PROJETO DE DEUS A PARTIR DAS MULHERES NO EVANGELHO DE MARCOS.



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Transcrição:

PROJETO DE DEUS A PARTIR DAS MULHERES NO EVANGELHO DE MARCOS. O Evangelho de Marcos é um texto narrativo sobre a vida de Jesus. Todo texto é um tecido composto por palavras (fios de linha). O presente trabalho usará a ferramenta da exegese bíblica feminista para desfiar este tecido e descobrir os diferentes tipos de cores e texturas destes fios. Não se pretende destruir o texto, mas perceber a consistência e o que está nas entrelinhas deste. Após desfiarmos este tecido, alinhavamos novamente, mas já cientes de que quem os cozeu, o fez a partir de sua visão e de seu contexto histórico, social, religioso, filosófico etc. Tal propósito se justifica quando fazemos hermenêuticas. E aqui, queremos tratar das relações de gênero em nossa realidade social e religiosa. Este exercício propicia atualizar o texto no nosso contexto para, enfim, desvelar (tirar o véu) e entender as causas das violências que estão por trás das relações sociais e de gênero, tanto de outrora como de agora. Uma provocação que o método hermenêutico feminista orienta é de suspeitar. Então, fazer algumas perguntas ao texto: o que as mulheres no livro de Marcos estão fazendo? O que o texto nos diz sobre elas, o que elas querem nos dizer? Como nós lemos, como as igrejas leem e interpretam esses textos? No âmbito de leitura e de pesquisa bíblica já é conhecida a tese de que o livro de Marcos foi o primeiro escrito mais organizado sobre a vida de Jesus e em forma de Evangelho. E isto se deu em torno do ano 66 a 72 d.c. Neste período, as comunidades cristãs e de judeus enfrentavam um grande medo: as perseguições do Império Romano. O império impunha obediência ao seu poder político e religioso. Quem não obedecia era perseguido e crucificado na cruz. Por volta do ano 70 d.c, o terrível mal aconteceu, pois todos que enfrentaram o império (essênios, sicários, zelotas e outros) foram dizimados, o Templo foi destruído e, por isso, os cristãos e fariseus fugiram de Jerusalém. Por isso, se prestarmos atenção em todo o Evangelho, vamos perceber repetidas vezes a presença da palavra medo. Esta é uma palavra chave para entender o contexto da época. Diante deste sentimento, muitos/as das comunidades cristãs já estavam desanimando em prosseguir com o cristianismo, pois já não acreditavam mais na parusia (volta de Jesus) tantas vezes anunciada. O Evangelho de Marcos foi escrito com o propósito de encorajar essas pessoas, reanimá-las na fé de que o reino de Deus é possível se seguirmos o projeto que ele tem para nós. Neste estudo, vamos observar qual é o projeto de Deus a partir da ação, atuação e ensinamento das mulheres.

Na perspectiva de leitura feminista, vamos buscar informações que nos indiquem que o Evangelho possa ter sido escrito por comunidades circulares e igualitárias de mulheres e de homens, e que em algumas comunidades havia mulheres participando ativamente na liderança, mas que essa liderança tinha algo de especial do ensinamento de Jesus: era uma liderança a serviço. Para percebermos isso, vamos desfiar todos os textos que indiquem a presença da figura feminina em Marcos e perceber em que contexto Marcos nomeia essas mulheres e qual é a Boa Notícia de Jesus. Os itens 1 e 2 do presente estudo trata do chamamento ao discipulado de Jesus e à aderência ao projeto de Deus. No primeiro capítulo do Evangelho, Jesus congrega pessoas para seguir seu Movimento, pois ele não quis agir sozinho. Mas, no caminho Jesus enfrenta incompreensões por parte dos fariseus, escribas e herodianos (Mc 2,1 a 3,6.22-30), e até sua família e conterrâneos não o compreendem (Mc 3,21). Contudo, a multidão o segue (Mc3,7ss). Ele então resolve instituir doze (número simbólico no judaísmo) para seu Movimento (Mc 3,13ss). E adverte às pessoas ao seu redor de que fará parte de sua família (Movimento) quem entender e seguir o projeto de Deus. Ao longo do Evangelho, perceberemos que as mulheres foram protagonistas na revelação deste Projeto de Deus. É o veremos nos itens 3 a 7. 1- MARCOS 1,29-31 JESUS CHAMA PARA SEGUIR O PROJETO DE DEUS. É importante perceber o que acontece nos textos que antecedem a narrativa que vamos estudar. Jesus inicia sua vida pública, sendo batizado por João Batista, depois se retira e vai para o deserto. Sua primeira ação foi chamar alguns homens para seu seguimento. Em seguida, ele cura um endemoniado, e isto acontece na sinagoga, depois cura a enfermidade que levou a sogra de Pedro a ficar acamada, mas isto acontece na casa. Aqui se inicia o exercício proposto. Ao olharmos no texto a presença da figura feminina (sogra de Pedro), vamos fazer as perguntas sobre os acontecimentos que a envolve: Em que contexto a sogra de Pedro está envolvida nesse Evangelho, por que ela está acamada? O que Jesus fez para curá-la? O v. 31 informa que, depois que Jesus se aproximou, tocou e curou a sogra de Pedro, esta se pôs de pé, ou melhor, LEVANTOU, que, na língua grega, significa RESSUSCITOU e, em seguida, SERVIU (v. 31), que, em grego, significa DIACONIA.

