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Transcrição:

MULHERES LIBERTAS E LIVRES DE COR EM PORTO ALEGRE E VIAMÃO, RIO GRANDE DE SÃO PEDRO (1747-1808) ANA PAULA DORNELLES SCHANTZ * O presente trabalho tem intuito dar visibilidade às mulheres libertas e livres de cor de Viamão e Porto Alegre do final do século XVIII. 1 O estudo da autonomia e das relações familiares das forras contribui, em termos gerais, para o desenvolvimento da abordagem que estuda e vê a mulher negra e parda como agentes da sua história. Através desses preceitos teóricos, analisaremos tanto a formação familiar quanto a condição sócioeconômica dessas mulheres. Apesar do tema escravidão ter recebido muita atenção nos últimos tempos, a história das africanas e dos afro-descendentes no Brasil ainda é um tema longe de ser esgotado. Um levantamento bibliográfico por nós delimitado a respeito dos libertos na sociedade brasileira constatou haver um número significativo de bons estudos sobre tal grupo social. Destacamos, entre esses, alguns trabalhos que analisaram tais indivíduos especificamente no século XIX, tais como: 1) o de Kátia Mattoso, Maria Inês de Oliveira e de João José Reis, no que se refere a libertos na Bahia; 2) o de Sidney Chalhoub e de Eduardo Silva, para o Rio de Janeiro; 3) o de Regina Xavier, para Campinas e São Paulo; e 4) o de Paulo Staudt Moreira, referente ao Rio Grande do Sul. 2 No que diz respeito ao período * Mestranda do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal da Bahia. Bolsista Capes. 1 Texto integrante da pesquisa de mestrado intitulada E depois da liberdade? Sobrevivência sócio-econômica de libertos em Porto Alegre e Viamão no final do século XVIII Capitania de São Pedro. 2 Kátia Mattoso. Testamentos de escravos libertos na Bahia no século XIX: uma fonte para o estudo de mentalidades. Salvador: Centro de Estudos Baianos da UFBA, 1979. Maria Inês de Oliveira. O liberto: seu mundo e os outros, Salvador, 1790-1890. São Paulo: Corrupio; [Brasília, DF]: CNPq, 1988. João José Reis, Flávio Gomes e Marcus Carvalho. África e Brasil entre margens: aventuras e desventuras do africano Rufino José Maria. Estudos Afro-Asiáticos, vol. 26, no. 2 (2004), pp. 257-302. Sidney Chalhoub. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. Eduardo Silva. Dom Obá II D África, o príncipe do povo: vida, tempo e pensamento de um homem livre de cor. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.Regina Xavier. A conquista da liberdade: libertos em Campinas na segunda metade do século XIX. Campinas: Área de Publicações CMU/UNICAMP, 1996. Paulo Moreira. Faces da liberdade, 1

colonial, alvo do presente estudo, podemos citar os trabalhos de Júnia Furtado e Ida Lewcovicz, referentes a Minas Gerais; de Sheila Faria, ao Rio de Janeiro; e de Ligia Bellini, à Bahia. 3 Apesar dos trabalhos mencionados acima serem referência em termos de estudos sobre libertos, acreditamos que, no que tange ao Rio Grande do Sul colonial, ainda há uma carência significativa de estudos sobre a mulher liberta ou livre de cor. MULHERES LIBERTAS E LIVRES DE COR EM VIAMÃO E PORTO ALEGRE O primeiro passo para o desenvolvimento desta pesquisa consiste em entendermos e analisarmos as libertas e livres de cor enquanto dois grupos sociais distintos, tanto em relação ao seu estatuto quanto às suas práticas sociais. A partir do cruzamento das fontes, foram identificados 397 libertos e livres de cor em Viamão e Porto Alegre, nos anos de 1747 a 1808. 