FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, p. RESENHA

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Transcrição:

1 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 2004. 262 p. RESENHA Sueli Gehlen Frosi 1 A obra Vigiar e Punir é formada de quatro partes, a saber: Primeira Parte - Suplício, composto por dois capítulos: O corpo dos condenados e A ostentação dos suplícios; Segunda Parte Punição, composto por dois capítulos: A punição generalizada e A mitigação das Penas; Terceira Parte: Disciplina, composto por três capítulos: Os corpos dóceis, Os recursos para o bom adestramento e O panoptismo; e, Quarta Parte Prisão, composto por três capítulos: Instituições completas e austeras, Ilegalidade e delinquência e O carcerário. Ao final de cada parte há algumas páginas dedicadas a notas sobre os capítulos. No primeiro capítulo Foucault relata um esquartejamento. O suplício a que um condenado é submetido, é mostrado com riqueza de detalhes. Em 1757 o esquartejamento é prática legitimada e mostra um estilo penal. A rotina de uma prisão é mostrada pelo autor através do regulamento redigido para a Casa dos jovens detentos de Paris e é o que ele chama de um mecanismo de utilização do tempo do condenado. O suplício é a utilização do corpo. A partir daí, principalmente desde o século XIX os castigos foram vistos como escândalo e elaboraram-se projetos e códigos modernos, o que marcou uma nova era na justiça penal em grande parte do mundo. O corpo esquartejado, amputado, marcado desapareceu como espetáculo e como alvo principal da repressão penal. O que deve afastar o homem do crime é a certeza de ser punido e não mais o teatro cruel. A aplicação da pena a partir daí passa a ser procedimento burocrático, permitindo à justiça tomar uma certa distância e fazer crer que seu objetivo seria o de corrigir, reeducar, curar passando a execução da pena para outras instâncias. É a liberação dos magistrados do ofício de castigar. Desse tempo em diante passa-se a procurar métodos cada vez mais indolores e limpos para a execução das penas. A morte deve durar só um instante. O autor relata 1 Acadêmica do Curso de Bacharelado em Filosofia do Instituto Superior de Filosofia Berthier - IFIBE

2 o advento da forca e da guilhotina que permitem a morte do condenado de forma visível mas instantânea. O aprisionamento passa a ter um caráter punitivo mais sutil, na redução do alimento, privação sexual e masmorra. Se não há castigo sobre o corpo, o que se procura castigar para que o condenado expie sua dívida? Foucault responde de forma categórica. A pena é dirigida à alma. Deve contemplar instâncias profundas do sujeito: seu intelecto, sua vontade e suas disposições. É uma nova realidade incorpórea. O autor mostra a trajetória da justiça até hoje, de como a pena passa a ser ditada por profissionais da psiquiatria, da psicologia e da medicina. O crime propriamente dito não é mais julgado mas a alma do criminoso. Os profissionais dizem como o assassino se sentia quando cometeu o crime, qual o grau de periculosidade que ele representa para a sociedade, quais as chances de que se recupere e consiga ser reinserido na sociedade. A pena é aplicada por um juiz instruído pelos profissionais que lidam com a alma do condenado. Foucault surpreende quando denuncia uma tecnologia política do corpo. Segundo ele as revoltas nas prisões do mundo todo mostram que há mais de um século as revoltas acontecem contra o frio, sufocação, super lotação, fome, reclusão. O mesmo fenômeno acontece em prisões modelo contra os tranqüilizantes, o isolamento, o serviço médico ou educativo. O foco da revolta não está na brutalidade nem na assepsia, mas na materialidade do poder exercido sobre o encarcerado, o que não pode ser mascarado por meio de assistência especializada, limpeza e educação. No século XVIII as penas de morte eram parte considerável das penas em geral. Perdiam para banimento e multa. As penas mais sérias incluíam suplício. Uma pena para ser um suplício deve causar algum sofrimento. (...) a morte-suplício é a arte de reter a vida no sofrimento, subdividindo-a em mil mortes e obtendo, antes de cessar a existência, the most exquisite agonies. O suplício repousa na arte quantitativa do sofrimento (p.31). O que fica claro é o sofrimento com intensidade calculada e ritual para a marcação das vítimas do poder penal. Os excessos ficam por conta da economia de poder e da demonstração de triunfo da lei.