No contexto de chamamento e de sinais, que vimos nos versículos anteriores, compreende-se que a sogra de Pedro também passa a fazer parte do movimento de Jesus, sendo diácona, um tipo de liderança naquela comunidade cristã. Mas por que Jesus teve de curá-la? O texto não explicita isto. Então vamos contextualizar a cultura e a sociedade daquela época. É conhecido pela pesquisa histórica da Bíblia que a sociedade judaica era essencialmente patriarcal. Isto significa dizer que o homem detinha o poder de autoridade e dominação sobre os bens, a mulher, os filhos e criados. A mulher não tinha dignidade humana, não era considerada cidadã, não tinha direitos, não podia dirigir a palavra a nenhum homem, que não fosse da família, não podia sair na rua sozinha, não podia frequentar os cultos no Templo e na sinagoga, se estava doente ou no período menstrual ou pós-parto era considerada impura, não podia aproximar e muito menos ser tocada por uma pessoa do sexo masculino que não fosse da família. Depreende-se deste cenário da cultura e religião judaica, que somente o homem poderia fazer parte do movimento de Jesus. Mas na leitura em questão (v. 31), vimos que Jesus começa a quebrar esses paradigmas e vai até a mulher, toca em seu corpo, conversa com ela. Este gesto de Jesus foi o suficiente para ressuscitar aquele corpo, tecido de alma, que estava tão oprimido, reprimido, subjugado que a levou ao estado letárgico. A cura que acontece aqui, não se revela somente na cura física, mas na sua totalidade (corpo e alma). Jesus mostra àquela mulher sua dignidade e, nas entrelinhas, chama-a a fazer parte do seu Movimento, servindo (diácona) na comunidade. Ela sai do estado letárgico (acamada, imobilizada) para o estado de ação e serve, ou seja, passa a ser diácona na comunidade. Na casa de Pedro, a sogra, que antes estava acamada, agora entra em ação (v. 31), assume uma função naquela comunidade. Pedro simboliza uma liderança na comunidade cristã com base na passagem em Mt 16,18ss, que lhe incumbe de edificar a igreja. Pedro é edifício e representa a igreja de Cristo. Naquele tempo, os judeus tinham o costume de usar o nome para simbolizar o grupo. Assim aconteceu com as doze tribos, ou seja, cada filho de Jacó representa, na verdade, uma tribo. Aqui, a casa de Pedro simboliza a comunidade ou igreja cristã, na qual Pedro e seus habitantes eram lideranças. A leitura mostra que na casa de Pedro havia gente doente, letárgica. A exegese revela que a comunidade/igreja de Pedro estava doente, imobilizada. Jesus veio para salvar esta comunidade letárgica, quebrar os paradigmas da época, que oprimiam as pessoas e as faziam doentes, imobilizadas. Tanto que Jesus ressuscitou a sogra e lhe deu um serviço importante para a igreja. Agora ela é DIÁCONA. A exegese feminista revela, tira o véu do texto e mostra que, no contexto de chamamento introduzido nos primeiros capítulos de Marcos, a sogra de Pedro foi uma das discípulas que Jesus chamou para fazer parte de seu Movimento.

A hermenêutica nos convida a atualizar aquele contexto de crises na igreja: nossas comunidades também estão acamadas? Imobilizadas? Por quê? Cada vez que lemos esta perícope é como se Jesus tocasse em nossos corpos e nos ressuscitasse e nos chamasse para fazer parte de seu Movimento. Assim como chamou aquela mulher, chama todos e todas a serem iguais no serviço do Evangelho. O Evangelho de Jesus foi a quebra dos paradigmas patriarcais. Posteriormente, os primeiros cristãos seguem os ensinamentos de Jesus e constituem em seu grupo mulheres na função de diaconia, trabalham na missão lado a lado com os homens, como em Rm 16,1. Diferentemente das comunidades petrinas, onde estavam na horizontal. O texto anterior nos dá indícios do movimento que Jesus faz para romper com as idéias legalistas da religião judaica: ele sai da sinagoga (Mc 1,29) - que é um espaço sagrado para os judeus e de segregação, onde existem hierarquias e onde a liderança é exclusiva do homem - e vai à casa (espaço sagrado para o cristianismo). A casa passa a ser o local que os excluídos das sinagogas podiam frequentar e onde Jesus costumava atender as pessoas. Essa leitura e interpretação cura muitas relações sexistas e, portanto, violentas, inclusive, na igreja. Pois, enquanto a casa de Pedro, ou seja, a igreja cristã, não mudar seus paradigmas patriarcais, hierárquicos e kiriocêntricos (o senhor, o homem, no centro), vamos continuar sendo igrejas acamadas, letárgicas, imobilizadas, doentes. 2 MARCOS 3,31-32 - O PROJETO DE DEUS É... Este relato informa que a mãe e os irmãos de Jesus foram à sinagoga para chamá-lo (v. 31). Mas, Jesus não os atendeu, pois estava envolvido em anunciar o projeto de Deus para a multidão que o seguia. Se olharmos o texto que antecede este relato, veremos que Jesus não fora compreendido pelos escribas, fariseus e herodianos (2,1 a 3,6), bem como pelos familiares e conterrâneos (3,20-21), ao anúncio deste projeto de Deus. Interessante também olharmos o texto que se segue a este relato (capítulo 4), pois veremos que Jesus, ao ensinar por meio de parábolas, fala da semente como termo denotativo para dizer que ela produzirá muitos frutos se for aceita e acolhida em terra boa. Entende-se que a semente é a palavra e a terra boa é a compreensão e o engajamento nesse projeto de Deus. No contexto de chamamento e de tantas incompreensões e falta de fé, fica fácil percebermos o que Jesus está provocando a seus/suas seguidores/as no texto que está no meio (capítulo 3,31-32). Quem são minha mãe e meus irmãos?

