comer. O prazer com a comida era ainda algo distante. Ela dizia: Faço sempre a relação com uma máquina. Às vezes, aliás, me sinto uma máquina. Comer é abastecer pra não morrer. E ponto. Eu acredito que seu comportamento alimentar era quase mortífero. Dificilmente sentava-se para almoçar ou jantar. E pratica o que a nutrição convencionou chamar de grazzing, a famosa beliscadora, ingerindo pequenas quantidades de comida durante todo o dia. Neste caso comidas altamente calóricas. No exercício da clínica com pacientes anoréxicos e bulímicos percebo questões e conflitivas semelhantes às de Danuza. Assim como ela apresentam uma grande distância com relação ao corpo e as sensações corporais. Fome, cansaço, sono, por exemplo, são precariamente percebidos. Um psiquismo que parece não representar sensações corporais e que não inaugura a alteridade. Há constantemente uma confusão entre interioridade e exterioridade, entre o que vem de fora e o que vem de dentro. Os limites corporais são precários. Falta borda, contorno, pele. Maria Helena Fernandes nos diz (2006, p.139): Tudo se passa como se o corpo próprio não exercesse aí uma de suas funções que é colocar limite entre dentro e fora, exercendo assim o papel de fronteira entre o eu e o outro. A prática clínica tem demonstrado que uma característica marcante nos transtornos alimentares é o empobrecimento simbólico, da vida fantasmática e da atividade psíquica, o que muitas vezes leva a um prejuízo relacional e afetivo. O mundo interno é um país distante. Os objetos externos são pouco investidos e o eu fica superinvestido.não é exatamente o que percebo com esta paciente. Ela tem uma riqueza interna, uma boa capacidade de simbolização. Possui uma fala elaborativa, metafórica, além de um potencial criativo impressionante. Pinta quadros belíssimos e escreve maravilhosamente bem. Interessa-se por fotografias e literatura. Como exemplo trago aqui um poema, que ela me mostra no início de uma sessão:

Meus pensamentos giram tal qual este redemoinho que olho sem entender de joelho no chão busco respostas enquanto olho o vazio; O coração pulsa forte, tenho espasmos. As cores se misturam numa paleta fétida e formam um sinistro quadro abstrato; O necessário se transforma em nada; Cores de chocolate, cenoura, carne. De longe quem observa o quadro é gris. A dor na alma é maior que do estômago E os dedos viciados buscam o botão que ameniza o som. Pura sintonia. Perdi a conta de quantas vezes executei hoje este. 3 Saio em silêncio para que não me reconheçam através de meus passos. Não quero testemunhas para o crime que cometo contra eu mesma. Tenho medo de deixar vestígios, sinais, indicadores. A água que tudo purifica serve para lavar as lágrimas que em vão Tentam aliviar a culpa. Palavras sofridas. Os vômitos são usados como anestésicos para calar o sofrimento, como forma de alívio, mas a culpa traz o sofrimento psíquico de volta em cena. Obviamente a palavra esquecida chama a atenção de qualquer psicanalista. O que realmente ela executa? Que ato é este? Que determinações inconscientes ele carrega? É um forte grito por socorro. Também uma confissão de culpa, carregada de vergonha. Danuza se apresenta como a ovelha negra da família. Diz isto por ter assumido a sua homossexualidade e por ser o único caso na sua família. Mas penso que não só por isso. Ela é única da família com graduação universitária. Também não mora no mesmo bairro de toda a família. Foi, ainda, a única das mulheres a trabalhar fora. E sempre teve um trabalho atrelado a sua formação e em grandes centros empresariais ou ruas comerciais. É também a única a se interessar por programas culturais, literatura, artes e cinema. Ela tem como representação de figura materna uma mulher fraca, reprimida (sic), submissa. Fala de uma mãe muito pouco afetiva, com quem teve uma relação sempre distante e conflituosa. Diz nunca ter se sentido cuidada ou amparada. O olhar da mãe era sempre 3 Palavra que ela não consegue entender e também não consegue colocar nenhuma outra no lugar.