3 Filósofos, teóricos do direito, parlamentares e legisladores fazem parte, na metade do século XVIII, de protestos contra o supliciamento. É preciso que a justiça criminal puna em vez de se vingar com sangue. A humanidade do preso começou a ser levada em consideração como fronteira do poder de punir. A análise de Foucault passa a ser a apropriação do tempo do indivíduo, de como capitalizá-lo e transformá-lo em controle. A organização dos espaços é compreendida como capitalizadora do tempo e propicia a disciplina nas práticas coletivas: exército, escola e clínica. O sistema capitalista e corporativo apropria-se do corpo e do tempo do trabalhador, do doente, do soldado e do estudante. Do controle Foucault passa ao adestramento, ao poder disciplinar e suas técnicas. O sucesso disciplinar precisa de muito pouco: olhar hierárquico, castigo normalizador e uma combinação que é específica do castigo, o exame. A vigilância precisa do olhar. Os observatórios multiplicam-se e favorecem uma arte do visível para preparar o homem e sujeitá-lo, utilizá-lo. No acampamento militar o poder é exercido pela vigilância. A disposição das tendas, as filas, as colunas permitem uma rede de olhares que controlam uns aos outros e o monitor controla a todos. A visibilidade geral propicia o exercício do poder. As instituições passam a funcionar em arquiteturas planejadas para favorecer a vigilância, com planejamento de aberturas, transparências, vazios, passagens. O hospital se organiza assim para a ação médica que observa o doente e coordena os cuidados e impede o contágio. Assim a escola serve ao adestramento para obtenção de corpos vigorosos, obedientes e livres da devassidão, da homossexualidade. É preciso separar os corpos mas torná-los visíveis para observação. As latrinas têm meias-portas, com separações laterais. Não é possível ser visto pelas laterais, mas sim pela frente. É preciso punir levemente atrasos, ausências, desatenção, negligência, falta de zelo, grosseria, desobediência, tagarelice, insolência, gestos não conformes, sujeira, imodéstia e indecência. A punição pode ter a forma de pequenas humilhações e privações. Não atingir metas, como não gravar o catecismo, no caso da criança; não empunhar a arma corretamente, no caso do soldado, são ações passiveis de punição. O que determina a ação errada é a regra, isto é, a regularidade, o normal. O sistema trabalha com a lógica gratificação-sanção para o

4 sucesso do treinamento e da correção. Portanto, o sistema assim posto hierarquiza numa relação mútua dos bons e dos maus. O que aparece é o poder da Norma. A regulamentação é o grande poder no fim da era clássica. A regulamentação obriga à homogeneidade mas permite ver o desempenho individual para medir os desvios, tornar úteis as diferenças. Nos hospitais o ritual da visita é o aparelho mais visível do exame. No século XVIII os horários de visita dos médicos e sua duração (duas horas) tornam-se rotina. O médico residente coloca o doente em situação de visibilidade e exame perpétuos. O médico substitui o religioso e o torna subordinado, aparece o enfermeiro e o hospital passa a funcionar como um local de aperfeiçoamento científico. É o poder na constituição de um saber. A escola é aparelho de exame ininterrupto através da comparação de um com todos, a fim de medir e sancionar. Ao mesmo tempo em que o mestre transmite seu saber ele levanta um campo de conhecimentos a respeito dos alunos. A escola é o local de elaboração da pedagogia que passa a ser ciência. O exame coloca os indivíduos num campo de vigilância contínua, a uma visibilidade obrigatória. Os saberes são adquiridos através da observação. Assim aconteceu na medicina que aprendeu com os hospitais, na pedagogia que aprendeu com as escolas, na psiquiatria e psicologia que aprenderam com os loucos, as mulheres histéricas, etc... Cada individuo é um caso passível de ser mensurado, medido, comparado e, é passível de ser treinado, classificado, normalizado. Foucault conclui: Como o modelo coercitivo, corporal, solitário, secreto, do poder de punir substitui o modelo representativo, cênico, significante, público, coletivo? Por que o exercício físico da punição(e que não é o suplício) substituiu, com a prisão que é seu suporte institucional, o jogo social dos sinais de castigo, e da festa bastarda que os fazia circular? Ao entrar no campo da disciplina Foucault fala de docilidade. Os métodos que permitem o controle do corpo, que o sujeitam constantemente é chamado disciplina. Processos disciplinares existiam, mesmo antes dos séculos XVII e XVIII, nos exércitos, nos conventos e nas oficinas, mas após isso, tornaram-se fórmulas de dominação. Não podem ser chamadas de escravidão nem de domesticidade, nem de