4 Destes, 207 eram mulheres e 190 homens. Se classificarmos as mulheres segundo a cor com a qual eram discriminadas nas suas respectivas documentações, obteremos a seguinte composição: 127 pretas forras, 63 pardas, 15 crioulas, 1 cabra e 1 mulata (ver gráfico 1). Gráfico 1: Classificação de libertas e livres quanto a cor 15 1 Pretas 63 1 127 Cabras Pardas Crioulas Mulatas Fonte: AHRGS, Inventários; ACMPA, Livros de casamento, de óbito e de batismo, róis de confessados, testamentos, processos matrimoniais e eclesiástico. Dos 12 inventários e testamentos encontrados, quatro eram de mulheres, todas pretas alforriadas, e oito pertenciam a quatro pretos e quatro pardos forros. Com uma amostra tão pequena, de apenas 12 casos, não se pode tirar conclusões que permitam generalizações máscaras do cativeiro: experiências de liberdade e escravidão, percebidas através das cartas de alforria Porto Alegre (1858 1888). Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. (Coleção História, 12). 3 Júnia Furtado. Chica da Silva e o contratador de diamantes: o outro lado do mito. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. Ida Lewcovicz. Herança e relações familiares: os pretos forros nas Minas Gerais do século XVIII. Revista da ANPUH. São Paulo: ANPUH & Maço Zero, nº 17, set 1988/fev, 1989. pp. 101-114. Sheila Faria. Mulheres forras riqueza e estigma social. Tempo. Rio de Janeiro, v. 5, n. 9, jul., 2000. pp. 65-92. Ligia Bellini. Por amor e por interesse: a relação senhor-escravo em cartas de alforria. In: João José Reis. (org.). Escravidão e invenção da liberdade: estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo: Ed. Brasiliense; CNPq, 1988. pp. 73-86. 4 Inventários, testamentos, registros de óbito, batismo e matrimônio, róis de confessados, registros de compra e venda, processos matrimoniais e eclesiástico. 2

confiáveis. No entanto, mesmo para essa amostra pequena, é surpreendente que encontremos apenas inventários de pretas africanas. Sobre esse assunto, Sheila Faria afirma que a mulher forra, em especial a mulher forra africana, tinha condições sociais e econômicas especiais que a tornavam detentora de um poder econômico só muito recentemente detectado. 5 No entanto, a autora não explica por que razão teria a mulher africana melhores condições do que as nascidas no Brasil. A autora tenta apenas explicar a necessidade das libertas em legar seu patrimônio, quando escreve, por exemplo, que a forma ciosa com que tentaram preservar estes bens nos contratos de arras, demonstra que havia um cuidado com o que haviam adquirido por seus méritos, bens acumulados à custa de seu trabalho e que deveria ser passado para seus filhos ou para quem elas escolhessem. 6 Ora, por que seria essa uma preocupação apenas das libertas africanas? Será que elas estariam mais preocupadas que seu patrimônio fosse legado a seus descendentes que do estariam as pardas? Acreditamos que essa não seja uma hipótese razoável. Indicação inicial para uma possível resposta à questão acima levantada advém da observação de que todas as libertas que deixaram testamento, ou que tiveram seus bens inventariados, tinham filhos; uma era solteira, duas viúvas e a outra já tinha tido sua filha antes de se casar. Podemos, então, pensar que o fato de estarem ou solteiras, ou viúvas, ou casadas com o padrasto do filho, preocuparia essas mulheres com o desamparo dos seus descendentes após a sua morte. Porém, isso pouco as diferencia das pardas libertas; entre as mulheres solteiras ou viúvas, o percentual das que possuíam filhos é alto tanto entre as pretas quanto entre pardas (53% e 63% respectivamente). Tabela 1: Estado civil e filiação segundo a cor da pele [1747-1808] Pretas Pardas Crioulas Mulatas Cabras Casadas com filhos 19 17 3 - - Casadas sem filhos 74 19 11 - - Solteiras com filhos 18 17 - - - Solteiras sem filhos 16 10 1 1 1 Total 127 63 15 1 1 Fonte: AHRGS, Inventários; ACMPA, Livro de óbito e de batismo, róis de confessados, testamentos. Outra possível explicação poderia ser o casamento: se a maioria das pardas estivesse casada, elas não se preocupariam com o futuro dos filhos ou cônjuges após o seu 5 Faria, op. cit., p.70. 6 Idem, p. 69. 3