O relato de 3,31-32 informa a presença de pessoas que estavam em volta de Jesus (v. 32) e de pessoas que estavam do lado de fora. Diante de tantas incompreensões, Jesus levanta a questão: quem é minha mãe ou meu irmão? E responde: são todos/as aqueles/as que fizerem a vontade de Deus (v. 35). A interpretação bíblica informa que aqui continua o contexto de chamamento a seguir Jesus e, neste caminho trilhado por Jesus, ocorrerão muitas incompreensões (inclusive por parte dos seus familiares). O chamamento não se restringe aos homens, aos doze, mas a todos/as que fizerem a vontade de Deus. E qual é a vontade ou o projeto de Deus, conforme o texto bíblico dispõe? Este desafio que Jesus está propondo é a inauguração que vai desencadear todo o livro. Ele vai mostrar nos relatos seguintes qual é o projeto de Deus. A figura feminina mãe, irmã - representa todas/os que seguem o projeto de Deus. Qual é o projeto de Deus? Veremos a seguir, textos em que Jesus ensina qual o projeto de Deus. Nosso foco é perceber este projeto a partir das ações, atuações e ensinamentos das mulheres que ele conheceu. 3 - MARCOS 5,21-24.35-43; 5,25-34 (5,1 a 6,5)... É A IGUALDADE DE GÊNERO. Há dois textos interconectados: cura da filha de Jairo e cura da mulher que sangrava (hemorroíssa). A história da hemorroíssa interrompe a história da filha de Jairo. Existiria alguma ligação nessas duas histórias? A pesquisa bíblica informa que é próprio da literatura judaica usar a numerologia como recurso simbólico. O número doze significa totalidade para os judeus. Neste sentido, quando se diz que a hemorroíssa sofreu durante doze anos de sangramento, quer dizer que foi excluída do sistema religioso durante toda sua vida, desde a menarca devido sua condição de impureza. E para a filha de Jairo, que aos doze anos inicia a puberdade e suas consequências (menarca, matrimônios, gestações), isto lhe trará também uma vida de exclusões do sistema social e religioso, pois passará a ser considerada impura e dominada por outro senhor (o marido). Para a filha de Jairo, sua relação com a sociedade dali em diante será de violência e exclusão. Para as mulheres daquele tempo, é sofrimento para a vida toda, a pessoa está condenada e não tem salvação.

Temos aí dois contextos de exclusão, que gerava nas pessoas um profundo mal psíquico (depressão) que pode desencadear mal para o corpo. Do caminho da Galiléia até Jerusalém, muitos grupos não compreenderam Jesus. Este caminho de incompreensões à vontade de Deus levou a sua morte na cruz. Jesus está o tempo todo ensinando aos judeus qual é projeto de Deus, mas eles não o compreendem, salvo algumas figuras que foram destaques neste trajeto e que por isto mereceram contar sua história. O texto da hemorroíssa é um ensinamento que Jesus nos proporciona. Mas antes, precisamos percorrer os textos que circundam estes dois relatos. Ou seja, o que diz Mc 5,1-20 e Mc 6,1-5. Em 5,1-20, um doente (endemoniado) fora curado porque teve fé, deixara de ser considerado impuro e passara a pertencer e participar do sistema religioso que outrora lhe excluía. No entanto, em 6,1-5, Jesus continua enfrentando as incompreensões (ou falta de fé) por parte dos seus conterrâneos. Temos aí contextos de incompreensões, mas também de fé. Estas são chaves de leitura para entender os textos que queremos analisar. Quando há incompreensões temos exclusão, doenças e morte. Quando há fé, promove-se a inclusão, curas e ação. Este último é o que as pessoas estavam precisando. Por isso, Jesus vai até elas, toca-as e se permite ser tocado, preocupa-se com os problemas alheios, tem compaixão por seus sofrimentos e desperta nas pessoas o sentimento de dignidade, de ser humano e merecedor da salvação. A fé promove a cura na hemorroíssa e na filha de Jairo, bem como nos pais e por meio destes. A mulher que sangrava foi promovedora da sua cura, como atestado por Jesus: sua fé te curou. Ela tomou coragem, foi até Ele, que se sensibilizou da situação dela, travaram uma conversa, atitude impensável para a religião judaica, pois não se pode dirigir à palavra a pessoa do sexo feminino, muito menos uma impura. Por que a hemorroíssa não se curava, tendo gastado tanto com médicos? Porque a cura não é só física, é também da alma. Se ela era excluída, sofria de um mal que médico nenhum pode curar. Por ouvir falar em Jesus e acreditar no projeto de Deus, a mulher se fez curada, por isso, o texto mostra que a ação para a cura partiu da mulher que tomou coragem, saiu para as ruas, se expôs para conhecer os ensinamentos de Jesus, o projeto de Deus, que é de inclusão e não de exclusão. E qual é o mal que Jesus se refere aqui? Quando Jesus a interpela e diz: fique curada desse teu mal (vv. 32.34), significa dizer que é para a mulher tomar consciência de que também é digna de pertencer ao povo de Deus e não se sentir excluída, pois o mal aqui é o sentimento de

