FLUTUAÇÕES NA DELIMITAÇÃO DA FRASE ENTONACIONAL EM DUAS DIFERENTES INTERPRETAÇÕES DO SAMBA-CANÇÃO NA BATUCADA DA VIDA

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Transcrição:

FLUTUAÇÕES NA DELIMITAÇÃO DA FRASE ENTONACIONAL EM DUAS DIFERENTES INTERPRETAÇÕES DO SAMBA-CANÇÃO NA BATUCADA DA VIDA Renata Pelloso Gelamo 1, Lourenço Chacon 2 1 Pós Graduação em Estudos Lingüísticos IBILCE Universidade Estadual Paulista (Unesp São José do Rio Preto) renatagelamo@yahoo.com.br 2 Departamento de Fonoaudiologia FFC Universidade Estadual Paulista (Unesp Marília) e Programa de Pós-Graduação em Estudos Lingüísticos IBILCE Universidade Estadual Paulista (Unesp São José do Rio Preto) chacon@marilia.unesp.br Abstract. We aim to identify floatations in the delimitation of intonational phrase (I) in the interpretation done by Carmen Miranda and Elis Regina of the "samba-canção" Na Batucada da Vida. As (I) is a constituent of the prosodic hierarchy that takes into account semantic elements to its definition, we consider the possibility of creating different meaning effects in each interpretation, from the different modes in which the interpreters organize their intonational phrases, such as perceived by judges. Keywords: intonational phrase; Brazilian popular music; prosodic phonology Resumo. Buscamos identificar flutuações na delimitação da frase entonacional (I) na interpretação que Carmen Miranda e Elis Regina fazem do sambacanção Na Batucada da Vida. Como I é um constituinte da hierarquia prosódica que leva em conta, para sua definição, elementos semânticos, levantamos a possibilidade de criação de diferentes efeitos de sentido em cada interpretação, a partir dos diferentes modos como as intérpretes organizam a frase entonacional, segundo a percepção de um grupo de juízes. Palavras-chave: frase entonacional; música popular brasileira; fonologia prosódica Introdução Na Lingüística, vários estudos sobre prosódia têm procurado demonstrar seu papel na estruturação da linguagem. Como afirma Cagliari (1993), os aspectos prosódicos da fala não servem para enfeitar a fala, fazem parte da própria essência da linguagem oral (p.42). De um ponto de vista fonológico, tal como aquele proposto por Nespor e Vogel (1986), a organização prosódica da linguagem obedeceria a determinados algoritmos, os Estudos Lingüísticos XXXV, p. 1660-1667, 2006. [ 1660 / 1667 ]

quais possibilitariam a criação de constituintes prosódicos na própria língua. Segundo tais autoras, essa organização prosódica é determinada hierarquicamente (e não linearmente, como o pensavam os estudiosos da Fonologia Gerativa Clássica) em constituintes tais como a sílaba, o pé, a palavra fonológica, o grupo clítico, a frase fonológica, a frase entonacional e o enunciado fonológico. Tais constituintes, segundo as autoras, podem ser o domínio de aplicação de regras fonológicas características de uma determinada língua. Além disso, essa organização prosódica obedeceria a regras que lançam mão de informações de outros componentes da gramática (como a morfologia, a sintaxe e a semântica) para a definição de constituintes prosódicos, embora de modo não-isomórfico já que, para que se possa definir o domínio, é necessário e fundamental algum tipo de pista fonética. Em razão dessa maneira de se ver a linguagem oral e pensando que a interpretação de canções deveria levar em conta fatos lingüísticos como a organização prosódica do texto, acreditamos ser de grande importância para o cantor atentar para as possibilidades dessa organização nas canções, no que diz respeito à criação de efeitos de sentido pretendidos por sua interpretação. Visando demonstrar essa importância, focalizaremos o papel do constituinte frase entonacional (I) em diferentes interpretações de uma mesma canção conforme especificaremos mais abaixo. Mas antes, faremos uma breve exposição sobre esse constituinte da hierarquia prosódica. A frase entonacional constitui uma unidade prosódica definida como um conjunto de frases fonológicas (φ) ou apenas uma frase fonológica. Bisol (1996) salienta que existem duas características para a identificação de uma frase entonacional: (a) em uma seqüência de φs que constituam uma I, uma dessas φs é forte por características semânticas, e todas as demais são fracas; (b) uma sentença em geral, declarativa, exclamativa ou interrogativa tem sempre um contorno entonacional determinado, mas no interior destas unidades sempre se tem que contar com certa flexibilidade (BISOL, 1996, p. 258). No domínio da frase entonacional, as informações sintático-semânticas são fortemente mobilizadas. São também mobilizados, em sua constituição, fatores de performance tais como velocidade de fala e estilo, que podem afetar o número de contornos entonacionais contidos num enunciado (NESPOR e VOGEL, 1986) 1. A regra básica de formulação desse constituinte é a de que I é domínio de um contorno entonacional e de que seu limite final coincide com posições nas quais pausas podem ser introduzidas em uma sentença. O que se percebe como pausa, segundo Nespor e Vogel (1986), não necessariamente corresponde a um silêncio. As pausas percebidas, como descritas pelas autoras, funcionam como limites de constituintes e podem ser caracterizadas por uma variedade de fenômenos, tais como mudanças de freqüência e de duração. O domínio de I freqüentemente corresponde a um constituinte sintático, mas sem isomorfia, já que a organização fonológica muitas vezes difere da organização sintática. Uma das razões dessa não-isomorfia é a de que a organização da frase entonacional (I) pode sofrer reestruturação determinada pela sua extensão e pela velocidade e estilo de fala em que ocorre, além, ainda, de sua proeminência relativa (de acordo com determinados critérios e de acordo com algumas restrições). As restrições mais importantes são: (a) evitar reestruturação em qualquer lugar que não corresponda ao Estudos Lingüísticos XXXV, p. 1660-1667, 2006. [ 1661 / 1667 ]