falecimento. 7 Essa hipótese, novamente, não tem suporte na documentação analisada, uma vez que 73,2% das pretas libertas eram casadas, enquanto que apenas 57,2% das pardas tinham essa mesma condição. Ou seja, aparentemente, eram as pardas, e não as pretas libertas, o grupo mais exposto. Tabela 2: Estado civil segundo a cor da pele [1747-1808] Pretas Pardas Crioulas Mulatas Cabras Casadas com pretos forros 64 2 2 - - Casadas com pardos forros 7 23 3 - - Casadas com crioulos forros - 2 4 - - Casadas com escravos 11 4 4 - - Casadas com pessoa sem 11 5 1 - - indicação de cor ou estatuto social Solteira 34 27 1 1 1 Total 127 63 15 1 1 Fonte: AHRGS, Inventários; ACMPA, Livros de casamento, de óbito e de batismo, róis de confessados, testamentos, processos matrimoniais e eclesiástico. Como pode ser observado, nenhum das hipóteses anteriormente levantadas, com objetivo de tentar explicar as diferenças entre negras e pardas, apresentam suporte nas fontes examinadas. Entretanto, podemos analisar outras fontes de dados representativos dessas mulheres, principalmente no que tange a formação de família. Como mostra a Tabela 2, a maioria das pretas (leia-se africanas) casavam-se com pretos (leia-se africanos) forros, enquanto que a maioria das pardas casava-se com pardos forros. Considerando o conjunto dessas mulheres, pode-se concluir que havia uma fortíssima tendência à endogamia: africanos casavam-se com africanos, pardos com pardos e forros com forros. Quanto à filiação, podemos verificar, na Tabela 1, que a minoria das mulheres possuíam filhos. A maior parte das que geraram filhos tiveram apenas um. Neste aspecto, não se encontra diferença entre africanas e brasileiras (ver Tabela 3). Devemos ter em mente que estes dados podem estar distorcidos, pois baseiam-se principalmente nos registros pós manumissão, não levando em consideração os filhos tidos pelas negras quando essas ainda estavam sujeitas ao cativeiro. Além do registros possivelmente incompletos, o alto índice de mortalidade infantil também pode explicar a baixa taxa de fertilidade entre essas mulheres. Como exemplo disso, mencionamos Joana Vieira, preta forra, a qual perdeu os quatro filhos 7 Entendemos como casamento tanto a união sacralizada na Igreja, quanto a união consensual. 4

quando ainda crianças. Ana Maria, parda forra, perdeu dois filhos, um deles de moléstia crônica, ambos ainda bebês. 8 Tabela 3: Quantidade de filhos de libertas e livres de cor, solteiras e casadas Um Filho Dois Filhos Três Filhos Quatro Filhos Pretas 24 3 3 2 Pardas 24 4 3 3 Crioulas 3 - - - Fonte: AHRGS, Inventários; ACMPA, Livros de óbito e de batismo, róis de confessados, testamentos. Essas mulheres, pretas, pardas, mulatas, crioulas, ou como quer que elas tenham sido nomeadas, conquistaram a liberdade, formaram famílias, tiveram filhos e algumas até conseguiram acumular bens. Mas que bens foram esses? Na pesquisa pelas fontes utilizadas neste trabalho, encontramos apenas oito inventários de libertos e livres de cor registrados, nos cartórios de Porto Alegre, referentes aos anos de 1769 a 1808. 9 Essa quantidade representa apenas 1,6% do total de 497 inventários do período. Esses números falam por si só, ou seja, são reflexo de uma sociedade onde os libertos não alcançavam mais do que 2% do total de indivíduos da população, mas na qual os escravos representavam quase 40%. 10 O pequeno número de alforriados, em relação às outras áreas do Brasil, resulta das características econômicas do Rio Grande de São Pedro. Dos tempos do apresamento indiscriminado de gado até os da exportação de charque, o RS sempre atuou como figurante na economia colonial, abastecendo o mercado das minas e de outras regiões, sobretudo com alimento para escravos. Excluindo-se a região de Pelotas, então principal núcleo de produção de charque, o resto da capitania não vivia em condições econômicas tão favoráveis quanto seus contemporâneos das Gerais. Se lá a mineração facilitou a formação de pecúlio e compra de alforrias por escravos, o mesmo não aconteceu na economia agropecuária do sul. Isso explicaria o reduzido número de alforrias, apesar do grande número de escravos. Viamão e Porto Alegre eram núcleos urbanos com características rurais - Viamão, por seu vasto território e Porto Alegre pelas chácaras do seu entorno. Essa característica é percebida nos inventários das libertas, onde são arrolados tanto objetos 8 Sobre Joana Vieira, ACMPA. 