PARECER PARA A CRIAÇÃO DA MATRÍCULA MÃE DE ÁREA PÚBLICA NO JARDIM MARCELO Ellade Imparato A Lei Municipal nº 13.514/03 desafetou o espaço livre, localizado à Rua Lerici, na zona sul, conhecido como Jardim Marcelo/Campo Ferreira, cujo perímetro fundiário fechado a partir daquele croqui do departamento de patrimônio desta Municipalidade de São Paulo impossibilitou a abertura da matrícula mãe da área. Esta desafetação teve a finalidade de inserir esta área pública ocupada na 1ª fase do Programa de Regularização Urbanística e Fundiária do Município de São Paulo, e a área foi regularizada com base no levantamento planialtimétrico cadastral (LEPAC) que não conferia com aquele croqui. Além disso, verificou-se que aquele loteamento jamais fora registrado. Diante destes fatos, este parecer foi solicitado, em março deste ano, pela coordenadora da 2ª fase do Programa, Ana Paula Bruno, para apontar uma saída para a questão formulada pelo Oficial do Registro, qual seja: que provas há da natureza pública daquela área? Esta preocupação se dá na medida em que se faz necessária a criação de uma matrícula mãe da área pública desafetada para posterior registro do parcelamento com a consequente abertura de matrículas para cada lote, que torna possível o registro dos títulos outorgados pelo Programa. Considerando que são públicas as áreas que não são privadas, chega-se às primeiras através das confrontações das áreas privada, 1
todavia como o Jardim Marcelo não foi inscrito os lotes de terreno vendidos nunca receberam matrículas. Assim, especial atenção foi dada ao estudo sobre a constituição das áreas públicas. A seguir examinamos o histórico do Jardim Marcelo e expomos o estudo sobre os processos administrativos que levantou. Finalmente, com base em estudos gráficos, fotos aéreas e com respaldo em jurisprudência chegamos às conclusões. Este estudo foi aceito pelo Oficial do Cartório Imobiliário que fez criar a inscrição daquele loteamento para averbar todas as áreas públicas daquele território e criar a matrícula mãe em questão. 1 A CONSTITUIÇÃO DE ÁREAS PÚBLICAS O registro da transação imobiliária é ato constitutivo do domínio, ou seja, da propriedade plena sempre que esta se der por ato entre vivos, nos termos do art. 1.245 do Código Civil. Ocorre que sempre o registro da propriedade confere a possibilidade deste direito ser oposto contra todos e possibilita as transações imobiliárias legais sobre ele. Há casos em que a aquisição da propriedade se dá por determinação legal como, por exemplo, os bens da União elencados no art. 20 da Constituição Federal. A aquisição de imóveis por determinação legal pelo Município está estabelecida desde a publicação do Decreto-Lei nº 58/1937, que pela primeira vez definiu as normas de parcelamento do solo no País, 2
determinou que as ruas e espaços livres deixados por loteamentos urbanos são inalienáveis desde sua inscrição 1. Aquele Decreto-Lei nº 58 determinava expressamente que o depósito de memoriais, plantas e modelo de contrato prévio à comercialização de lotes em Cartório de Registro de Imóveis era obrigatório somente quando as vendas fossem feitas para pagamento em prestações (art. 1º, caput) e dispunha 2 que a aprovação pela Municipalidade do projeto de parcelamento era obrigatória somente para áreas urbanas (art. 1º, 1º). Note-se que não bastava a mera aprovação da planta do projeto de loteamento para que a transferência de domínio operasse. Anteriormente, era exigida a doação por Escritura Pública destas áreas ao Município que seria registrada à margem da transcrição onde estivesse inscrito o loteamento 3. Em São Paulo, o Código Saboya (Ato 663) de 1934 determinava expressamente que as áreas públicas, espaços livres e sistema viário fossem transferidos ao domínio municipal através de escrituras de doação. O Decreto-Lei nº 271/1967 dispôs sobre o parcelamento do solo urbano e criou a concessão real de uso. Determinou em seu art. 4º que desde a data da inscrição do loteamento passam a integrar o domínio 1 "Art. 3º A inscrição torna inalienável, por qualquer título, as vias de comunicação e os espaços livres constantes do memorial e da planta", ou seja, passam a integrar a classe de bens públicos de uso comum do povo. 2 O Decreto-Lei nº 58/1937 regulamenta o parcelamento do solo rural até hoje. 3 "Art. 8º O registro instituído por esta Lei, tanto por inscrição quanto por averbação, não dispensa nem substitui o dos atos constitutivos ou translativos de direitos reais na forma e para os efeitos das leis e regulamentos dos registros públicos", daí nasceu a necessidade das escrituras públicas de doação. 3