exclusão e condenação que a religião da época incutia nos considerados impuros. Jesus a faz ter consciência de que ela é digna do reino de Deus. Esta é a cura da alma que só um psicólogo como Jesus poderia promover, restituindo-lhe a autoestima. Por outro lado, o pai da menina também se converte pela fé no projeto de Deus proposto por Jesus, vai até ele, pede cura para sua filha, entende que o problema que a menina tem é psicológico, ela está em depressão, acamada, não quer comer. E Jesus o atende, vai à casa, lugar sagrado para os cristãos, lugar de acolhimento, de inclusão, onde ficam as mulheres. Pede para os pais (pai e mãe) entrar para participar das dores da filha, pede também para Pedro, Tiago e João o seguir até o quarto para mostra-lhes o motivo da sua prostração e morte (a exclusão social e religiosa), toca na menina e mostra-lhe compaixão aos seus sofrimentos. Então a menina ressuscita, levanta: talita qum : levanta, menina! Então ela passa a comer, pois se cura da depressão. Assim como o caso da hemorroíssa, o mal aqui é da exclusão, que a menina é sabedora e já sofria por antecipação à vida adulta que ela teria que enfrentar, pois não lhe era permitido viver sua juventude, tendo, por certo, já sido prometida em casamento por algum ancião judeu, não escolhido certamente por ela. Mas os pais da menina tiveram fé e se converteram ao projeto de Deus, reconheceram o mal que assolava a filha e mudaram de vida. Certamente seguiram Jesus. E hoje, qual o mal acometido a tantas mulheres? Poderíamos citar vários males que assolam as mulheres hoje. Mas de forma resumida, colocamos no âmbito social a violência sexista e no âmbito particular a violência doméstica. E estes males poderiam ser superados se acolhêssemos verdadeiramente o projeto de Deus. O remédio aqui é despertar nas mulheres a necessidade de se empoderar do conhecimento do projeto de Deus e, com isso, passar a ser sujeito de sua vida, romper com os males que geram doenças da alma e do corpo. Jesus demonstra com seus gestos o importante papel das igrejas: ir até as pessoas, tocá-las ou se deixar tocar por elas, estar próximo, estar presente, saber ouvilas, ter compaixão. Estes gestos transformam a vida das pessoas, dos excluídos/as, dos discriminados/as, dos empobrecidos/as pelo sistema. Estes gestos simples e verdadeiramente cristãos são a chave para a conversão e mudança de vida pela fé. A presença dos discípulos de Jesus (Pedro, Tiago e João) no quarto representa a missão da igreja. Sua missão é continuar a tarefa de Jesus que é contribuir no resgate da liberdade e autonomia das mulheres, e aqui mulheres jovens, como sujeitos de seu próprio caminhar. A Boa Nova do texto é que Jesus, que é homem e pertence a uma cultura patriarcal, reconhece o pecado social, a violência produzida contra as mulheres e adverte-as a não pecar mais, ou seja, a não se sujeitar nem se calar diante destas injustiças. Jesus alerta para a igualdade de gênero como projeto de Deus.

4 - MARCOS 7,25-30... É O RESPEITO À DIVERSIDADE E ACOLHIMENTO A TODOS E TODAS Antes de analisarmos Mc 7,25-30 é necessário observar o que temos nos arredores dessa narrativa. Ou seja, o que nos conta o capítulo 7,1-23 e o capítulo 8,1-21. Interessante notar que, no Evangelho de Mateus, teremos os mesmos textos, podendo até colocá-los em paralelo, porém relatado de forma mais discursiva, própria do evangelista. Em Mc 7,1-23, Jesus instrui seus discípulos a não serem rigoristas quanto à Lei, como faziam os fariseus, pois estes, de tanto se prender à letra da Lei, seguindo regras doutrinais, esqueciam-se do essencial, que é a conversão do coração do ser humano (vv. 20-23). E em Mc 8,1-21, teremos a partilha dos pães, para saciar todos os famintos e depois a advertência que Jesus faz a seus discípulos de não comer do fermento dos fariseus. Mateus, por meio de Jesus, explica o que significa este fermento: o fermento é a doutrina pregada pelos fariseus. Mais uma vez, Jesus adverte que esta doutrina (fermento) por estar presa à letra da Lei só exclui e segrega. Não faz o milagre da partilha (vv. 1-21), que é a união, a solidariedade. A doutrina dos fariseus exclui, pois atende somente a poucos. Estes textos vão nos ajudar a entender Mc 7,25-30, proposto no nosso estudo. Importante perceber que o texto em questão está no meio de todos estes acontecimentos e instruções que se referem à pureza/impureza, inclusão/exclusão, fundamentalismo/libertação, corpo/sentimento, preconceito/compaixão, sectarismo/acolhimento, fome/saciedade, pão/fermento, incompreensão/fé, e muitas outras relações que podemos perceber nos textos. Jesus vai para terra estrangeira para se refugiar dos seus, e lá, numa casa provavelmente de uma pessoa considerada pagã recebe uma mulher que não pertence ao judaísmo, é estrangeira, siro-fenícia, considerada pagã. Para os judeus rigoristas na observância da Lei, a mulher siro-fenícia, além de ser impura por ser simplesmente mulher, também é impura por não pertencer ao judaísmo, por ser cananéia. Para os judeus, todos os estrangeiros eram considerados cães ou porcos (Mt 7,6). A princípio, Jesus segue a doutrina judaica e comete o mesmo erro dos judeus: discriminar quem não pertence ao judaísmo: Deixa primeiro saciar os filhos; porque não convém tomar o pão dos filhos e lançá-lo aos cachorrinhos (v. 27). Lembre-se que todo/a estrangeiro/a era considerado cão para os judeus. Mas, a mulher, que já tomou a iniciativa de se aproximar de um judeu, homem, não residente daquela região, trava uma conversa com Jesus e o ensina a romper com o rigorismo da Lei e lhe mostra o PROJETO DE DEUS: dialogar e acolher o diferente: Sim, Senhor; mas também os cachorrinhos comem, debaixo da mesa, as migalhas dos