final de uma frase nominal; (b) evitar separação entre um argumento obrigatório e seu verbo. No interior desse quadro, temos como proposta mais geral, neste trabalho, analisar de que modo dois grandes nomes da Música Popular Brasileira (Carmen Miranda e Elis Regina) interpretam a canção Na Batucada da Vida, de autoria de Ary Barroso e Luis Peixoto (1934). Para tanto, buscaremos compreender de que maneira tais intérpretes organizam prosodicamente o texto de tal canção mais especificamente, como o organizam em frases entonacionais, tais como definidas pelo algoritmo estabelecido por Nespor e Vogel (1986) segundo a percepção de um conjunto de juízes. De acordo com esse algoritmo, trata-se, conforme antecipamos, de um constituinte em cuja delimitação a pausa cumpre papel essencial. No entanto, como nem sempre a percepção de uma pausa é consensual, temos como proposta mais específica, neste trabalho, analisar, nas duas interpretações, justamente o que não é consensual. Nessa análise do que é flutuante, buscaremos, então: (1) observar se, mesmo na discordância, é possível detectar vínculos entre pontos de pausa e limites de frases entonacionais; e (2) especialmente se detectados esses vínculos, levantar hipóteses sobre quais fenômenos acústicos estariam na base da correspondência entre os pontos de baixa concordância de percepção de pausas (pelos juízes) e limites de frase entonacional. Material e metodologia Na Música Popular Brasileira, existem vários gêneros musicais que foram se definindo a partir de mudanças sociais, políticas e culturais ocorridas no decorrer do tempo. Dentre esses gêneros, será destacado, neste estudo, o Samba-Canção, gênero musical da canção a ser tematizada. O Samba-Canção foi uma criação de compositores semi-eruditos ligados ao teatro de revista do Rio de Janeiro (TINHORÃO, 1991, p. 151). A canção a ser estudada, Na Batucada da Vida, foi composta por Ary Barroso e Luis Peixoto em 1934. Tal canção foi escolhida para o estudo por ter sido gravada por duas intérpretes em épocas bem distintas. Foi gravada, pela primeira vez, por Carmen Miranda no mesmo ano de sua composição. Mais tarde, Elis Regina regravou esta canção, no ano de 1974. Como objetivamos observar o papel do constituinte frase entonacional nesta canção, fizemos uma comparação entre as duas diferentes interpretações (de Carmen Miranda e Elis Regina). Como um dos critérios para a delimitação da frase entonacional é a presença de pausas, buscamos localizá-las nessas diferentes interpretações. As pausas foram delimitadas com base na concordância entre um grupo de nove juízes, formado por três lingüistas, três músicos e três fonoaudiólogos, todos com informação musical e/ou lingüística (no campo da fonologia). Esses juízes demarcaram, no texto da canção, os momentos em que julgavam haver pausa. Neste estudo específico, fizemos a análise das flutuações entre os juízes no julgamento de pausas, ou seja, analisamos os locais que obtiveram baixa concordância entre tais juízes (concordância inferior a 70%). Com base numa concordância abaixo de 70%, determinamos, então, os pontos julgados como de pausa em cada interpretação, Estudos Lingüísticos XXXV, p. 1660-1667, 2006. [ 1662 / 1667 ]

