Classificação dos créditos sobre a massa insolvente no projecto de Código da Insolvência e Recuperação de Empresas *



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Transcrição:

Classificação dos créditos sobre a massa insolvente no projecto de Código da Insolvência e Recuperação de Empresas * Considerações prévias Em primeiro lugar, apresento os meus agradecimentos ao GPLP pelo convite para participar neste colóquio. Em segundo lugar, permito-me fazer uma prevenção: se me ouvirem sublinhar mais os aspectos negativos do que os aspectos positivos do projecto em discussão, isso não se ficará a dever a qualquer comprazimento com o bota abaixo, mas sim à interpretação do convite que me foi feito como a solicitação de um contributo para o melhoramento do texto. Menos legítima seria ainda qualquer interpretação das minhas palavras como denotando falta de consideração pelo principal responsável pela redacção do projecto. Alguns contactos com o Dr. Carlos Osório de Castro permitiramme ganhar por ele estima e o conhecimento de alguns dos seus textos doutrinários e profissionais leva-me a ter por ele enorme consideração intelectual. O Dr. Osório de Castro sabe, por actos meus que não por meras palavras que assim é. Assim, tudo o que de mim ouvirem deve ser interpretado à luz de tal prevenção. Os que têm responsabilidades no processo legislativo poderão aproveitar algo do que eu disser se algo for aproveitável. Devo dizer que me foi pedida opinião sobre o projecto que esteve na base da reforma de 1998 do CPEREF e que nenhuma das minhas ideias foi acolhida. É um indício de que não se deve confiar nelas... 1. Notas gerais sobre o projecto CIRE * Reconstituição da intervenção realizada no colóquio "O Código da Insolvência e Recuperação de Empresas", em 16 de Julho de 2003. 1

Às vezes, penso que é possível dividir as pessoas em dois tipos: as que são conservadoras desde a juventude e as que só se tornam conservadoras mais tarde. Completo este pensamento aplicando-o a mim próprio. Não tendo eu sido conservador desde a juventude, estaria condenado a vir a sê-lo. Neste processo inelutável, restariam apenas duas incógnitas a do momento da sua ocorrência e a da medida em que isso se passaria com consciência minha. Tais reflexões voltaram-me ao espírito quando li o projecto de CIRE. A primeira reacção que a leitura me provocou foi a de rejeitar a proposta de um novo código sobre a matéria em causa. Ao dar-me conta de que, desta vez, não estava disponível para a inovação, assaltou-me a ideia de ter topado com a prova da minha evolução para o conservadorismo (felicitando-me pela consciência de mim próprio...). Devo, porém, confessar que uma qualquer tendência para a insubmissão (ideológica ou psicológica, não sei bem) me leva ainda a duvidar da transformação que terei sofrido. Tenta-me a ideia de que será sustentável que, neste caso, rejeitar a inovação ou, pelo menos, parte dela, não é ser conservador, mas apenas defender o bom património legislativo. Na verdade, creio que o CPEREF nasceu como um bom diploma e que, ao final dos dez anos que leva de vigência, se mantém ainda como tal. Obviamente, pode e deve ser melhorado, mas duvido que o melhor caminho para tal melhoramento seja a sua substituição integral. No preâmbulo do projecto de CIRE escreve-se que os processos de falência começam tarde, demoram muito tempo e o produto final aproveitável para os credores é escasso face às dívidas acumuladas. Ninguém discordará de tais afirmações. Discordo, porém, de que se impute tais factos ao CPEREF, como o preâmbulo do projecto de CIRE faz. Em minha opinião, as ineficiências dos processos de falência e de recuperação não podem ser atribuídas à lei em vigor. Parece-me que as principais causas dessas ineficiências não estão na lei, mas sim noutros factores, de que destaco: 2