2 º Livro de Óbitos de Viamão, fl. 31, 08/08/1783, fl. 56, 8/04/1790 e fl. 63v, 03/01/1792; 1º Livro de Óbitos de Porto Alegre, Fl. 99; 01/03/1790. Sobre Ana Maria, 2º Livro de Óbitos de Viamão, fl. 87, 24/07/1796 e fl. 123, 07/06/1808. 9 Os 1º e 2º Cartórios de Cível e Crime e o 1º Cartório de Órfãos e Ausentes de Porto Alegre só foram criados em 1769. 5

vinculados à produção e venda de quitutes (como peneiras, balaios, gamelas), quanto à criação de animais (bois, porcos e cavalos), e à agricultura. Esse o caso, por exemplo, de Catarina Duarte, preta forra de nação angola, que possuía, em 1780, dezoito bois mansos, uma égua muito velha e um porco capado. 11 Dezoito bois sem dúvida não é um número desprezível para a sociedade rio-grandense nessa época. Segundo Helen Osório, esses animais eram usados não apenas para corte, mas também para prática de agricultura (quer como animal de tração para o arado ou para carros e carretas que escoavam seu excedente agrícola). 12 Isso nos dá uma pista sobre as atividades de Catarina: além de fabricar quitutes, ela possivelmente se dedicava à agricultura com um rebanho de tamanho considerável. Osório, ao analisar inventários de lavradores, obteve a média de 16 bois por proprietário no Rio Grande em 1784. 13 Catarina, portanto, estava acima da média, mas ela era exceção entre as forras. Conforme dito anteriormente, foram quatro os inventários de mulheres forras encontrados, e pertenciam às seguintes pretas: Catarina Duarte, Mariana Antônia de Moraes, Joana Maria da Conceição e Ana Maria Pereira. 14 A seguir, tentaremos identificar seus ofícios e refletir a respeito dos bens arrolados e da preocupação dessas mulheres em garantir o bem estar dos filhos. Josefa Maria da Conceição, preta forra de nação mina, declarou em seu testamento que [...] sempre vivi no estado de solteira e que no tempo que estava cativa do capitão Manuel Fernandes Vieira tive um filho macho o qual se chama Luciano é pardo este se acha cativo hoje de Manuel Benfica, morador na freguesia de Santo Antônio da Guarda Velha e é meu legítimo e universal herdeiro de todos os meus bens inda que poucos assim mesmo por tal o constituo e já em alguns tempos o quis libertar o cativeiro porém o dito seu senhor nunca quis ceder aos empenhos que eu meti o que agora meu testamenteiro por si e por outras pessoas farão todos os esforços para libertarem o dito meu filho do cativeiro em que se acha a fim de puder tratar da sua vida como liberto o que cativo não pode fazer pela sujeição em que vive. 15 10 Fonte: KÜHN, Fábio. Gente da fronteira: sociedade e família no sul da América portuguesa século XVIII. In: Luis Grijó, Fábio Kühn, César Guazzelli e Eduardo Neumann (orgs.). Capítulos de História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004. p. 54. 11 APERGS. Inventário de Catarina Duarte 1780. 2º Cartório de cível e crime de Porto Alegre, n 9, maço 1 12 Helen Osório. Estancieiros que plantam, lavradores que criam e comerciantes que charqueiam: Rio Grande de São Pedro, 1760-1825. In: Luis Grijó, Fábio Kühn, Cesar Guazzelli e Eduardo Neumann (orgs.). Capítulos de História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004. p. 81. 13 Idem, p. 79 14 APERGS. Inventário de Catarina Duarte. Op. cit; Inventário de Josefa Maria da Conceição. 1796. 2º Cartório de cível e crime de Porto Alegre, n. 38, maço 2; Inventário de Mariana Antônia de Morais. 1788. 1º Cartório de órfãos e ausentes de Porto Alegre, n. 143, maço 10. ACMPA. Testamento de Ana Maria Pereira. 1777. Livro de Testamentos de Porto Alegre. 15 APERGS. Inventário de Josefa Maria da Conceição, op. cit. 6

