Do enigma ao cômico. Celso Rennó Lima

Documentos relacionados
REALMENTE, O QUE SE PASSA?

DO MAIS AINDA DA ESCRITA 1

Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais - Almanaque On-line n 20

Latusa digital N 12 ano 2 março de Sinthoma e fantasia fundamental. Stella Jimenez *

NOME DO PAI E REAL. Jacques Laberge 1

A constituição do sujeito e a análise

AS DUAS VERTENTES: SIGNIFICANTE E OBJETO a 1

O estatuto do corpo no transexualismo

Histeria sem ao-menos-um

Referências bibliográficas

A devastação: uma singularidade feminina

O real no tratamento analítico. Maria do Carmo Dias Batista Antonia Claudete A. L. Prado

Quando dar à castração outra articulação que não a anedótica? 1

Um rastro no mundo: as voltas da demanda 1

O amor e a mulher. Segundo Lacan o papel do amor é precioso: Daniela Goulart Pestana

UM RASTRO NO MUNDO: AS VOLTAS DA DEMANDA 1 Maria Lia Avelar da Fonte 2

Do sintoma ao sinthoma: uma via para pensar a mãe, a mulher e a criança na clínica atual Laura Fangmann

O falo, o amor ao pai, o silêncio. no real Gresiela Nunes da Rosa

Incurável. Celso Rennó Lima

Latusa digital ano 3 N 22 maio de 2006

O Fenômeno Psicossomático (FPS) não é o signo do amor 1

Sofrimento e dor no autismo: quem sente?

Amor fetichista - amor louco: consequências na criança Gabriela Dargenton

QUE AMOR NA TRANSFERÊNCIA? Ana Paula de Aguiar Barcellos 1

O gozo, o sentido e o signo de amor

Latusa digital ano 0 N 3 outubro de 2003

Latusa Digital ano 1 N 8 agosto de 2004

Do sintoma ao sinthoma

Latusa digital N 12 ano 2 março de 2005

AS DEPRESSÕES NA ATUALIDADE: UMA QUESTÃO CLÍNICA? OU DISCURSIVA?

R.S.I.: EQUIVALÊNCIAS E DIFERENÇAS 1

Almanaque on-line entrevista Patrício Alvarez, Diretor do VI ENAPOL.

Instituto Trianon de Psica nálise

Potlatch amoroso : outra versão para o masoquismo feminino Graciela Bessa

ALIENAÇÃO E SEPARAÇÃO. Mical Marcelino Margarete Pauletto Renata Costa

Amor e precipitação: um retorno à história de Sidonie C., a paciente homossexual de Freud

O amor de transferência ou o que se pode escrever de uma análise

Sujeito e falasser. Maria Angela Maia 1

Latusa Digital ano 1 N 8 agosto de 2004

Opção Lacaniana online nova série Ano 5 Número 14 julho 2014 ISSN FPS e sinthome. Paola Salinas

6 Referências bibliográficas

Referências Bibliográficas

O MANEJO DA TRANSFERÊNCIA NA PSICOSE: O SECRETÁRIO DO ALIENADO E SUAS IMPLICAÇÕES

Mesa Redonda: a psicose de Freud a Lacan

O OBJETO A E SUA CONSTRUÇÃO

Considerações finais

Alguns termos em francês não foram ainda traduzidos e algumas abreviaturas idem. Alguns de vocês poderão fazê-lo...

OS TRABALHOS ARTÍSTICOS NÃO SÃO PRODUTOS DO INCONSCIENTE 1

AS CONTINGÊNCIAS DO NOME DO PAI: HOMEM, MULHER E ANGÚSTIA CONTIGENCIES OF THE NAME OF THE FATHER: MEN, WOMEN AND ANGUISH

A DUPLA VIA DO CORPO: SINTOMA E FALHA EPISTEMO-SOMÁTICA

Medicina e psicanálise: elogio do mal-entendido 1

AMOR SEM LIMITES: SOBRE A DEVASTAÇÃO NA RELAÇÃO MÃE E FILHA E NA PARCERIA AMOROSA

UMA TOPOLOGIA POSSÍVEL DA ENTRADA EM ANÁLISE 1

Começaremos dando ênfase a uma citação de Lacan no Seminário IV, A relação de objeto:

Latusa digital ano 2 N 19 outubro de 2005

Latusa digital ano 3 Nº 26 dezembro de 2006

Latusa digital ano 2 N 13 abril de 2005

Indicações topológicas sobre o corte analítico: em busca da ética na clínica diferencial 1

O real escapou da natureza

A Função Paterna. Falo. Criança. Mãe. Tríade Imaginária

6 Referências bibliográficas

DIMENSÕES PSÍQUICAS DO USO DE MEDICAMENTOS 1. Jacson Fantinelli Dos Santos 2, Tânia Maria De Souza 3.