filhos (v. 28). Nas entrelinhas do debate que travam, ela quer mostrar para Jesus que todos são filhos/as de Deus. A filha da siro-fenícia estava com um espírito impuro. Para o judaísmo, estar com espírito impuro pode ser estar em situação de doença ou estar impedida de participar da vida social. Em algumas traduções refere-se a demônio e, também para aquela época e para aquele povo, era o mesmo que uma doença; e uma doença muitas vezes de origem desconhecida, misteriosa, quem sabe da psiquê? A casa da mulher (v. 30) estava doente por causa das pressões e opressões da sociedade daquele tempo, porque a idéia lançada para a população daquela região era de que quem não era judeu era condenado a não salvar-se. Agravante era ser estrangeiro e mulher. Por isso, podemos entender que a doença da filha possa ser relacionada à alma, uma doença psíquica. Quando a mulher siro-fenícia rompe com todas as barreiras da sociedade e vai atrás de Jesus, de um homem que se sabia curar os problemas da alma, desperta nas pessoas da casa a esperança de vida e salvação. Pela fé que moveu a mãe a sair em procura de cura para a filha, esta também se fez curada, teve esperança de uma mudança de vida. Jesus soube ouvir aquela mulher, escutou seus problemas e aprendeu com ela que o alcance do Reino de Deus é para todos/as. Logo nos próximos relatos, a partilha em torno de comida e de pão será tema do caminho de Jesus. Mas agora Jesus compreende que a partilha do pão também é para os considerados/as estrangeiros/as. O texto diz a região da Decápole, região estrangeira, daqueles que vieram de longe. São os estrangeiros que souberam da Boa Nova de Jesus e quiseram segui-lo. Jesus tem compaixão agora de todos/as, sejam judeus ou não judeus. Depois de ter ouvido a mulher siro-fenícia, Jesus realiza a oferta do pão para todos/as. E vão além: Jesus instrui aos discípulos o que aprendeu da mulher siro-fenícia e, num trocadilho com a questão de fermento e pão, adverte seus discípulos a não comer do fermento dos fariseus e de Herodes. Em Mateus 16,12, explica melhor que o fermento dos fariseus e de Herodes é a doutrina que, seguida ao pé da letra, exclui as pessoas, é fermento que não cresce, não produz, que não acolhe a todos/as e promove doenças da alma e do corpo. Essa leitura é uma provocação a refletirmos sobre nossas ações e pensamentos diante dos irmãos/as de outras religiões e culturas. A mulher siro-fenícia nos ensina a dialogar com o diferente, com as diversidades, a acolher a todos/as em nossa missão cristã. Até que ponto estamos presos à doutrina de nossas igrejas, presos à letra da Lei, que não consegue vislumbrar e abarcar todas as questões e dimensões de nossa vida, da vida dos/as outros/as pessoas? Nosso jeito de lidar com as leis de nossa igreja, as doutrinas, faz com que discriminemos ou excluamos o/a outro/a? Nossas atitudes cristãs promove a cura ou a doença nas pessoas?

5 - MARCOS 12,38-44... É FAZER JUSTIÇA SOCIAL Este texto relata o caso de uma mulher que não tinha nome, que era conhecida por ser viúva, ou seja, por antes pertencer a um homem e agora ser considerada pobre. Aqui queremos levantar as seguintes suspeitas: por que ela entregou tudo o que tinha? O que queria mostrar neste gesto? Será que ela conhecia seus direitos a partir da Lei? Nos capítulos 12 e 13 de Marcos, Jesus já chegou ao seu caminho final Jerusalém e daqui sabe qual será seu destino. Em Jerusalém, Jesus enfrenta as maiores incompreensões por parte de seus opositores: o poder religioso (os sacerdotes, escribas, fariseus, juízes do sinédrio) e o poder político (governo local e o império romano). Nestes capítulos, Jesus trava discursos com seus opositores e com seus discípulos sobre a questão da salvação. E nestes ensinamentos adverte sobre a exploração dos interesses religiosos que devoram as casas das viúvas (Mc 12,40), fazendo referência à exploração econômica que leva a desigualdade social e o empobrecimento, sobretudo das pessoas mais socialmente fragilizadas, por meio da propaganda religiosa. E neste contexto de conflito em torno do Templo, de autoridades religiosas que se exaltam e exploram as pessoas, Jesus aponta a figura da mulher como exemplo verdadeiro de demonstração de fé e de doação. A pobre viúva é a chave de leitura sobre a salvação que Jesus toma como exemplo para ensinar a multidão e os discípulos. É a chave de leitura para entender o projeto de Deus. - A pobre viúva serviu de exemplo para os que representavam os lavradores assassinos (Mc 12,1-12). Ela guardou bem a vinha e ofereceu a produção ao servo do senhor, o que veio buscar. Ela guardou em seu coração os ensinamentos sobre a Lei e ofereceu ao Senhor sua fé. - A pobre viúva serviu de exemplo para os fariseus sobre a dúvida em questão da moeda de César (Mc 12,13-17). Ela entrega no Templo - lugar de enriquecimento dos sacerdotes e da religião que explora - a moeda de César, que era na verdade o verdadeiro culto dos sacerdotes, sua adesão ao projeto de César. Fazendo isto, a viúva ensina que prefere o projeto de Deus, pois este, não prevê exploração econômica, diferenças sociais, exclusão. - Diante da ignorância dos saduceus sobre a Lei e de sua incredulidade sobre a ressurreição (Mc 12,18-27), a pobre viúva dá o exemplo de fé no Deus dos vivos, ao despojar-se de qualquer bem material.