como critério para a identificação de possíveis limites de frases entonacionais nas diferentes interpretações. Mas tivemos, ainda, a preocupação de compreender quais características acústicas foram associadas a esses pontos de pausa de baixa concordância entre os juízes. Para tanto, comparamos esses pontos com seus pontos correspondentes em partituras musicais elaboradas por um músico com formação em Composição e Regência no Instituto de Artes da Unesp nas quais as duas interpretações da canção foram transcritas melódica e harmonicamente. Resultados Com base nas flutuações (concordância inferior a 70%) entre os juízes a respeito da colocação das pausas, pudemos observar que a quantidade e a localização das pausas sofreram variação em cada interpretação. Na interpretação de Carmen Miranda, o conjunto de juízes detectou 32 pausas, sendo que 4 delas foram percebidas por menos de 70% dos juízes. As quatro pausas coincidiram com possíveis limites de frase entonacional. As características acústicas associadas com tais limites, tais como transcritas na partitura musical, foram: (a) alongamento e (b) silêncio breve. Na interpretação de Elis Regina, foram detectadas 30 pausas, sendo que três delas foram percebidas por menos de 70% dos juízes. As três pausas também coincidiram com possíveis limites de frase entonacional. As características acústicas associadas com tais limites, transcritas na partitura, foram igualmente: (a) alongamento e (b) silêncio breve. Os locais de pausas com baixa concordância (os quais, como vimos, apesar de discordantes entre si, sempre coincidiram com possíveis limites de frase entonacional) e suas características acústicas correspondentes nos trechos da partitura, foram os seguintes: Obs.: os colchetes indicam limites de frase entonacional e as barras indicam locais em que alguns juízes detectaram (enquanto que outros não) uma pausa. Carmen Miranda: a) [Mamei um litro e meio de cachaça] / [bem puxado] Observe-se a maior duração da nota correspondente à última sílaba da palavra cachaça em relação à das notas vizinhas. Estudos Lingüísticos XXXV, p. 1660-1667, 2006. [ 1663 / 1667 ]

b) [E fui adormecer] / [como um despacho] Observe-se o ponto de aumento da duração nota na última sílaba de adormecer. c) [Irei] / [cada vez mais me esmolambando] Observe-se a pausa breve após a palavra irei. d) [Seguirei] / [sempre sambando] Observe-se o ponto de aumento da duração da nota na última sílaba de seguirei. Elis Regina: a) [E fui adormecer] / [como um despacho] Observe-se o ponto de aumento de duração da nota na última sílaba de adormecer. b) [Me soltou na rua] / [à toa] Observe-se a pausa breve no limite de me soltou na rua. Estudos Lingüísticos XXXV, p. 1660-1667, 2006. [ 1664 / 1667 ]

b) [E hoje] / [que eu sou mesmo da virada] Discussão Observe-se a pausa breve no limite de e hoje. As flutuações entre os juízes com relação à delimitação de pausas podem ser explicadas pelas características acústicas desses locais. Conforme antecipamos, nesses sete pontos de flutuação, estiveram em causa silêncios muito breves ou alongamentos fato que confirma a hipótese de Nespor e Vogel (1986) de que as pausas podem ser percebidas a partir de diferentes fenômenos acústicos. Inversamente, nos dados que descartamos neste trabalho, os locais delimitados como pausa pelos juízes que obtiveram alta concordância (índice igual ou superior a 70%) são em sua maioria, nas duas interpretações, caracterizados acusticamente como silêncios prolongados, fato que pode ter influenciado a percepção de pausas pela maioria dos juízes. Mas como, mesmo nos casos de flutuações (baixa concordância), os pontos detectados como de pausas (a partir de características acústicas a eles associados) funcionam, em nossos dados, como limites de frase entonacional, confirma-se dessa forma a proposição de Nespor e Vogel (1986) de que I funciona como um constituinte de extensão e limites variáveis. A variabilidade dos limites de I, no que se refere à sua extensão, deve-se à regra de reestruturação prevista pela formulação deste domínio por Nespor e Vogel (1986), o que possibilita diferentes arranjos prosódicos. É o que as diferentes organizações de um mesmo trecho da canção tais como percebidas por alguns juízes, respectivamente, em Carmen Miranda e em Elis Regina parecem sugerir: [Irei] I [cada vez mais me esmolambando] I [Irei cada vez mais me esmolambando] I No entanto, diferentemente do que postulam Nespor e Vogel (1986), a velocidade não funciona como critério que determina a reestruturação. Com efeito, pelo menos neste caso, o andamento mais rápido da interpretação (em Carmen Miranda) resultou em dois constituintes, ao passo que o andamento mais lento (em Elis Regina) resultou em um único constituinte. Mas, independentemente dessa não-adequação à velocidade, a variabilidade dos limites também nos fornece pistas de que os diferentes modos de organização do constituinte frase entonacional, tal como realizado por cada uma das intérpretes, segundo a percepção de nossos juízes, podem produzir diferentes efeitos de sentido para as interpretações. Observem-se as diferentes organizações de outro trecho da canção, respectivamente, em Carmen Miranda e em Elis Regina: Estudos Lingüísticos XXXV, p. 1660-1667, 2006. [ 1665 / 1667 ]

