Lideranças pentecostais femininas: notas sobre a re-elaboração da identidade feminina no meio pentecostal e sua influência nas demais esferas sociais.

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Transcrição:

Fazendo Gênero 8 - Corpo, Violência e Poder Florianópolis, de 25 a 28 de agosto de 2008 Lideranças pentecostais femininas: notas sobre a re-elaboração da identidade feminina no meio pentecostal e sua influência nas demais esferas sociais. Janine Targino da Silva (PPCIS/UERJ) Pentecostalismo autônomo; identidade feminina; relações de poder ST 29 Relações de poder e gênero Introdução De acordo com os dados apresentados pelos recenseamentos demográficos realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o campo religioso brasileiro tem sido palco de uma vertiginosa expansão dos evangélicos 1. Na década de 1940, os evangélicos constituíam apenas cerca de 2,6% da população brasileira, mas, desde então, este grupo religioso revelou-se como um dos que mais crescem no Brasil: progrediu para 3,4% da população total em 1950, para 4% em 1960, para 5,2% em 1970, para 6,6% em 1980, para 9% em 1991, e, finalmente, atingiu a marca de 15,4% no ano 2000. Na análise da expansão evangélica, destaca-se o papel importantíssimo exercido pelos pentecostais e neopentecostais, visto que eles cresceram 8,9% anualmente, enquanto os protestantes históricos não superaram os 5,2% de crescimento anual (MARIANO, 2004). Na esfera da expansão pentecostal, sobressai a presença feminina. O último Censo realizado no Brasil aponta que 56% dos seguidores de Igrejas evangélicas são mulheres. Esse fato cria uma desproporção que, no conjunto das Igrejas pentecostais, mostra-se com ainda mais relevo, o que acaba por dar um rosto feminino ao pentecostalismo (MACHADO, 2005: 388). Dentre os fatores que influenciam a maior receptividade das mulheres em relação ao pentecostalismo estão os espaços alternativos criados pelas Igrejas pentecostais para a discussão dos problemas familiares e femininos, o que possibilita a construção de redes sociais que ajudam as mulheres a recuperarem a auto-estima, a diferenciarem-se de seus familiares e a entrarem no mercado de trabalho (MACHADO & MARIZ, 1997). Além disso, como nos indica Birman (1996), não devemos esquecer que as Igrejas pentecostais tratam fundamentalmente das aflições humanas, e tais assuntos, geralmente, estão vinculados à esfera doméstica. Em função disso, cria-se uma situação onde a mulher passa a exercer o importante papel de mediadora na relação com o sagrado dentro de suas famílias (BIRMAN, Ibidem). No entanto, ainda que as mulheres constituam a maioria no meio evangélico, grande parte das Igrejas não permite que a parcela feminina pratique o pastorado. Somente as Igrejas históricas (metodistas, luteranas e anglicana), duas Igrejas pentecostais (Exército da Salvação e Igreja do

2 Evangelho Quadrangular) e, posteriormente, a Presbiteriana Unida, aceitavam mulheres como pastoras em seus púlpitos (SANTOS, 2002). Apenas na década de 80, simultaneamente ao crescimento das denominações neopentecostais, inicia-se um movimento de abertura no que diz respeito ao pastorado feminino (SANTOS, Ibidem). Contudo, isso não significa que até então as mulheres evangélicas estiveram totalmente à parte do exercício de importantes funções em suas igrejas. Cargos de liderança associados á habilidades inerentemente femininas, tais como a direção de escola bíblica dominical e a organização de grupos de oração, são comumente atribuídos às mulheres. Sendo assim, As verdadeiras limitações às mulheres evangélicas encontram-se especificamente vinculadas ao exercício do pastorado, pois este traz consigo a exigência por maior autoridade eclesiástica e cria um ponto de discussões bastante acaloradas entre líderes das mais variadas denominações (SANTOS, Ibidem). Mesmo com a relativa permissibilidade ao pastorado feminino em determinadas