O desenho e sua interpretação: quem sabe ler?

Quando o ideal de amor faz sintoma Sônia Vicente

Revista da ATO escola de psicanálise Belo Horizonte Topologia e desejo do analista Ano 3, n.3 p ISSN:

Resenha. Considerações sobre a teoria lacaniana das psicoses*

DISCUSSÃO AO TRABALHO DA INSTITUIÇÃO CARTÉIS CONSTITUINTES DA ANALISE FREUDIANA: A psicanálise: à prova da passagem do tempo

Tempos significantes na experiência com a psicanálise 1

ISSO NÃO ME FALA MAIS NADA! 1 (Sobre a posição do analista na direção da cura)

Latusa Digital ano 1 N 7 julho de 2004

O valor d osbjet. Sérgio de Campos 1

A ESSÊNCIA DA TEORIA PSICANALÍTICA É UM DISCURSO SEM FALA, MAS SERÁ ELA SEM ESCRITA?

QUANDO O ATO DISSOLVE A ANGUSTIA Maria Luiza Mota Miranda

7 Referências Bibliográficas

A política do sintoma na clínica da saúde mental: aplicações para o semblante-analista Paula Borsoi

Latusa digital N 10 ano 1 outubro de 2004

PROJETO EDUCAÇÃO SEM HOMOFOBIA SEXUALIDADE E A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO

Lacan com Spinoza: do sujeito do desejo ao ser do gozo do corpo

As Implicações do Co Leito entre Pais e Filhos para a Resolução do Complexo de Édipo. Sandra Freiberger

trois, à quatre, à cinq, e tutti quanti, isto é, de tantos quantos a turba julgasse Pai morto, pai amado Paulo R. Medeiros

NOME PRÓPRIO - EM NOME DO PAI

Os paradoxos do gozo. Elizabeth Tolipan

Conversações do VIII ENAPOL ASSUNTOS DE FAMÍLIA, seus enredos na prática Buenos Aires Setembro 2017

Tema: Quem fala na língua? : sobre as psicopatologias da fala Descrição baseada em: N. 15, 2004

A LINGUAGEM E O FUNCIONAMENTO DO DELÍRIO NA PSICOSE

A Pulsão e suas vicissitudes num relato de passe

O mais além do Édipo: o sintoma entre saber e verdade

De Freud a Lacan: um passo de saber sobre as mulheres!

I n s t i t u t o T r i a n o n d e P s i c a n á l i s e

SCILICET, O CORPO FALANTE. Bernardino Horne. Introdução

CEP -CENTRO DE ESTUDOS PSICANALÍTICOS. Curso de Formação em Pasicanálise. Ciclo IV 3ª Noite

A ESCRAVIDÃO. O DISCURSO DA LIBERDADE É MÍTICO

Ser o Sinthoma #07 A SATISFAÇÃO EM LALANGUE O ATO E O SIGNIFICANTE DA TRANSFERÊNCIA

Um tipo particular de escolha de objeto nas mulheres

Referência. Tradução: Fábio Luís Franco. LACAN, J. (1975). La troisième. Lettres de l École freudienne, n. 16, DO FALASSER

Em ato... Superfície e tempo

Toxicomanias: contra-senso ao laço social e ao amor?

Corpo da Imagem e Corpo Falante

52 TWEETS SOBRE A TRANSFERÊNCIA

FREUD E LACAN NA CLÍNICA DE 2009

Transcrição:

O eixo deste trabalho pode ser dado a partir da afirmação de J-A. Miller em SILET: a toda falha simbólica responde uma inserção imaginária. Ao dizer isto, Miller trabalhava o caso, descrito por Lacan no seu Seminário IV, de um exibicionismo reacional, induzido por um momento da elaboração simbólica tal que ela se repercute na análise e testemunha uma falha. A esta falha, a esse déficit simbólico responde esse comportamento que consiste a apresentar ao Outro anônimo uma imagem fálica... 1 Talvez possamos começar a desenvolver esta proposta pelo que nos diz Eric Laurent 2 : segundo Littré, o enigma é a definição de coisas em termos obscuros, mas que reunidos, designam exclusivamente seu objeto e são dados à adivinhar. Dentro da perspectiva do enigma, o ensinamento de Lacan pode ser dividido em três momentos: 1 - De início o enigma é abordado a partir do sentido e de sua fuga. Lembramos-lhes que, nesta fase Lacan desenvolvia sua teorização a partir da barra que mantinha separados significante e significado. Sua proposta girava em torno da possibilidade do simbólico recobrir todo o campo do imaginário, ficando o desejo como um X, um enigma que desliza metonimicamente a partir da significação produzida pela ação da metáfora paterna. 2 - Num segundo momento vemos Lacan deslocar o enigma do sentido para uma significação segunda, significação de significação, como nos diz Laurent. Desta forma o enigma passa a ser a significação produzida pela ação do significante, que é o objeto mesmo da comunicação. 1 Miller, J-A., Silet, Seminário 94-95, inédito. 2 Laurent, E., Enigme & Psychose, Revue de Psychanalyse, La Cause Freudianne, nº 23, pag. 43.