[Me soltou na rua à toa] I [Me soltou na rua] I [à toa] I A pausa percebida por alguns juízes em Elis Regina resultará na criação de dois constituintes; portanto, em duas proeminências. Como I é um constituinte no qual a informação semântica interage com a fonológica, o destaque à à toa coloca em foco o modo como se desenvolveu a ação me jogou na rua, diferentemente do que ocorre na interpretação de Carmen Miranda. Considerações finais Pudemos verificar que, mesmo em casos de discordâncias entre juízes, todas as pausas percebidas coincidiram com possíveis limites de frase entonacional. A nosso ver, essa coincidência, mesmo na discordância, confirma a eficácia do algoritmo proposto por Nespor e Vogel (1986). Também a flutuação dos juízes acaba por confirmar outro aspecto desse constituinte destacado pelas autoras, a saber, o de que a frase entonacional é um constituinte de limites e extensão variáveis. Por fim, mais um aspecto destacado pelas autoras pôde ser confirmado em nossos dados: as flutuações entre os juízes na delimitação de pausas nos remete à possibilidade de atribuirmos diferentes fenômenos físicos aos limites de frase entonacional. Os dados sugerem, portanto, que as intérpretes se orientam, em grande medida, por fatos de natureza lingüística ao fazerem a organização prosódica das canções, no que se refere mais especificamente à frase entonacional. Mas, nessa orientação, as intérpretes parecem explorar diferentes possibilidades desse constituinte. Com efeito, por um lado, diferentes organizações prosódicas criadas a partir de uma mesma disposição seqüencial lingüística parecem mobilizar diferentes efeitos de sentido para essa seqüência; por outro lado, essas diferentes organizações podem ser vistas como marcas de subjetividade das intérpretes questão também sugerida por Nespor e Vogel, na medida em que relacionam diferentes possibilidades de reestruturação a questões de estilo individual. Nota 1. Tradução sob nossa responsabilidade. Referências BARROSO, A.; PEIXOTO, L. Na Batucada da Vida. Intérprete: Carmen Miranda. In: CARMEN MIRANDA. A pequena notável. Curitiba: Revivendo, p199x. CD. Faixa 14. BARROSO, A.; PEIXOTO, L. Na Batucada da Vida. Intérprete: Elis Regina. In: ELIS REGINA. Elis. São Paulo: PolyGram, p1988. CD. Faixa 2. BISOL, L. Constituintes Prosódicos. In.:. Introdução a estudos de fonologia do português brasileiro. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. Estudos Lingüísticos XXXV, p. 1660-1667, 2006. [ 1666 / 1667 ]

CAGLIARI, L. C. Da importância da prosódia na descrição de fatos gramaticais. In. ILARI, R. (org.) Gramática do Português Falada. Campinas: editora da Unicamp/São Paulo: Fapesp, Volume II: Níveis de Análise Lingüística, p. 39-64,1993. NESPOR, M.,VOGEL, I. Prosodic Phonology. Dordrecht: Foris Publications, 1986. TINHORÃO, J. R. Pequena História da Música Popular: da Modinha à Lambada. 6 ª ed. São Paulo: Art Editora, 1991. Estudos Lingüísticos XXXV, p. 1660-1667, 2006. [ 1667 / 1667 ]