público do Município as ruas e os demais espaços públicos que constarem no projeto e nos Memoriais inscritos. A Lei nº 6.766/79 disciplina o parcelamento do solo urbano e determina que o registro do loteamento é fundamental para que a transferência do domínio se opere 4, porém esta lei criou confusão nesta lógica ao prever em seu art. 17 que as áreas públicas de uso comum constantes do projeto aprovado não poderão ter sua destinação alterada, salvo na caducidade do projeto aprovado. De qualquer forma, para a constituição de áreas públicas municipais é necessária a afetação, ou seja, a implantação do loteamento para que as áreas públicas stricto sensu, as de uso comum do povo, sejam de fato entregues para o desfrute de todos. Nos termos da lei vigente, não havendo o registro ou a implantação nos prazos determinados em lei, a aprovação é dada por caduca e o loteamento se torna irregular. Aqui ocorre um fenômeno jurídico singular, pois o fato de o loteamento ser irregular não significa que a área pública deixe de existir, ora não se pode dizer que uma rua por onde todos transitam não é pública. A existência da área pública independe da legalidade do parcelamento, depende de sua afetação, ou seja, da destinação de fato que o proprietário deu àquele pedaço de território que loteou. 4 Sobre a obrigatoriedade do registro, ver art. 22 da Lei nº 6.766/79. 4
Diante desta lógica do ordenamento, a questão central deste parecer é a de como operar o fechamento do perímetro fundiário, é que para a transferência do domínio útil 5 (como é feito pelo Programa de Regularização Urbanística e Fundiária) há necessidade de ser constituída uma matrícula específica da área pública. Ora, os bens públicos no ordenamento jurídico pátrio são definidos por exclusão, ou seja, é bem público aquele que não é particular. Para os loteamentos, criou-se a figura do chamado "concurso voluntário" e há jurisprudência admitindo que a intenção da transferência, dada pelas plantas aprovadas, dá às áreas públicas nos loteamentos a natureza jurídica de bens de uso comum do povo. No caso do Jardim Marcelo o problema é que este nunca foi inscrito ou registrado. Assim, em princípio esta área seria ou não pública pelo concurso voluntário e pela afetação, na medida em que não há neste caso registro das áreas particulares. A criação da matrícula de área pública em loteamento não inscrito é possível diretamente em Cartório, ou seja, independentemente da Corregedoria é sempre possível quando houver menção da existência de área pública nas matrículas confrontantes 6. 5 Para que a transferência de domínio ou a constituição de qualquer direito real se opere de forma legal há necessidade que se crie matrícula. 6 Segundo as palestras proferidas pelo Dr. Marcelo Berthe, juiz titular da Vara de Corregedoria dos Registros Públicos desta Comarca, e do Dr. George Takeda, oficial registrador do 3º Serviço de Registro de Imóveis em seminário promovido, em dezembro de 2007, pela Superintendência de Habitação Popular. 5
Desta forma, a fórmula desenhada pela Comissão de Peritos para que HABI definisse o perímetro da área pública a partir de ao menos menção da existência de área pública nas descrições havidas nas matrículas confrontantes esbarra no fato de que durante a vigência dos Decretos-Leis ns. 58 e 271 a inscrição de loteamentos não era obrigatória de forma universal. Assim, criou-se a figura do chamado "concurso voluntário" e há jurisprudência admitindo que a intenção da transferência, dada pelas plantas aprovadas, dá às áreas públicas nos loteamentos a natureza jurídica de bens de uso comum do povo, como veremos abaixo. 2 BREVE HISTÓRICO DO JARDIM MARCELO As áreas públicas do Jardim Marcelo integraram ambas as fases do Programa Municipal de Regularização Urbanística e Fundiária. Verifiquei o histórico deste loteamento através do estudo do PA 1978-0.001.595-5 no qual consta que o Jardim Marcelo foi implantado no Capão Redondo, zona sul da cidade de São Paulo, com base em projeto aprovado (PA 6241/1964, alvará 28578, de 01.12.1964). As dificuldades para o registro aparecem, em 1966, com os proprietários daquele loteamento pedindo prazo para o registro para reunir a documentação necessária (fls. 35, PA 6241), mesmo assim foi concedido alvará de licença para substituição de loteamento (fls. 20, PA 6882/1968). Fato é que o PA 6882/1968 prosseguiu para ser enviado à Procuradoria (PATR) para serem averbados os logradouros e espaços 6