2 3 - Finalmente, a partir da revisão que Lacan faz de sua teorização do falo e do objeto quando retoma os conceitos fundamentais freudianos, é que vamos vê-lo se referir diretamente à experiência de gozo como sendo o verdadeiro enigma. No momento em que o sentido se ausenta do mundo, o sujeito é deixado vazio de significação, invadido por esta presença que é a experiência de gozo. Enigma fundamental para o ser falante, ele nada tem a ver com a liberação das alegrias do sexo 3. Este deslocamento, do sentido e sua fuga para a experiência do gozo, só foi possível à medida que Lacan foi, passo a passo, deixando de lado a formalização onde o simbólico se apresenta recobrindo todo o imaginário, a partir mesmo da barra do algoritmo S/s, para estabelecer que na relação do simbólico com o real o que está em jogo é um corte que deixa um resto. Ora, esta solução encontrada por Lacan e que vai estruturar, basicamente, a relação do sujeito e do objeto vai nos dizer que o que existe fundamentalmente é uma falta, que é efeito do significante e que à falta devido ao efeito mortificante do significante responde este elemento de vida, este elemento de gozo vivo que é o objeto pequeno a (...) que tem a necessidade, em Freud, do conceito de pulsão 4. Esta articulação do objeto a e pulsão é fundamental para darmos mais um passo que vai desembocar no conceito de falo, uma vez que é exatamente do lado deste conceito que está o complemento de vida a que faz alusão J-A. Miller na citação acima. Conceito que, desde a antiguidade, até nossos dias, se apresenta como a grande imagem do fluxo vital. Por isso Lacan pode dizer aqui, nos lembra J-A. Miller 5, que o vivo do ser do sujeito encontra seu significante no falo. 6 O paradoxo do falo se constitui exatamente no fato de ele ser, por um lado o que 3 Laurent, E. Déficit ou énigme in Revue de Psychanalyse, nº 23, ECF, pag. 3-4 4 Miller, J.A., Silet, seminário inédito, curso de 17/05/95 5 Idem, L interpretation, seminário inédito, curso de 28/02/96. 6 Cf. Lacan, J., in Écrits, Ed. Seuil, Paris, 1966, pag. 693.

3 está pressuposto significar a vida, mas, sendo um significante, há nele algo da morte. É, pois, o fato de ser o falo o significante da marca da conjunção do logos e do desejo, da morte e da vida, a marca da refenda do sujeito a partir da diferença que resulta da subtração do incondicionado da demanda à condição absoluta do desejo, o que vai estabelecer um campo feito para que aí se produza o enigma que a relação (sexual - pois ela é que vai ocupar esse campo fechado do desejo, é aí que ele vai jogar sua sorte) provoca no sujeito ao lhe significar de maneira dupla: retorno da demanda que ele suscita, em demanda sobre o sujeito do desejo... 7. No Seminário V: As formações do inconsciente, na lição do dia 05/03/58 8, Lacan vai trabalhar o que podemos chamar de vestimentas fálicas, roupagens com que se apresentam os sujeitos diante do real do sexo. Sabemos que o que vai caracterizar a posição perversa como recusa da mediação simbólica, ou até mesmo diante da falha no simbólico [S(A)], é uma extrema valorização da imagem: se trata de uma projeção disso que não se cumpriu na ordem simbólica, sobre o eixo imaginário 9. Para substancializar sua elaboração, Lacan busca na peça O Balcão de Jean Gênet subsídios para nos dizer da função da comédia através desta realização cênica onde o sujeito toma sua relação à fala não como sendo seu affaire, mas como algo que, ao se articular ele mesmo como aquele que aí goza,... está destinado a absorver a substância, a matéria. A conseqüência disto é que o seu próprio significado, ou seja, fruto da relação significante, vai surgir efetivamente sobre a cena da comédia plenamente desenvolvida (...) 7 Lacan, J., La signification du Phallus, in Écrits, Editions du Seuil, Paris, 1966 pag. 691 8 Lacan, J. Le séminaire V - Las formations de l inconscient. Inédito, lição de 05/03/58. 9 Miller, J. A. Silet op.cit., curso de 13/06/95