Igrejas, surgem insatisfações por parte das pastoras que se vêem submissas a uma hierarquia ainda bastante pautada na figura masculina. Esta situação, agregada ao descontentamento de mulheres convertidas a denominações que vetam o pastorado feminino, transformou-se num campo propício para o surgimento de um movimento responsável por promover alterações significativas no âmbito das denominações pentecostais: a fundação de Igrejas pentecostais autônomas por mulheres. Impulsionadas pela vontade de viver sua fé de um modo alternativo, as autoproclamadas pastoras e bispas rompem com as congregações pentecostais e neopentecostais das quais eram seguidoras e fundam pequenas igrejas em espaços adaptados. Trata-se, então, de um movimento de dissidência que adota o pentecostalismo autônomo 2 como via alternativa para a vivência da fé pentecostal sob novos preceitos. Através da análise dos dados conseguidos por meio de pesquisa de campo feita em Igrejas pentecostais autônomas fundadas por mulheres no estado do Rio de Janeiro, e de entrevistas feitas como as líderes, esta comunicação busca apreender como este movimento altera a identidade feminina e as relações de poder no meio pentecostal e em outras esferas da vida social. O dado de suma importância para esta pesquisa, e que permeia toda a análise aqui exposta, é o fato de que o surgimento destas Igrejas autônomas transforma mulheres até então submissas em líderes religiosas, possibilitando, assim, alterações significativas no âmbito das relações de gênero profundamente pautadas na desigualdade. As cisões o que leva estas mulheres a fundarem suas próprias Igrejas? Como dito acima, o ambiente criado pelas limitações impostas ao pastorado feminino no meio pentecostal provoca insatisfações que têm levado muitas mulheres pentecostais a fundarem suas

3 próprias Igrejas. Este movimento de constituição de Igrejas pentecostais autônomas, geralmente, é precedido por cisões conturbadas entre as novas líderes e seus antigos pastores. Via de regra, tais cisões são motivadas por questões problemáticas que insurgem dentro das Igrejas ás quais as líderes foram membros seguidoras, e, justamente por se tratarem de desentendimentos ligados à esfera do religioso, a permanência destas mulheres nas Igrejas que seguiam torna-se algo inviável. Um caso exemplar 3 é o de Irmã Joyce 4. Seguidora de uma igreja pentecostal da Baixada Fluminense durante aproximadamente cinco anos, atravessou uma fase de extrema dificuldade financeira quando se viu sozinha para criar seus dois filhos após uma separação conjugal bastante difícil. Ciente do papel de destaque que exercia na igreja que freqüentava, onde distribuía revelações 5 e realizava orações de cura pelos fiéis, solicitou ao seu então pastor ajuda financeira para que pudesse, ao menos, alimentar seus filhos enquanto não conseguisse outros meios para tal. Tendo o pedido de ajuda recusado, com o argumento de que aquela igreja não poderia fazer filantropia com as ofertas dadas pelos fiéis, Irmã Joyce não encontrou mais motivos para continuar seguindo uma igreja que lhe virara as costas em um dos piores momentos de sua vida. De acordo com seu relato, sua insatisfação com seu antigo pastor intensificou-se ao saber que o verdadeiro motivo que o levou a recusar ajuda foi o medo do mesmo de que a influência e poder de decisão de Irmã Joyce aumentasse consideravelmente dentro da igreja caso ela recebesse parte (ainda que ínfima) das ofertas oferecidas pelos fieis. Dessa forma, Irmã Joyce afastou-se daquela igreja e migrou para a Igreja Pentecostal Deus é Amor, onde permaneceu por alguns meses. Em seguida, após receber a revelação de que Deus lhe daria um templo, fundou sua própria igreja pentecostal em um bairro pobre da cidade de Nova Iguaçu, transformando-se, assim, em Pastora Joyce. Outro exemplo que mostra o quanto desentendimentos surgidos entre mulheres pentecostais e seus pastores