- Diante da dúvida dos escribas sobre o maior mandamento (Mc 12,28-34), a pobre viúva demonstra que o maior mandamento é amar a Deus sobre todas as coisas, sobre todos os bens materiais. E ali, ao redor do Templo, a multidão se maravilhava de seus ensinamentos (Mc 12,35-37). Certamente, aquela mulher estava dentre a multidão e, se maravilhando com seus ensinamentos, acolheu verdadeiramente o Projeto de Deus, doou tudo o que tinha (vv. 43-44). Aquela mulher sem nome fazia parte da categoria social de pessoas que, segundo a Lei (Dt 10,18), Israel deve fazer justiça e proteger. Mas no tempo de Jesus já fazia muito tempo em que esta Lei não era cumprida pelos judeus. Marcos mostra as condições precárias em que aquela viúva estava vivendo. Pois, na penúria em que vivia, lançou como oferta as duas moedinhas (um quadrante, v. 42). O quadrante é uma moeda romana de cobre que valia um quarto de centavo. Ela não tinha mais nada de material e, muito menos, não tinha nem nome. Esta mulher sem nome despojou-se do NADA para SER o essencial ao projeto de Deus. Ali, o gesto daquela mulher foi TUDO o que Jesus precisava para sintetizar o que havia ensinado naquele Templo aos seus discípulos, à multidão, aos fariseus, aos saduceus e aos escribas (Mc 12,1-44). Ao citar a viúva como exemplo de salvação, Jesus também quis denunciar as injustiças sociais, as explorações econômicas que levavam as pessoas à miséria. E em nosso tempo, estamos dando mais valor ao dinheiro ou à vida, ao ter ou ao ser? Estamos matando, ou seja, estamos contribuindo para as diferenças e injustiças sociais? Quais são as viúvas pobres, quais são os excluídos, os esquecidos, os desamparados? Enquanto cristãos/as, como estamos agindo em relação ao/à próximo/a empobrecido/a? Qual tem sido a opção preferencial das igrejas? 6 - MARCOS 14,1-11:... É SABER CUIDAR DO/A OUTRO/A, SER SOLIDÁRIO/A. Este texto fala sobre a mulher de Betânia que entra na casa e unge Jesus, derramando todo o perfume de nardo em sua cabeça. Vem após uma conversa sobre o futuro, como se preparar para enfrentar o final dos tempos: vigiai-vos (Mc 13,37). E está dentro do contexto da festa da Páscoa, em Jerusalém, festa simbólica de passagem e dentro do contexto de um grande conflito e perigo de morte que Jesus enfrenta diante do poder religioso (Mc 14,1). O texto prepara o leitor para um momento crítico e dramático da vida de Jesus. Aqui Jesus dá os últimos passos neste caminho percorrido, consequência das incompreensões pelas quais passou desde a Galiléia até Jerusalém.

Jesus sabe que continuará sofrendo incompreensões e conflitos até mesmo por parte de seus discípulos. Por isso, adverte-os a estarem vigilantes (Mc 14,34.38) sobre o futuro, sobre o final dos tempos. Aquela mulher sabia que Jesus sofreria, sentiria muita angústia, medo e dor. Por isso, usou de um perfume específico para ungir Jesus. O nardo era um perfume usado naquela região para ungir o corpo da pessoa que vai para a guerra. Esta espécie de perfume servia para espantar o medo e dar coragem à pessoa. Por isso, ela derramou todo o conteúdo do frasco de nardo em Jesus, para encorajá-lo diante de tanto sofrimento que enfrentaria dali para frente. Aquela mulher, sem nome, sabia que Jesus ia morrer crucificado e que não poderia cuidar do corpo após a morte. Por isso, Jesus reconhece aquele gesto: antecipou ao ungir meu corpo para a sepultura (v. 8). Podemos também perceber neste texto um debate de Jesus com seus discípulos sobre a questão de gênero, mais especificamente sobre o papel da mulher naquele lugar, no ambiente da casa. E não é qualquer casa, é a casa de alguém que já fora discriminado e considerado impuro, casa de Simão, o leproso. Muitos preconceitos e discriminações foram rompidos até ali. Mas ainda não romperam com a questão da diferenciação do papel social e, sobretudo, religioso entre a mulher e o homem. Este debate já era feito nas comunidades cristãs do período de 70 d.c., pois já discutiam a questão da hierarquia e liderança nessas comunidades. A mulher (não tem nome), provavelmente residente em Betânia, por isso passa a se chamar mulher de Betânia, demonstra ali seu papel sacerdotal. Ela, no meio de tantos e tantas, foi quem reconheceu Jesus como o verdadeiro rei, por isso, o ungiu. E foi profetisa também, pois fez análise de tudo o que estava acontecendo e percebeu o contexto conflitivo em que Jesus estava envolvido, pois sabia que ao enfrentar os poderes religiosos e políticos, ele seria entregue e, infelizmente, seria crucificado na cruz, como tantos que foram vítimas pela estratégia de poder dos Romanos. Os Sumos sacerdotes eram nomeados pelos procuradores romanos para entregar ao império todas as pessoas que representassem alguma ameaça à segurança imperial, a pax romana. Então decidiram entregar Jesus aos poderes de Roma, acusando-o de insurgir contra o governo, tendo-o como revoltoso. Assim, indubitavelmente ele pagaria a pena de morte, sendo crucificado e exposto no madeiro para servir de exemplo e temor a todos os outros insurgentes contrários ao governo. Com aquela unção, a mulher de Betânia procedeu como faziam todos os sacerdotes: proclama-o rei ao ungir a cabeça. Ela mostrou sua verdadeira fé e, por isso, não mediu esforços em desperdiçar aquele perfume tão caro. O gesto daquela mulher serviu para: proclamar Jesus como Rei e anunciar seu projeto; reconhecer o sofrimento que ele enfrentaria e, por isso, encorajá-lo no momento de crise, bem como ungir seu corpo para a sepultura, que é ritual tradicional judeu