Josefa deixou para seu filho escravo talvez filho dela com seu ex-senhor, pois o menino era pardo -, uma morada de casas na Rua do Arroio e uma escrava de nome Efigênia. Ela também encarregou seu testamenteiro de se empenhar pela liberdade de seu filho, escravo de um senhor que se recusava a alforriá-lo. Os bens de Mariana Antônia de Moraes foram deixados para seus herdeiros forçados, Florinda, cabra, e José; os de Ana Maria Pereira, para sua filha Catarina; e os de Catarina Duarte, única das quatro que era casada, dividido entre seu marido, Teodósio Pires da Mota, pardo forro, e sua filha, Lucinda da Câmara, parda forra, representada no inventário pelo marido, Bento Teixeira da Silva. 16 Em todos esses casos, e em especial no de Josefa Maria, se evidencia a preocupação dessas mulheres para que os bens adquiridos durante suas vidas, e através de seu trabalho, fossem repassados a seus herdeiros. Nenhuma das inventariadas, no entanto, relatou que tipo de ocupação lhes permitiu acúmulo de seus respectivos bens. A historiadora Inês de Oliveira também enfrentou essa dificuldade, ou seja, ausência de informação a respeito dos métodos de obtenção de bens, ao afirmar que pouquíssimos são os testadores que declaram suas ocupações. 17 Através da análise da documentação, no entanto, ainda podemos inferir quais seriam os ofícios de duas delas Catarina Duarte e Mariana Antônia de Moraes. Sobre a primeira, conforme já comentado, sabemos que era proprietária de animais, provavelmente usados para a pequena agricultura. Este fato é confirmado também por outros objetos arrolados, como uma pá, uma enxada e um machado. Catarina também possuía objetos que indicam a fabricação e comercialização de alimentos, como um tacho de cobre, três peneiras, uma gamela, três balaios e uma balança com peso. Esses objetos e os animais indicam o caráter tanto rural como urbano que Porto Alegre e Viamão tinham naquela época. Catarina morava em Viamão, e, embora não saibamos exatamente onde, provavelmente fosse em um terreno relativamente grande, pois precisava de área para manter seus 18 bois, seu porco, sua égua e uma carreta. Foram também declaradas no inventário de Catarina duas pistolas, provavelmente adquiridas com a intenção de proteger seus bens e a si própria, uma vez que provavelmente ela e o marido moravam longe da sede da freguesia. 18 De qualquer forma, é provável que o terreno de Catarina não ficasse muito distante da vila, uma vez que ela deveria freqüentá-la com certa freqüência para vender sua produção. Mariana 16 Neste último caso, o genro da falecida entrou em litígio com Teodósio por alegar que este último estava se apropriando dos bens que viriam a pertencer a sua esposa Lucinda, filha natural de Catarina 17 Oliveira, op. cit., p. 31. 7

Antônia de Moraes, por sua vez, também parece ter vivido da venda de alimentos, os tais quitutes de que fala a historiografia. 19 Em seu inventário, são arroladas uma chocolateira, uma masseira e um tacho de cobre, entre outros objetos de cozinha. A venda de quitutes era uma atividade claramente urbana, o que é consistente com os dados que obtivemos, uma vez que Mariana viva em Porto Alegre, na rua do Cotovelo, perto da ponte, no coração da cidade. 