a) a falta de consenso social sobre a falência como remédio para o insucesso empresarial; b) a impreparação e a falta de meios de muitos gestores judiciais e de muitos liquidatários judiciais; c) a impreparação de muitos juízes para os problemas específicos dos processos em causa. A este propósito, permito-me dizer que a apreciação que o preâmbulo do projecto do CIRE faz do actual processo falimentar português é igual à que muitos outros documentos oficiais, de várias épocas, quer portugueses, quer estrangeiros, fizeram de outras leis falimentares. A título de exemplo, lembro o (de resto, célebre) relatório 1 do Dec.-Lei 25.981, de 26 de Outubro de 1935, que aprovou o Código das Falências que vigorou até à entrada em vigor do Código de Processo Civil de 1939, no qual se podem encontrar as seguintes ideias: - "a de que o processo de falência é um processo longo, fácil de demorar com inúmeros pretextos, e ainda bastante oneroso"; - a de que em muitos processos nenhum credor recebe o que quer que seja e que na generalidade dos outros só os credores privilegiados são pagos; - a de que "o falido, em muitos casos, guarda uma parte importante do seu património"; - a de que é frequente a negligência dos administradores de falências na gestão dos bens do falido. Não é, pois, justo imputar ao CPEREF males que não são daqui, nem de agora... Ao que acresce que não é prudente anunciar que se vai resolver o que muitos tentaram sem conseguir... 2. O princípio da par conditio creditorum e a classificação de créditos no processo falimentar 1 Cuja autoria material é normalmente atribuída ao lendário Manuel Rodrigues. 3

Na ausência de factos que determinem a aplicação de regras especiais, os credores estão em pé de igualdade perante o devedor. A isso se chama o princípio da par conditio creditorum. O lugar do nosso Direito no qual tal princípio é mais claramente enunciado é o art. 604, nº 1, do Código Civil: Não existindo causas legítimas de preferência, os credores têm o direito de ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, quando ele não chegue para integral satisfação dos débitos. Na realidade da vida, poucos serão os casos de execução de um património em benefício de vários credores em que não se verifique alguma causa legítima de preferência. Por outras palavras, o princípio da par conditio creditorum não é de índole estatística, mas sim normativa. Na verdade, não só são frequentes as garantias reais voluntárias e muitos os privilégios creditórios, como sucede que a generalidade das empresas que chegam a ser executadas tiveram antes períodos de vida em que as suas dívidas cobertas por garantias especiais se multiplicaram. O facto de ser frequente que um ou vários credores gozem do direito a serem pagos preferencialmente pelos bens do devedor, ou por algum desses bens, leva a que seja necessário proceder à ordenação dos créditos. Processualmente isso significa o enxerto de actos declarativos nos processos executivos. O processo de falência não é apenas processo de execução; comporta também vários actos de declaração. Entre eles está a tradicionalmente chamada verificação de créditos 2 que abrange não apenas a verificação propriamente dita dos créditos existentes sobre a massa falida, mas também, pelo menos potencialmente, aquilo que no âmbito do Direito Processual português é chamado graduação, ou seja, a definição de prioridades entre os créditos quanto à sua satisfação pelo produto dos bens do devedor. 2 Sobre a natureza da figura, v. principalmente MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, A Verificação do Passivo no Processo de Falência, in Revista da FDUL, vol. XXXVI, nº 2, 1995, págs. 353 e segs.; sobre o seu regime, v. principalmente SALVADOR DA COSTA, O Concurso de Credores, 2ª ed., Coimbra, Almedina, 2001, em especial págs. 346 e segs.. 4

Falar em classificação significa que a graduação se faça, pelo menos em parte, por classes. Até agora a lei portuguesa não usa a expressão "classificação de créditos", mas apenas a expressão "graduação de créditos". O projecto de CIRE, inspirando-se noutras legislações 3, vem introduzir essa ideia de ordenação por classes. Vejamos como. 3. Aspectos gerais da classificação de créditos no projecto de CIRE O projecto (no art. 45) prevê a hierarquização dos créditos sobre a massa insolvente nas seguintes quatro classes: a) créditos garantidos; b) créditos privilegiados; c) créditos comuns; d) créditos subordinados. Créditos garantidos são os que beneficiam de garantias reais. Créditos privilegiados são os que beneficiam de privilégios gerais. Créditos subordinados são os que só podem ser satisfeitos depois dos restantes créditos da insolvência, incluindo os comuns. Créditos comuns são todos os outros. 4. Aspectos gerais da regulação dos créditos subordinados 3 Quer do círculo anglo-americano, quer do círculo romano-germânico. Entre as várias legislações europeias que organizam os créditos da falência em classes, refira-se como bom exemplo o Direito suíço - cuja loi fédérale sur la poursuite pour dettes et la faillite organiza os créditos sobre a falência não garantidos em três classes, só sendo os créditos de cada classe pagáveis na medida em que os da classe precedente sejam inteiramente satisfeitos (v. arts. 219 e 220 da referida lei). 5