dirigido a um outro. Com o pai nutre uma relação de confiança e admiração. É com ele que está identificada. Freud parece situar a anorexia e os vômitos às fases pré-genitais da libido. (1892/93, 1893/1895,1905,1918) já que os sintomas são compreendidos pela via da histeria, do recalcamento do erotismo oral. Me pergunto se com Danuza é também disso que se trata. O que fica patente na história de Danuza é o ser do contra. Goza-se com o desafio. Desafia a castração, transformando escolha de objeto em identificação. Desafia também a cirurgia bariátrica quando engorda. Me parece que a questão é pós-edípica. A conflitiva está na convocação da genitalidade. Diferentemente da maioria dos pacientes gastroplastizados que já atendi, Danuza não é obesa desde a infância. Foi sempre magra, até casar-se. Casei e engordei. Teve dois filhos e em ambas as gestações engordou por volta de 25 kg, não voltando a emagrecer. Qual seria a representação psíquica da cirurgia? Acho que é uma questão importante e sem duvida central no processo analítico de alguns pacientes. A qualidade desta inscrição psíquica precisa ser trabalhada. Obviamente são múltipla representações, que variam de sujeito para sujeito. Mistérios e agruras do psiquismo. Configurações psíquica únicas, construídas de forma singular, partindo de constituições psíquicas diversas. Podemos aventar algumas possibilidades. Alguns pacientes, cansados da força imperiosa da própria pulsão, da adição e impulsividade que os leva a comer, podem enfrentar com a cirurgia um luto. Como um corte orgânico que deveria ser de ordem psíquica. Pode ser sentida como um corte edípico. O cirurgião, com o bisturi na mão, entra como a figura paterna que faz a contenção, que põe fim a folie a deux mãe e filha. Sou uma perdedora, perdi a guerra, não consegui, disse-me uma paciente. Com ela, fizemos um trabalho de desviar o caminho depressivo de que perdeu para a força de vontade. Tivemos longas e frutíferas conversas sobre a construção da sua obesidade, sobre a história que sua obesidade carregava. Em alguns pacientes que apresentam distúrbios da oralidade, o que se percebe é que o corpo sofrido carrega aquilo que a mente foi incapaz de processar, de simbolizar, de pensar. Angústias sem nome e sem representação afetiva, que ficam plainando no mundo mental, carecendo de significação. Uma vida imaginativa prejudicada que migra diretamente para o corpo. Corpo e mente, então, se misturam de forma indiscriminada. O que pode ocorrer em alguns casos é de esta indiscriminação dar margem para a fusão. Às vezes a fusão é com a mãe, outras com a comida, com bolsas, com álcool, etc. É esta fusão que dá o sentido de existência. O objeto da

compulsão é sempre tirânico. E de repente vem o bisturi! Algo imposto, uma contenção orgânica. A análise consiste, então, em matar o objeto tirânico ou, pelo menos, transformá-lo num objeto mais apaziguador. No caso de Danuza a representação psíquica da cirurgia está muito mais ligada a questão do desafio. Quando engorda e/ou quando ingere maior quantidade de alimentos que seu pequeno estômago é capaz de suportar, parece que a paciente desafia a função interditória da cirurgia. E não é um desafio somente ao seu corpo e a cirurgia, mas também a equipe médica e ao cirurgião como agentes castradores. Penso que o trabalho do analista nestes casos é muito delicado. É necessário paciência e sensibilidade. A vivência transferencial para estes pacientes pode ser muito ameaçadora, por vezes intrusiva. Pacientes que ora alimentam bem o analista, ora o deixam faminto, ora com água na boca. Interpretações que às vezes são aproveitadas, digeridas. Outras vezes são vomitadas e algumas vezes nem podem ser ouvidas. Analisar nestes casos é poder transformar o pensamento cru, gélido, carente de significação em palavras carregadas de afeto, nutritivas, ricas em calor, em sonhos possíveis, num sonhar produtivo. Um par analítico fecundo. Como eu já afirmei em outro trabalho (2011, p.99): a prática clínica pode ser encarada como uma aventura exploratória que requer da dupla analítica uma dose grande de coragem e disponibilidade. E do analista em particular, que seja um amante curioso da vida, do viver e da experiência humana. Bibliografia FERNANDES, M.H. Transtornos Alimentares. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006. (Coleção Clínica Psicanalítica). FREUD. S. (1892-93). Um caso de cura pelo hipnotismo. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v.1.. (1893-95). Estudos sobre a histeria. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v.2.. (1905). Fragmento da análise de um caso de histeria. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v.7

. (1918). História de uma neurose infantil. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v.17 JACOBSOHN, P.G. Atendendo adultos na perspectiva psicanalítica: conversando sobre a clínica. In: Teorias e técnicas de atendimento em consultório de psicologia. Berenice Carpgiani (org.). São Paulo: Vetor, 2011.