20 Sua casa térrea, coberta de palha, fazia fundos com a de um grande proprietário de escravos, Miguel Brás. 21 Provavelmente ela se valia da posição privilegiada onde morava para estabelecer contatos e vender seus produtos. Esse não é o caso, entretanto, de Josefa Maria da Conceição, que possuía uma casa coberta de capim na rua do Arroio. Porto Alegre se originou numa península; a norte e a oeste, seus limites são balizados pelo Lago Guaíba; ao sul, pelo Arroio Dilúvio; e a leste, pelo portão da cidade. Assim, a casa pertencente a Josefa Maria da Conceição ficava na área periférica da cidade (perto do dito arroio). No entanto, ela não morava lá. Josefa locava a casa para duas mulheres solteiras e morava em outra casa alugada por Maria Mina. Josefa não declarou onde ficava a casa em que morava. Podemos pensar em duas razões para o caso: ou ela alugava suas casas para morar num local melhor, ou ela alugava sua casa e morava em um local mais barato, para poder usufruir da diferença de renda. A renda com o aluguel poderia ser um indicativo de seu meio de subsistência e de como ela juntou pecúlio para comprar a alforria de seu filho, já que o seu inventário não nos dá nenhuma outra pista a respeito disso. 22 Josefa Maria, além da casa, possuía uma escrava, de nome Efigênia, que ela declarou ser boa escrava. 23 Das quatro inventariadas, apenas Mariana não possuía nenhum escravo. Catarina possuía um moleque por nome Damião de nação angola e um rapaz chamado Leandro; Ana Maria Pereira possuía a escrava Maria. 24 Elas não eram exceção. Muitos libertos possuíam escravos. As libertas citadas acima, embora estivessem abaixo da média de 4,1 cativos por proprietários em Viamão em 1778, merecem destaque porque tiveram recursos suficientes para comprar escravos, que não custava barato. 25 18 APERGS, Inventário de Catarina Duarte, op. cit. 19 Luciano Figueiredo e Luiz Mott apud Faria, op. cit., p. 78. 20 Atualmente a rua se chama Riachuelo, e cruza a Avenida Borges de Medeiros (onde ficava a ponte), ainda hoje uma área importante do centro da cidade. 21 APERGS, Inventário de Mariana Antônia de Moraes, op. cit. 22 APERGS, Inventário de Josefa Maria da Conceição, op. cit. 23 Idem. 24 APERGS, Inventário de Catarina Duarte, de Mariana Antônia de Moraes, op. cit. ACMPA, Testamento de Ana Maria Pereira, op. cit. 25 Fábio Kühn, op. cit.. 8

Tabela 4: Número de escravos por proprietário liberto ou livre de cor, segundo a cor da pele [1747-1807] No. Escravos Pretos Pardos Pretas Pardas Total 1 1 4 7 2 14 2 - - 1-1 3 1-1 - 2 4 - - 2-2 5-1 - - 1 7 - - 1-1 Total 2 5 12 2 21 Fonte: AHRGS, Inventários; ACMPA, Livros de óbito e de batismo, róis de confessados, testamentos. Podemos constatar pela análise da Tabela 4 que a maioria dos forros proprietários de escravos possuía apenas um cativo. Apenas quatro indivíduos alcançaram ou ultrapassaram a média de escravos por proprietários. Quem mais se destaca é Maria da Conceição, preta forra, moradora de Viamão, que possuía sete escravos. 26 Mas o que mais chama a atenção na Tabela 4 é a grande diferença entre o número de escravos pertencentes a pretas forras em relação ao resto dos forros; elas possuíam 57% dos escravos pertencentes a libertos ou livres de cor. Se somarmos os escravos pertencentes às pardas, constataremos que as mulheres forras possuíam 67%, ou exatos dois terços, dos cativos que serviam a libertos e livres de cor. Sheila Faria argumenta, contrariamente aos historiadores que sugerem a pobreza dos pequenos escravistas forros, que os proprietários de escravos não poderiam ser considerados exatamente pobres: [...] a aquisição de um escravo não era fácil. Juntar o necessário para se comprar pelo menos um demandava, para a esmagadora maioria da população, investimentos significativos, quer de ordem econômica, quer de ordem pessoal. Não se pode, portanto, considerar de maneira absoluta como pobre o proprietário de um único escravo, principalmente porque a grande maioria da população economicamente ativa da sociedade escravista não tinha condições de ter nem mesmo um. Mulheres proprietárias de escravos, qualquer que tenha sido sua condição social, não podem ser consideradas pobres, no sentido econômico do termo. 27 Sheila Faria se refere aqui à sociedade formada a partir da economia mineradora de São João Del Rey. Se pensarmos na economia rio-grandense como abastecedora do mercado interno, temos uma realidade econômica diferente da região das Gerais. Ter um escravo no RS deveria ser ainda mais difícil do que em Minas, devido à distância do mercado abastecedor. 26 ACMPA, Livros de óbitos e de batismo de Viamão. 9