livres (fls. 35) que deveria obedecer "a rotina de instrução de loteamentos não inscritos" (fls. 60). Para seguir esta rotina, foi feita vistoria no local (fls. 69/79) que constatou a existência de ruas, vielas e sistemas de recreio e a fls. 93 foi anexado o levantamento aerofotogramétrico, do vôo de fev./1973, GEGRAN respaldando a vistoria. Assim, o loteamento Jardim Marcelo é aceito, em 13.05.80, (fls. 110), encaminhado o PA a CASE para planta de averbação, oficialização e denominação dos logradouros, a RI para desdobro dos lançamentos fiscais e, após, à PATR para os procedimentos à averbação das áreas públicas (fls. 111). Então, percebeu-se que a área do título de propriedade era menor que a área loteada (fls. 113) e foi iniciada cobrança ao loteador para que promovesse ação de retificação. Não há notícia da propositura desta ação, de qualquer forma houve a regularização administrativa e fiscal daquele parcelamento conforme AU 151665/84. A planta AU foi enviada ao Juízo Corregedor solicitando seu registro (fls. 636), em 25.03.85. Diante do problema do título original, o processo na Vara de Registros Públicos (processo 232/85) acabou extinto sem julgamento do mérito, em 1986. No ano seguinte é autorizada a desistência da regularização judicial pela Municipalidade (fls. 675). Em 05.06.89, o processo é encaminhado à Equipe Sul/Mananciais para o prosseguimento à regularização. RESOLO, em 09.04.91, afirma que 7
não constavam pendências técnicas físicas, e sim registrárias, nunca resolvidas. Através da Lei nº 13.514/03 foi desafetada a área pública, espaço livre 1M de acordo com croqui de PATR, área conhecida na Secretaria Municipal de Habitação como Jardim Marcelo/Campo Ferreira. Enquanto a Lei nº 14.665/08 desafetou o espaço livre 3M, no mesmo Jardim Marcelo, e o espaço livre 5M do Jardim Ypê denominados em conjunto Navolato, que não tratamos no presente. 3 AS ÁREAS PÚBLICAS JARDIM MARCELO A prova da existência das áreas públicas no Jardim Marcelo é difícil, na medida em que o loteamento não foi inscrito ou registrado não haveria sequer respaldo legal para a gênese da área pública. Todavia, o loteamento vizinho, Jardim Ypê, o foi. Assim, é possível verificar a existência das áreas públicas pelas matrículas confrontantes. 3.1 CAMPO FERREIRA - RUA LÉRICE Para o registro da área mãe foi instaurado o processo administrativo nº 2003-0.276.004-7 e processo nº 583.00.2007.227101-6 na 1ª Vara de Registros Públicos, que se encontra no impasse de demonstrar tratar-se de área pública municipal que não se coloca, pois há prova de existência desta área pública diante da menção havida na matrícula 248.713 do 11º Serviço de Imóveis referente a imóvel localizado no setor 183, quadra 065, que consta às fls. 108, do referido processo administrativo. 8
Portanto, segundo as regras estabelecidas pela Comissão de Peritos, é possível identificar a existência legal desse espaço livre, localizado à Rua Lérice, porque este é mencionado na matrícula do lote confrontante registrado. Porém, é temerário afirmar que o perímetro fundiário no qual se baseou a titulação, em 2004, é correto ou incorreto, engloba áreas particulares ou não. De fato, o fechamento do perímetro fundiário é delicado diante da ausência de outros elementos necessários à sua elaboração segura. Os lotes confrontantes têm sua dominialidade assentada em transcrições flutuantes, ou seja, são de impossível fixação no solo, uma vez que suas descrições não são georreferenciadas. No entanto, em seu favor depõe o fato de que nenhum particular veio a esta Secretaria reclamar que foram outorgados títulos em sua área, o que ocorre quando há erro no fechamento do perímetro fundiário e área particular é englobada como se pública fosse. Tampouco consta que particular confrontante tenha movido ação judicial contra esta regularização. Na verdade, o que se vê no desenho da sobreposição da área titulada e da matrícula confrontante é que, de fato, há uma sobreposição sobre a área objeto da mencionada matrícula. Todavia, como esta matrícula se refere à área pública municipal oriunda de desapropriação, prova-se a sobreposição sobre área pública municipal. 9