pode ser um verdadeiro impulso para a criação de novas igrejas é a história de Irmã Joana. Durante muitos anos, Irmã Joana seguiu uma igreja pentecostal comandada por um pastor que, segundo ela, não aprovava a participação de mulheres nas decisões da igreja. Nesta igreja, a atuação de Irmã Joana era semelhante à de Irmã Joyce, com a distribuição de revelações e realização de orações de cura pelos enfermos. Em uma destas revelações, Irmã Joana entrega uma mensagem ao seu então pastor, lhe dizendo que o filho que sua esposa esperava era do sexo feminino. O pastor demonstrou insatisfação com esta revelação, pois seu desejo era que a criança fosse um menino, e por isso promoveu uma campanha para que os fiéis não mais dessem crédito às revelações distribuídas por Irmã Joana. A situação ficou ainda mais tensa após o nascimento da criança esperada pela esposa do pastor, que de fato era uma menina. Com a constatação de que a revelação feita por Irmã Joana era verdadeira, a igreja dividiu-se entre aqueles que defendiam a Irmã frente às acusações do pastor e aqueles que não

4 estavam satisfeitos com a crescente influência de Irmã Joana na igreja. O desfecho da história aconteceu com o afastamento de Irmã Joana daquela igreja e a fundação, por ela própria, de uma igreja pentecostal da qual é a única líder, sendo atualmente tratada como Bispa Joana por seus seguidores. Nessas e em tantas outras histórias relatadas pelas pastoras entrevistadas, o ponto em comum que parece estar no centro da principal motivação que as levaram a fundar suas próprias igrejas são os desentendimentos gerados pelo tratamento diferenciado que seus antigos pastores lhes davam frente à ameaça iminente de crescimento do poder e influência dessas mulheres. Extremamente marcada pelo elemento masculino, a hierarquia de grande maioria das igrejas pentecostais não permite o surgimento de líderes femininas que exerçam papel semelhante ou superior ao exercido pelos homens. Este fato constitui um dos principais elementos que impulsionam várias mulheres pentecostais a optarem pelo pentecostalismo autônomo como uma nova possibilidade para viver sua religiosidade. A re-elaboração da identidade feminina no meio pentecostal de submissas à líderes religiosas A cisão com seus antigos pastores é de suma importância para estas mulheres, pois é a partir deste momento que se abre a possibilidade de construção de uma nova identidade para as mesmas. Através da fundação de pequenas igrejas pentecostais, mulheres até então submissas a uma hierarquia marcadamente masculina passam a viver sua religiosidade pentecostal de outra maneira. Nas igrejas criadas por estas mulheres dissidentes são elas que ocupam o papel de destaque, exercendo plenamente a função de comando frente a um séqüito majoritariamente feminino. Nas novas igrejas pentecostais autônomas fundadas por mulheres, o poder para a tomada de todas as decisões eclesiais concentra-se nas mãos das líderes. Esse é o mais importante aspecto do fenômeno aqui apresentado, uma vez que este se tornou uma condição indispensável para a viabilização do pastorado feminino de uma forma até então muito pouco vista. Dentro do processo de ocupação do cargo mais relevante dentro da igreja, a identidade feminina no meio pentecostal ganha novas nuances, contrastando com a tradicional imagem de mulher absolutamente submissa à autoridade religiosa representada pela figura masculina. A posição de destaque ocupada pelas novas líderes fica ainda mais evidente quando observamos as funções exercidas por seus esposos. Embora a grande maioria das pastoras e bispas entrevistadas para esta pesquisa sejam viúvas ou divorciadas, aquelas poucas líderes que possuem relacionamento conjugal estável impõem aos seus maridos o lugar de vice dentro da hierarquia de suas igrejas. Assim sendo, no âmbito da igreja, os maridos destas pastoras e bispas ocupam uma posição similar a que anteriormente era ocupada por suas mulheres nas igrejas as quais elas seguiam. O