Comprar um cativo dava aos homens e mulheres libertas certa distinção numa sociedade onde o trabalho estava associado ao estatuto de escravo. No entanto, a distinção das mulheres forras não se limitava somente à compra de escravos. Após adquirir a liberdade, elas procuravam se distinguir das escravas pela vestimenta. Maciel Henrique da Silva chama atenção para o fato de que deve-se considerar que, para uma mulher preta forra, os sinais de sua ascensão eram fundamentais, e deviam ser evidentes o suficiente para que ninguém confundisse seu novo status com o antigo, de escrava. 28 Isso se evidencia nos bens arrolados nos inventários verificamos várias roupas e tecidos. Catarina Duarte é quem mais possuía bens em roupas: saias, camisas, um par de sapatos de veludo, um par de fivelas de sapatos de prata, um par de brincos de ouro, entre outros bens. 29 Mariana também teve seus bens em roupas arrolados, mas nada que se comparasse ao guarda-roupa de Catarina. 30 É importante pensar o quanto esses detalhes eram importantes para a constituição da identidade dessas mulheres. Diferenciar-se dos escravos significava se afastar da realidade do cativeiro e se aproximar da sociedade livre, na qual as possibilidades sociais para tais mulheres, mesmo com as limitações impostas pela cor da pele, eram maiores. Também é importante pensar na importância de ser reconhecida como liberta, uma vez que essa condição era tanto desejável quanto difícil de ser alcançada. CONCLUSÃO As libertas de Viamão e Porto Alegre estavam longe de serem ricas e influentes. Vivendo numa capitania que incorporou para si o discurso de abandono por parte dos governos centrais, elas provavelmente tiveram poucas oportunidades e brechas para ascender economicamente. No entanto, acreditamos ter indícios convincentes de que uma parcela dessas mulheres conseguiu obter, mesmo que sumariamente, condições econômicas suficientes tanto para se manter quanto para ascender, através de seu trabalho e de seus escravos. Pudemos verificar a superioridade numérica de pretas em relação às pardas, crioulas e mulatas, mas também a desigualdade econômica que favorecia as primeiras. Quanto à diferença social, não possuímos nenhum indício de privilégios de uma ou de outra parte, 27 Faria, op. cit., p. 83. 28 Maciel Henrique Silva. Delindra Maria de Pinho: uma preta forra de honra no Recife da primeira metade do séc. XIX. Afro-Ásia, 32 (2005), 219-240. P. 228. 29 APERGS. Inventário de Catarina Duarte, op. cit. 30 APERGS. Inventário de Mariana Antônia de Morais, op. cit. 10

pois, se as pardas levavam vantagem pela cor mais clara da pele, isso não se evidenciou, nos dados de que dispomos, como uma chance de melhorar sua vida financeira. Teremos, portanto, que buscar explicações noutro lugar que não nas relações raciais. Talvez a resposta esteja relacionada ao mundo do trabalho, uma vez que as pardas dispensariam ou não teriam a mesma abertura que as africanas para certos setores econômicos, como por exemplo, a venda de quitutes nas ruas. Apesar do pequeno número de inventários e testamentos disponíveis, pudemos chegar a conclusões a respeito das condições de vida das libertas analisando o número de escravos que possuíam. Verificamos que a esmagadora maioria de proprietários no grupo eram pretas forras. Essas pretas se destacavam até mesmo em relação aos homens, tanto pretos, como pardos, ficando apenas abaixo dos proprietários brancos. Quase 10% das pretas forras possuíam escravos, o que não é um número desprezível, ainda mais se levarmos em consideração suas trajetórias de vida. Verificamos, também, não