4 numa certa relação com a ordem significante (ou seja): a aparição desse significado que se chama falo. 10 Neste momento de sua elaboração teórica, Lacan atribuía a função de enigma, como dissemos no início, ao desejo como um x que desliza metonimicamente. Vamos lembrar-lhes que o falo, sendo o significante do desejo, é o que não pode ser atingido, porque o falo... é uma sombra (...) escorregando sempre entre os dedos 11. Em seu Seminário RSI, Lacan retoma esta temática do falo para nos dizer, mais uma vez, do seu caráter essencialmente cômico. Após dizer que no horizonte de um menos e de um mais onde se insere o gozo, ele assinala este ponto ideal que é o falo, a essência do cômico no ser falante: desde que se fale algo que tem uma relação ao falo, é o cômico - que nada tem a ver com o chiste. O falo é cômico como todos os cômicos - triste 12. Esta citação de Lacan se articula, a meu ver, com o que ele mesmo dizia 20 anos antes: A comédia, podemos dizê-la como sendo a representação do fim da refeição comunitária a partir da qual a tragédia mesma foi evocada 13. Este esforço para separar o cômico do chiste, já o sabemos desde Freud que, no seu texto O chiste e sua relação com o inconsciente já apontava que enquanto no cômico são os muitos elementos imaginários que provocam risos, exatamente por sua relação ao ridículo com que se apresentam nas mais variadas formas de comportamento, o chiste vai se distinguir por seu elemento linguístico. Podemos dizer que a intenção do chiste é, antes de tudo, produzir prazer 14 a partir de uma certa articulação significante que não deixa de inserir algo do enigma e sua resposta. Esta diferenciação entre o chiste e o cômico vai, também, nos auxiliar no acompanhamento do desenvolvimento da peça até o ponto 10 Ibidem. 11 Lacan, J., Hamlet in ORNICAR? nº 26/27, pag. 42-43. 12 Idem, RSI, Lição de 11/03/75 in ORNICAR? nº 5, pag. 17. 13 Idem, Les formations de l inconscient, Seminário V, inédito, lição de 05/03/58. 14 Miller, J-A., L interpretation, seminário 95-96, inédito, curso de 20/03/96.

5 em que ela culmina no desvelamento da inutilidade do uniforme fálico (O Bispo, O General e O Juiz) que os personagens utilizam. O próprio ato de castrar-se do indivíduo fantasiado de chefe de polícia cuja roupa era uma pantomina do falo), deixa claro que aquele que representa o desejo simples, o desejo puro e simples,(...) encontra seu assento, sua norma e sua redução a qualquer coisa que possa ser aceita como plenamente humana, e que só se reintegra à condição, precisamente, de se castrar, quer dizer, de fazer com que o falo seja qualquer coisa que seja, de novo, reduzida ao estado de significante... 15 Os enigmas, podemos arriscar dizer, não fazem referência à condição do falo ser um significante puro e simples, mas sim à letra, suporte material do significante, suporte, portanto, da interpretação e do que mantém a borda do buraco do simbólico. É este buraco que vai produzir a fuga do sentido ao furar o texto. Este furo, este buraco do simbólico que Lacan adjetiva de inviolável 16 tem, entre suas várias virtudes a de fazer enigmas mantendo o interesse pela escritura e conferindo um poder a quem sabe decifrá-lo 17 O falo, no entanto, enquanto tentativa de se pluralizar-se em imagens, nada mais do que o cômico, como demonstra o estudo que faz Lacan da peça de Jean Gênet e como, de alguma forma, nos diz o perverso quando expõe seu pênis ao tentar fazer frente à falta no Outro. Assim, do enigma ao cômico, vemos oscilar o paradoxo do falo que vai se traduzir nas mais diversas formas do que é o coração da relação do sujeito ao significante (...) a identificação 18. 15 Lacan, J., Les formations... Op. cit. lição de 05/03/96. 16 Lacan, J., RSI Op. cit. 17 Cf intervenção de Bernard Nominé no Seminário de J-A. Miller, curso de 20/03/96. 18 Miller, J-A., L interpretation Op. cit., curso 20/03/96.