5 ponto relevante na observação desta particularidade das igrejas pesquisadas é justamente a ênfase dada ao poder religioso feminino, já que tal poder é exercido sem a influência masculina. Pode-se dizer, sem dúvidas, que a constituição destas novas igrejas pentecostais autônomas comandadas por mulheres altera de modo pujante a identidade feminina no meio pentecostal. A transformação de mulheres submissas em líderes absolutas rompe com o estereótipo sustentado por um amplo conjunto de Igrejas evangélicas, nas quais as mulheres não podem ir além do comando de escolas bíblicas e organização de grupos de oração. Reunindo um considerável séqüito em torno do carisma que possuem, estas mulheres autoproclamadas bispas e pastoras nos mostram que, mesmo sem justificação bíblica 6 evidente para o pastorado feminino, é possível a re-configuração da identidade feminina pentecostal de acordo com parâmetros mais liberas do ponto de vista do exercício do pastorado. A influência da identidade adquirida dentro da religião sobre as demais esferas sociais É notável a influência que a nova identidade adquirida pelas líderes no meio pentecostal exerce sobre outras esferas nas quais estas mulheres estão inseridas. O primeiro ponto a ser destacado é o que diz respeito às funções que as pastoras e bispas ocupam dentro de suas famílias. Como dito acima, muitas das líderes entrevistadas para esta pesquisa são viúvas ou divorciadas. Dessa forma, as atribuições inerentes ao cargo de chefe de família tornam-se, inevitavelmente, de responsabilidade destas mulheres, que cuidam sozinhas de suas famílias. Este dado não contradiz as indicações dadas por diversos autores que se dedicam ao estudo do papel da mulher no domínio da família, e isso mostra o quanto as novas líderes evangélicas estão inseridas no bojo de um processo global que promove mudanças na posição da mulher em diversas esferas sociais. Um segundo ponto a ser tratado é a participação destas novas líderes na comunidade em que vivem. Tendo em vista o fato de que as igrejas abordadas para esta pesquisa estão localizadas em áreas marcadas pela ausência do estado, não causa espanto que as comunidades onde estas igrejas são criadas sejam ambientes propícios para o surgimento de novas formas de sociabilidade. Nestas áreas atingidas por baixos índices de desenvolvimento humano, o vizinho tem muito mais a oferecer do que os governantes oficialmente instituídos, e neste contexto as pastoras ocupam um lugar de destaque. Em questões de emergência relacionadas aos moradores das adjacências de suas Igrejas, é comum que elas sejam solicitadas para prestar auxílio, independente da religião de quem peça a ajuda. Um caso exemplar é o de Pastora Lúcia, que nos conta que sua velha caminhonete era constantemente usada por vários de seus vizinhos, ao mesmo tempo em que sua presença era bastante requisitada para apaziguar

6 casos de contenda entre moradores Ao que parece, estas pastoras e bispas são colocadas em uma posição peculiar frente aos demais, como se as mesmas verdadeiramente tivessem algum tipo especial de autoridade para solucionar questões e conceder ajuda nos momentos de necessidade. Considerações finais Vimos acima que a proposta do pentecostalismo autônomo oferece às mulheres evangélicas a possibilidade de re-elaborarem suas identidades no âmbito religioso. Ao abandonarem a posição de submissas frente a uma hierarquia marcadamente masculina através da criação de pequenas igrejas pentecostais, as novas líderes passam a ocupar um lugar de importância fundamental dentro de suas igrejas. O reflexo destas mudanças em outras esferas sociais mostra-se com relevo. Acompanhando as tendências que modificam o papel da mulher na sociedade como um todo, as pastoras e bispas dissidentes transformam-se, além de líderes religiosas, também em chefes de família e atores de destaque nas comunidades em que vivem. 