apenas a preferência pelo casamento entre pessoas da mesma cor e estatuto social, mas também que a maioria das pretas forras estava unida maritalmente. As pretas forras são africanas, na maioria, ou mulheres de pele escura nascidas no Brasil. Não podemos ignorar a violência que sofreram ao serem tiradas de suas terras natais e mandadas para um lugar onde foram exploradas e consideradas inferiores. Surpreende que, depois de tudo isso, ainda conseguissem se destacar na sociedade. É ainda mais surpreendente que elas tivessem conseguido se destacar na sociedade sul-riograndense. Uma vez que o RS teve sua ocupação efetiva apenas na segunda metade do século XVIII, então ou essas mulheres trouxeram um pecúlio das outras partes do Brasil onde viviam, ou conseguiram acumular bens num curto espaço de tempo, e numa sociedade à margem da economia colonial de exportação. Embora essas mulheres não tenham conseguido poder político e prestígio social, também não podemos supor que não tivessem influência na sociedade em viviam. Afinal, conseguiram sua alforria por meio de compra ou pela negociação, trabalharam, juntaram recursos, adquiriram bens, formaram família e foram exemplo para a camada escrava, que sonhava também com a liberdade. A valorização dessas mulheres passa pelo reconhecimento de sua posição e de sua contribuição para a sociedade colonial. Reconhecer, através de pesquisa, que elas tiveram oportunidades de ascensão, não serve em absoluto para enaltecer a prática colonial portuguesa, que supostamente teria oportunizado essas brechas, mas sim para valorizar o esforço dessas muitas pessoas que, apesar de todas as adversidades, como a travessia nos 11

tumbeiros, o cativeiro e a sujeição moral e sexual, conseguiram garantir sua liberdade e uma vida longe da pobreza. BIBLIOGRAFIA BELLINI, Ligia. Por amor e por interesse: a relação senhor-escravo em cartas de alforria. In: REIS, João José. (org.). Escravidão e invenção da liberdade: estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo: Ed. Brasiliense; CNPq, 1988. pp. 73-86. CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. FARIA, Sheila. Mulheres forras riqueza e estigma social. Tempo. Rio de Janeiro, v. 5, n. 9, jul., 2000. pp. 65-92. FURTADO, Júnia. Chica da Silva e o contratador de diamantes: o outro lado do mito. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. KÜHN, Fábio. Gente da fronteira: sociedade e família no sul da América portuguesa século XVIII. In: Luis Grijó, Fábio Kühn, Cesar Guazzelli e Eduardo Neumann (orgs.). Capítulos de História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004. pp. 47-74. LEWCOVICZ, Ida. Herança e relações familiares: os pretos forros nas Minas Gerais do século XVIII. Revista da ANPUH. São Paulo: ANPUH & Maço Zero, nº 17, set, 1988/fev, 1989. pp. 101-114. MATTOSO, Kátia. Testamentos de escravos libertos na Bahia no século XIX: uma fonte para o estudo de mentalidades. Salvador: Centro de Estudos Baianos da UFBA, 1979. MOREIRA, Paulo. Faces da liberdade, máscaras do cativeiro: experiências de liberdade e escravidão, percebidas através das cartas de alforria Porto Alegre (1858 1888). Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. OLIVEIRA, Maria Inês de. O liberto: seu mundo e os outros, Salvador, 1790-1890. São Paulo: Corrupio; [Brasília, DF]: CNPq, 1988. OSÓRIO, Helen. Estancieiros que plantam, lavradores que criam e comerciantes que charqueiam: Rio Grande de São Pedro, 1760-1825. In: Luis Grijó, Fábio Kühn, Cesar Guazzelli e Eduardo Neumann (orgs.). Capítulos de História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004. pp. 75-90. REIS, João José. GOMES, Flávio. CARVALHO, Marcus. África e Brasil entre margens: aventuras e desventuras do africano Rufino José Maria. Estudos Afro-Asiáticos, vol. 26, no. 2 (2004), pp. 257-302. 12

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