CONCLUSÃO Trata-se de área pública, pois além de haver menção de área pública na matrícula confrontante, este território foi destinado à área pública quando da implantação do loteamento. Foi afetado como espaço livre. Assim, os vôos do início dos anos de 1970, inclusive do GEGRAM, demonstram a afetação desta área pública. Conforme estudo histórico das fotos aéreas da implantação do Jardim Marcelo abaixo, resta demonstrada a afetação no momento de implantação, ou seja, quando o loteador ainda dispunha do território. A seqüência de vôos sobre a área demonstra que a área foi ocupada nos anos de 1990. A importância da afetação é atestada no Parecer da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo, abaixo transcrita: "Parecer 334/2006-E - Processo CG 194/2006 Data inclusão: 22.02.08 REGISTRO DE IMÓVEIS. Se, por um lado, é a afetação pública que confere à via ou leito sua classificação entre os bens de domínio público; por outro, sem essa afetação, mera passagem de pedestre, sem função circulatória pública, com feição condominial no registro imobiliário, desde 1963, destinada apenas a servir os moradores de quatro unidades resultantes da divisão de imóvel maior, não pode ser qualificada como bem público, nada obstante a capa de regularização municipal. Cancelamento de averbação. Recurso não provido." 10
De fato, a foto aérea do local do vôo de 1973 demonstra que ambos os espaços livres do Jardim Marcelo foram afetados em sua origem, pois o loteamento estava implantado e os espaços livres preservados. Se a afetação é essencial à constituição da área pública, nossos Tribunais têm dado guarida à teste do concurso voluntário pela qual a mera aprovação do parcelamento do solo transferiria o domínio das áreas públicas à Municipalidade. Neste sentido, decidiu a Quarta Câmara do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: "Poder Judiciário Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo Voto nº 05 Apelação Cível nº 128.726.4-1, de Campinas Apelante: Adelelmo Fernandes Fialho Apelados: Municipalidade de Campinas e Outro Acordam, em Quarta Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, proferir a seguinte decisão: 'Rejeitaram as preliminares e negaram provimento ao recurso, v.u.', de conformidade com o relatório e voto do Relator, que integram este acórdão. (...) DOAÇÃO. Nulidade inexistente. Prioridade da aquisição do domínio da área em disputa pela Municipalidade de Campinas sobre a aquisição do antecessor do autor. A transferência do domínio particular para o público de áreas referentes a vias e logradouros públicos se consuma com a simples apresentação de pedido de loteamento, para aprovação da planta de loteamento pela loteadora e aceitação do pedido pela Municipalidade, independentemente de título aquisitivo e transcrição, bem como da efetiva consumação fática do loteamento, com realização das obras necessárias. 11
Aplicação da teoria do concurso de vontades. Pedido de aprovação do loteamento em data anterior à aquisição da área pelo antecessor do autor. Escritura de doação, que apenas formalizou a transferência de domínio de áreas e logradouros públicos consumada com a aceitação do pedido de loteamento. Recurso improvido." Neste sentido, todas as plantas aprovadas, desde os idos de 1964, demonstram que o loteador do Jardim Marcelo tinha a firme intenção de reservar áreas públicas para o viário e para espaços livres (que, mais tarde, passam a ser denominados nos autos de sistema de recreio). Portanto, a área conhecida como Campo Ferreira é pública municipal sem sombra de dúvida. Por outro lado, diante da ausência de outros elementos e de contestação de terceiros, o perímetro deve ser defendido, somente deve ser cogitada sua alteração se por conveniência e oportunidade a Administração entenda pela desafetação e regularização das moradias no DIS. São Paulo, 2 de setembro de 2009. 12