1 Na América Latina, o termo evangélico é usado para designar o grupo formado pelas igrejas protestantes históricas, pentecostais e neopentecostais. De acordo com Mariano (2004), o pentecostalismo se distingue do protestantismo histórico por acreditar na contemporaneidade dos dons do Espírito Santo, com ênfase nos dons de línguas e cura, e por sustentar a crença em preceitos e práticas do cristianismo primitivo, tais como a expulsão de demônios e a realização de milagres. 2 A expressão pentecostalismo autônomo foi inserida na literatura sobre as religiões do Brasil para designar as Igrejas protestantes pentecostais fundadas no Brasil a partir da década de 1950, distinguindo-as daquelas congregações pentecostais tradicionais que foram trazidas para o país através de missões (BITTENCOURT FILHO, 1991; MARIZ, 1995). 3 As histórias aqui contadas foram relatadas pelas pastoras entrevistadas para esta pesquisa. 4 Todos os nomes aqui citados são fictícios. 5 De acordo com as elaborações cosmológicas nativas, pode-se definir revelação como uma mensagem enviada às líderes por Deus ou por um anjo para que seja repassada a determinado indivíduo presente no culto com o intuito de torná-lo ciente das verdadeiras razões de seus problemas ou comunicar-lhe alguma benção iminente. A mensagem a ser transmitida ao fiel é repassada ao público como um todo, e só após todos tomarem conhecimento da mensagem é que seu destinatário se identifica frente aos presentes. A identificação do destinatário da mensagem pode ser um ato voluntário do mesmo, ou pode ser feita pela própria pastora que o aponta dentre os fiéis presentes. Após o conhecimento do indivíduo ao qual se destina a revelação, espera-se que o mesmo dirija-se até o altar e aceite a oração feita pela pastora para que o mal revelado seja totalmente neutralizado, ou para que a benção revelada seja verdadeiramente concretizada. 6 Vários trechos bíblicos são usados por lideranças evangélicas contrárias ao ministério feminino. Na primeira carta do apóstolo Paulo aos Coríntios, capítulos 11 e 14, se encontram dois textos que alimentam controvérsias entre os que defendem e os que condenam o pastorado feminino. O primeiro dos textos citados diz o seguinte: Quero, porém, que entendam que o cabeça de todo homem é Cristo, e o cabeça da mulher é o homem, o cabeça de Cristo é Deus. Pois o homem não se originou da mulher, mas a mulher do homem; além disso, o homem não foi criado por causa da mulher, mas a mulher por causa do homem (vs. 3, 9). O segundo texto apresenta um ponto de vista bastante semelhante: (como em todas as congregações dos santos), permaneçam as mulheres em silêncio nas igrejas, pois não lhes é permitido falar; antes permaneçam em submissão, como diz a Lei; Se quiserem aprender alguma coisa, que perguntem a seus maridos em casa; pois é vergonhoso uma mulher falar na igreja (vs; 33-35).

7 Referências Bibliográficas BIRMAN, Patrícia. Mediação Feminina e Identidades Pentecostais, Cadernos Pagú, Campinas, UNICAMP nº 6-7, 1996. BITTENCOURT FILHO, José. Remedio Amargo. Tempo e Presença, 13: 259 (31-34), 1991. MACHADO, Maria das Dores Campos. Representações e relações de gênero em grupos pentecostais, Revista Estudos Feministas, Santa Catarina, v. 13, n. 2, p. 387-396, 2005. ; MARIZ, Cecília. Mulheres e práticas religiosas nas classes populares: uma comparação entre as igrejas pentecostais, as Comunidades Eclesiais de Base e os grupos carismáticos, RBCS, vol. 12, n 3, Junho, 1997. MARIZ, Cecilia. El debate en torno del Pentecostalismo Autónomo en Brasil. Sociedad y Religión, n 13: pp. 87-100, 1995. MARIANO, Ricardo. Expansão pentecostal no Brasil: O caso da Igreja Universal, Estudos Avançados, São Paulo, v. 52, p. 121-138, 2004. SANTOS, Maria Goreth (2002). A mulher na hierarquia evangélica: o pastorado feminino. Dissertação de Mestrado. PPCIS UERJ.