A principal inovação do projecto de CIRE, nesta matéria, está na regulação dos créditos subordinados e, por isso, irei centrar-me em tal figura - primeiro fazendo algumas notas de índole geral e depois um comentário na especialidade. A primeira nota geral visa enunciar o objectivo da figura. Julgo que não errarei se disser que ele é distinguir negativamente certos créditos, em razão dos seus titulares ou em razão das suas características objectivas. Na verdade, a justificação da subalternidade dos créditos em causa está umas vezes na proximidade do seu titular com o insolvente e outras vezes em características dos créditos resultantes do momento ou das circunstâncias da sua constituição. A segunda nota geral é a de que no Direito vigente já há casos da chamada subordinação. Com efeito, embora os outros casos de subordinação constituam novidade, dois deles já existem actualmente: o dos suprimentos e o da subordinação resultante de contrato. A terceira nota geral destina-se a chamar a atenção para que a inovação em análise não é de natureza meramente processual, tendo também (antes de mais...) efeitos substantivos. Ao qualificar como subordinados vários dos créditos em jogo, o legislador estará a alterar o Direito Privado português e não apenas as regras da sua aplicação. Em quarto lugar, sublinho que o recurso à categoria de créditos subordinados é uma alteração da técnica legislativa tradicional no nosso Direito que se inspira na figura anglo-americana da subordinate(d) debt 4. Por último, nestas notas sobre aspectos gerais da regulação do créditos subordinados, ponho em evidência que o projecto prevê que a declaração de insolvência extinga as garantias reais acessórias dos créditos subordinados (art. 88, nº 1, alínea c)). 4 O Black s Law Dictionary (americano) define subordinate debt como debt that is junior in status of claims to other types or classes of debts. O Oxford Dictionary for the Business World (inglês) define subordinated debt como debt that can only be claimed by an unsecured creditor, in the event of a liquidation, after the claims of secured creditors have been met. 6

5. Notas sobre os vários casos de créditos subordinados Passo a agora a comentar brevemente cada um dos casos de créditos subordinados previstos no projecto de CIRE ou seja, cada uma das alíneas do art. 46: a) Os juros e outros acréscimos de créditos não subordinados constituídos após a declaração da insolvência, com excepção dos abrangidos por garantia real, até ao valor do bem respectivo. No Direito actual (art. 151, nº 2, do CPEREF), a contagem de juros e de outros encargos sobre a massa cessa na data da sentença. O projecto de CIRE, ao invés, prevê que os créditos sobre a massa vençam juros após a declaração da insolvência. No entanto, esses créditos de juros (e outros acréscimos) serão subordinados à excepção dos abrangidos por garantia real, até ao valor do bem respectivo. b) Os créditos cuja subordinação tenha sido convencionada pelas partes. O Direito português permite a subordinação por convenção das partes. Isso resulta não apenas do princípio da liberdade contratual como do art. 602 do Código Civil. Se é lícito limitar a responsabilidade do devedor a alguns dos seus bens, lícito é, por maioria de razão, estipular que um devedor só responde perante um certo credor depois de responder perante os outros. Essa possibilidade tem, de resto, sido utilizada na emissão das chamadas obrigações subordinadas, que, embora previstas em regulamentos do Banco de Portugal, não têm base legal específica. c) Os reembolsos aos credores da insolvência a título de custas de parte e de procuradoria pela sua intervenção no processo. 7

O Direito actual não prevê, pelo menos especificamente, este tipo de pagamentos aos credores. A sua previsão é, pois, acompanhada pela sua subalternização. d) Os créditos por multas, coimas e outras sanções pecuniárias por crimes ou contra-ordenações. Trata-se de outra inovação cuja bondade me levanta dúvidas. Não vejo razão para desvalorizar este tipo de créditos públicos, quer em relação à generalidade dos créditos privados quer em relação aos demais créditos públicos. Ao contrário, seria tentado a julgar que créditos deste tipo deveriam ser tratados com privilégio. e) Os créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor e por quem os tenha adquirido dessas pessoas nos dois anos anteriores à declaração de insolvência. Das várias sub-classes de créditos subordinados esta será uma das de maior alcance prático. Vale, pois, a pena examinar o preceito em pormenor. Deixarei para tratamento em ponto autónomo a concretização que o projecto faz do conceito pessoas especialmente relacionadas com o devedor, limitando-me a abordar, por agora, os demais aspectos da alínea em causa. A expressão os créditos detidos levanta uma dúvida de interpretação e dá azo a uma critica terminológica. Começando por esta, que é o menor dos problemas, observarei que aplicar a ideia de detenção a créditos não é feliz, por detenção ser sinónimo de mera posse. Ora, por um lado, o entendimento maioritário é o de que os créditos não são susceptíveis de posse e, por outro, o que se pretenderá designar é a própria titularidade do créditos e não qualquer outra coisa. Passando à dúvida de interpretação, direi que a expressão deixa o leitor sem saber se são abrangidos apenas créditos que nasçam na titularidade de tais pessoas ou também créditos que essas pessoas adquiram de terceiros. 8