Jesus novamente se utiliza do gesto de uma mulher como chave de leitura para ensinar qual é o projeto de Deus: cuidar do/a outro/a, ser solidário/a. Para nós, o texto mostra mais uma vez Jesus abrindo as portas para a atuação das mulheres nas comunidades com função importante de liderança. A mulher de Betânia é proclamada sacerdotisa e profetisa, pois ungiu Jesus como se unge um rei e com sabedoria vislumbrou os próximos acontecimentos: sua paixão, morte e ressurreição. Quando Jesus diz que este gesto deve ser lembrado para sempre, ele está legitimando o ministério sacerdotal daquela mulher. Porém, infelizmente muitas igrejas ainda não entenderam esta Boa Notícia. Ainda há igrejas que não têm o ministério oficial de sacerdotisas. Não reconhecem, portanto, a igualdade entre mulheres e homens, passando por cima do primeiro pilar que a sustenta: A Palavra de Deus, a Bíblia. Mas o texto, a partir do gesto da mulher, traz boas reflexões para nós cristãos/ãs: se este gesto é para ser lembrado (v. 9), é porque é para ser colocado em prática também. Temos tido compaixão pelo/a outro/a? Temos agido para amenizar o sofrimento do/a outro/a? Temos rompido barreiras da discriminação, exclusão social e religiosa para aproximar-se do/a outro/a? 7 - MARCOS 15,40-47; 16,1-8:... É CRER NA RESSURREIÇÃO. É ANUNCIAR O EVANGELHO A TODOS/AS. Nesses textos, está muito explícita a atuação de mulheres, e muitas mulheres no Movimento de Jesus. Mulheres que o seguiram, serviram e subiram com ele até Jerusalém (15,40-41) e depois até o sepulcro. Este texto vem depois da Paixão de Jesus: sofrimento e dores pela traição de Judas, pelo julgamento sumário no sinédrio, das negações de Pedro, dos açoites dos soldados, da crucifixão... Mas o capítulo 16 traz um problema sério e que influenciou a postura doutrinal da igreja cristã, sobretudo na igreja católica. Falo do versículo 8. Este verso contradiz com todo o Evangelho sobre a atuação das mulheres, sobretudo do capítulo 16,1-7. Pois aí temos explícito quem foi a primeira receptora da Boa Nova, a primeira Apóstola a anunciar: Jesus ressuscitou! Por causa desta passagem, até o ano 1200 d.c., Maria Madalena era considerada a Apóstola dos Apóstolos pelas comunidades cristãs. Era venerada e seu ícone representava-a com um manto azul, simbolizando o poder; vestido vermelho,

simbolizando a vida; segurando numa mão um ovo, simbolizando a portadora do anúncio da ressurreição e, na outra mão uma luz, simbolizado a vida. Infelizmente, a misogenia entrou forte na Igreja e Maria Madalena foi interpretada como sendo a pecadora, a prostituta, a mulher adúltera, seus ícones passaram a representá-la como prostituta ou pecadora, maltrapilha, segurando uma caveira em uma das mãos. Os primeiros padres traduziram demônios, considerado doenças de cunho desconhecido, por pecados e a identificaram como a maior das pecadoras, como uma prostituta. Ser prostituta na Lei judaica era ter um grande pecado. Por ser mulher, supõe-se que Maria Madalena também tenha sofrido várias discriminações e rejeições pela sociedade da época. Mas, graças ao Movimento de Jesus, Maria Madalena foi uma das líderes, era reconhecida pelo nome, não era conhecida como sendo filha, mãe ou esposa de algum homem, mas originária de uma cidade. Isto demonstra que tinha status de liderança. Ela era uma por si mesma e não por outro, por um homem, por um marido ou filho. Tudo isso, pode ter afrontado a hierarquia cristã nos primeiros séculos. No entanto, Mc 16,8 tem uma lacuna na narrativa que termina de forma abrupta e misteriosa. Podemos aí levantar a seguinte suspeita - uma vez que é uma contradição a todo o livro de Marcos: como as mulheres que seguiram, serviram, subiram, foram exemplos de fé e perseverança, abriram os olhos de Jesus para o projeto de Deus, podem fugir e ter medo diante da presença de Jesus ressuscitado e se negar a anunciar o Evangelho? Para esta resposta, o rodapé da Bíblia de Jerusalém nos informa que os próprios manuscritos originais são controversos. Diz ser difícil admitir que o v. 8 tenha terminado de forma tão abrupta. Donde a suposição que o final do v. 8 desapareceu por alguma causa por nós desconhecida e de que o atual acréscimo (Mc 16,9-20) foi escrito para preencher a lacuna. Apresenta-se como um breve resumo das aparições do Cristo ressuscitado, cuja redação é sensivelmente diversa da que Marcos habitualmente usa, concreta e pitoresca. Informa que o final que hoje conhecemos (vv. 9-20) era conhecido, já no século II por Taciano e santo Ireneu, e teve guarida na imensa maioria dos textos massoréticos (manuscritos) gregos e outros. Quando ousamos suspeitar e, aqui no caso, suspeitar de textos obscuros, é porque pretendemos investigar o que existe por trás das palavras. E aqui no caso, queremos descobrir ações de mulheres, a sua voz. Pudemos perceber no Evangelho de Marcos que as mulheres tiveram atuações importantes, decisivas, reveladoras do projeto de Deus. A partir da atuação de mulheres, Jesus pôde romper barreiras religiosas e culturais. Por isso, não podemos aceitar o fato de mulheres importantes no Movimento de Jesus ter simplesmente fugido (v. 8). A pesquisa revela que os vv. 9-20 do capítulo 16 não fazem parte do escrito original, é um adendo. Percebemos um corte na narrativa entre o v. 8 e o v. 9, é uma