Quanto ao resto da proposição, manifestarei algum desconforto por serem abrangidos os créditos de todos os terceiros. Por outras palavras: o projecto refere quem os tenha adquirido dessas pessoas nos dois anos anteriores à declaração de insolvência, não distinguindo entre quem o faça com consciência de estar a adquirir um crédito suspeito e quem o faça sem essa consciência. Se o alienante for uma sociedade e o momento relevante para a determinação da relação especial não coincidir com o momento da aquisição do crédito, pode até acontecer o efeito perverso de reentrarem na previsão casos em que o terceiro não só não sabia como não podia adivinhar que o crédito viria a ser suspeito! f) Os créditos que tenham por objecto prestações do devedor a título gratuito. Trata-se de mais uma inovação, defensável, mas não incontroversa. O desfavor das obrigações emergentes de contratos gratuitos e de negócios unilaterais é questão muito complexa e que, provavelmente, não é resolúvel com um preceito tão genérico. Não se confunda prestação a título gratuito e liberalidade. Friso, em especial, que nada no sistema jurídico português indicia que as obrigações emergentes de negócios unilaterais, nos casos em que os mesmos são admitidos, devam ser vistas como menos obrigatórias que as emergentes de negócios onerosos. g) Os créditos da insolvência que, como consequência da resolução em benefício da massa insolvente, resultem para o terceiro considerado de má-fé. Trata-se de inovação ligada à regulação que o projecto faz da resolução em benefício da massa insolvente - a qual se afasta muito do regime actual e que é impossível expor aqui. Diga-se apenas que a definição de terceiro de má fé consta do art. 105, nº 5, do projecto. h) Os créditos por suprimentos. 9

Aqui já não há inovação mas mera articulação com o que resulta do regime que o Código das Sociedades Comerciais fixa para o contrato de suprimento (nomeadamente, o respectivo artigo 245, nº 3, alínea a)) 5. 6. As "pessoas especialmente relacionadas com o devedor" O projecto de CIRE (art. 47) apresenta elencos separados de pessoas especialmente relacionadas com o devedor" para três casos diferentes: o de o insolvente ser pessoa singular, o de o insolvente ser pessoa colectiva e o de a insolvência respeitar a património autónomo. Limitarei as minhas observações à alínea que, relativamente às pessoas colectivas, se refere às pessoas que estejam em relação de domínio ou de grupo com a sociedade insolvente, nos termos do artigo 21 do Código de Valores Mobiliários. O projecto não clarifica o momento em que se há-de verificar a relação de domínio ou de grupo: no momento da declaração de insolvência, no momento do início do processo de insolvência ou no momento da contracção da dívida? Essa falta de clarificação cria uma indeterminação significativa. Diga-se que nenhuma das soluções é perfeita. A escolha do momento da declaração de insolvência ou do momento do início do processo de insolvência poderia facilitar o desfazer da relação de domínio ou de grupo a tempo de evitar as consequências da "relação especial". A escolha do momento da contracção da dívida pode conduzir a resultados fortemente injustos, quando a insolvência resulte da observância de orientações de gestão a que a sociedade dominante ao tempo da contracção da dívida seja alheia. Uma palavra final 5 Sobre o regime dos suprimentos, permito-me remeter para o meu texto Suprimentos, Prestações Acessórias e Prestações Suplementares - Notas e Questões, publicado na obra colectiva Problemas do Direito das Sociedades, Coimbra, Almedina, IDET, 2002. 10

A terminar, renovo os meus agradecimentos pela oportunidade de participar na discussão do projecto de CIRE e permito-me formular o voto de que seja possível ter em conta na fixação do texto da futura lei as reflexões que têm estado a ser feitas neste colóquio. Rui Pinto Duarte RPD/ Classificação de créditos/versão 1 11