espécie de segunda narrativa da ressurreição de Jesus. Suspeita-se que esta segunda narrativa tenha sido acrescentada posteriormente ao texto para justificar que Jesus delegou poderes para os onze para anunciar e fazer prodígios (Mc 16,11.15.20). E por esta narrativa, os primeiro padres consideraram que haveria somente 12 apóstolos, pois o primeiro já havia sido consagrado apóstolo e líder da igreja, que era Pedro (Mt 16,18ss). Além disso, nesta narrativa, os primeiros doutores deslegitimam o poder de Maria Madalena, bem como de qualquer outro/a que seguiram Jesus, com base nos infrutíferos êxitos de seus anúncios (Mc 16,11.13). Estes anunciaram, mas não convenceram a quem os ouvia. Devemos suspeitar, olhando o contexto das primeiras comunidades cristãs, por volta do final do sec. I e sec. II. Temos neste período muitos conflitos entre lideranças na igreja, que debatem a hierarquia. Temos aí, os efeitos da misogenia (aversão à mulheres) na cúpula desta liderança. Nas cartas deuteropaulinas, como cartas a Timóteo e Tito, que são escritos destes períodos, as mulheres são consideradas pecadoras porque Eva foi quem introduziu o pecado no mundo e por isso, as mulheres foram silenciadas, perderam a liderança na comunidade cristã (1Tm 2,12-15). Mas se queremos ouvir as vozes e ver as atuações destas mulheres cristãs, podemos ousar e reescrever o versículo 8, assim:... e fugiram do túmulo porque temiam a perseguição do poder religioso e político, mas foram até os/as outros/as seguidores/as de Jesus e anunciaram alegremente a sua ressurreição. Então creram e continuaram a proclamar seus ensinamentos. Nós cristãos/as somos testemunhas desta ressurreição porque carregamos conosco a fé no Cristo libertador! Daquele que ensinou um projeto de inclusão de todos/as na pertença à filiação divina, à salvação, à equidade de gênero, à prática da solidariedade, da justiça social. Por isso, muitas mulheres e homens feministas, em sua missionariedade, anunciam esse Jesus libertador, mesmo que enfrentando incompreensões e julgamentos sumários de muitas igrejas cristãs que impedem a voz e a vez dessas pessoas. CONCLUSÃO Ao desfiar os fios do texto, descobrem-se os diferentes matizes de fios e de mãos que os cozeram. Então, percebemos que na comunidade por trás do Evangelho de Marcos - pois se sabe que o livro não foi escrito somente por uma mão havia mãos leves, mãos que acolhem e que incluem, mãos de libertação. Foi uma comunidade, em si, libertadora, que tentou mostrar a essência dos ensinamentos de Jesus, que fez questão de colocar as atitudes e ensinamentos de mulheres como exemplo a ser seguido para quem quer seguir o projeto de Deus.

Mas, infelizmente, o texto não manteve sua originalidade, houve muitas mãos que o manipularam e acrescentaram fios pesados, duros, fios tecidos por mãos que excluem, que discriminam, que violentam, mãos que querem o poder hierárquico, invés do poder circular, como ensinado por Jesus. O trabalho artístico por trás da literatura de Marcos foi muito bem costurado, de forma que podemos ver seus ricos detalhes, que só uma arte é capaz de fazer: a comunidade de Marcos quer mostrar o retrato de Jesus, suas ações e ensinamentos. Têm dois objetivos principais: mostrar quem é Jesus e, a partir desta revelação, mostrar o que significa ser discípulo/la de Jesus. Isto é fundamental para nós cristãs/ãos, pois seguir Jesus não é percorrer um caminho sem riscos, brando, sem tribulações. Seguir Jesus é viver em paz, mas uma paz inquieta, que pretende quebrar paradigmas conservadores e excludentes. A comunidade de Marcos quer mostrar o projeto de Deus para seus/as seguidores/as e, para isso, coloca as mulheres que foram tão excluídas, discriminadas e violentadas, que foi a categoria social e de gênero mais sofrida e fragilizada na época - como chave de leitura deste projeto de Deus ensinado por Jesus, ou seja, a igualdade de gênero, o respeito às diversidades e acolhimento a todos/as, a justiça social, o saber cuidar, ser solidário e anunciar a Boa Notícia! A hermenêutica feminista traz à luz estas revelações para atualizá-las no nosso tempo. Oxalá, as igrejas cristãs possam mais que ouvir, possam escutar esta BOA NOVA de Jesus e, como o próprio Jesus se co-moveu (moveu-se junto para o lado dos/as mais fragilizados/as), também a igreja possa se co-mover, e possa quebrar paradigmas doutrinais, romper barreiras que afastam ao ecumenismo, fazer a opção preferencial pelos pobres, nas suas catequeses priorizar o ensino do Bem Viver, do cuidar do/a outro/a, que se estende também à questão da justiça socioambiental em relação a toda a natureza, entender que todos/as são verdadeiramente profetas e profetisas, sacerdotes e sacerdotisas que caminham para a realização do projeto de Deus, do reino de Deus, de outro mundo melhor e possível para todos/as. Por: Simone Furquim Guimarães, professora de teologia, assessora do CEBI.