5 vassalidade, nem de ascetismo do tipo monástico, mas uma arte do corpo humano. O que essa arte visa é a formação de uma relação que torna o corpo mais obediente e mais útil na mesma proporção. Faz do corpo uma aptidão, uma capacidade que a disciplina procura aumentar. Esse processo se deu de forma lenta. Começou nos colégios com adolescentes, mais tarde com crianças, entrou nos hospitais e mais tarde no exército. A disciplina descrita por Foucault é uma nova micro-física do poder e trata do que é minúsculo, das pequenas coisas do cotidiano. O autor mostra-nos como se dá a distribuição dos indivíduos no espaço: encarceramento dos vagabundos, o internamento em colégios, formação de quartéis. Obedece ao critério de cada indivíduo no seu lugar e em cada lugar um indivíduo, evita formação de grupos, controla as presenças e ausências, sabe onde está o indivíduo, enfim, conhece, domina e utiliza. Um dispositivo da disciplina é a arquitetura e a religião. A cela dos conventos é sempre nos fundos, a solidão é necessária para o corpo e a alma para que se confrontem com Deus e evitem a tentação. Nos hospitais são todos cadastrados, separados, vigiados, esquadrinhados para a utilidade da medicina; nas fábricas a distribuição dos postos e a arquitetura permitem a vigilância tanto coletiva como individual e constata a freqüência, a habilidade e rapidez e consegue caracterizar, apreciar, contabilizar e transmitir. No século XVIII a repartição dos escolares segundo a idade, aptidão, desempenho, comportamento, mostram um movimento perpétuo onde um substitui o outro num espaço serial. A escola é uma máquina de ensinar, de vigiar, de hierarquizar e de recompensar. Com relação ao horário Foucualt mostra como é garantida a qualidade do tempo: controle contínuo, pressão dos fiscais, afastamento do que possa distrair para que o tempo seja integralmente útil. A vigilância se apóia em relatórios destinados aos membros da hierarquia, devendo constar nome, idade, sexo. A hierarquia tem o controle dos cuidados a que são submetidos os indivíduos em caso de peste numa cidade. Trata da quarentena, cuidados médicos, localização dos indivíduos, os exames dos vivos, doentes e mortos. É a ordem que estabelece a cada um seu lugar, a cada um seu corpo, a cada um sua doença e sua morte.

6 O panóptico de Benthan é a arquitetura da composição da disciplina, da utilização dos corpos, da apropriação do tempo. É a construção em forma de anel; no centro uma torre de vigia; as janelas se abrem para a parte interna do anel; na área circular há a construção de celas com duas janelas cada uma: uma que dá para o interior e outra para o exterior; nas celas coloca-se um louco, um doente, um condenado, um operário ou um estudante. Cada cela é perfeitamente visível da torre. Na torre há um vigia que pode estar ali ou não. Da cela é impossível saber do vigia, fazendo com que seu ocupante se comporte como se lá estivesse. A visibilidade é uma armadilha. O panopticismo induz no detento a consciência de estar sendo vigiado o que aciona automaticamente o poder do qual o detento é o portador. Ele não sabe se está sendo vigiado mas, isso não importa, o que importa é que ele saiba que pode estar sendo vigiado. O que vê tudo não pode ser visto. Assim não é preciso recorrer à força para que o condenado se comporte bem, o louco se acalme, o operário trabalhe, o escolar se aplique, o doente se medique segundo as receitas. As casas de segurança são inúteis com este método pois, quem se pensa vigiado faz o poder funcionar sobre si mesmo espontaneamente. A prisão é vista por Foucault como o coroamento do processo que torna os indivíduos dóceis e úteis. No fim do século XVIII e começo do século XIX a pena de detenção é formalizada. Por prisão entende-se pena das sociedades civilizadas. Até hoje não sabemos o que colocar no lugar da prisão caso ela se extinguisse. A sabemos inconveniente, perigosa e inútil. A prisão tem caráter igualitário pois a perda da liberdade, assegurada a todos, penaliza a todos da mesma forma. É possível quantificar a pena, há pagamento de salário ao detento e é vista como uma reparação. Ao tirar o tempo do condenado dá-se satisfação à toda sociedade que foi lesada pelo crime. Ao pagar a dívida o condenado acaba por tornar a prisão algo natural. A prisão deve tomar do indivíduo todas as suas prerrogativas: treinamento, aptidão, comportamento, atitude moral e disposições, em uma tarefa ininterrupta de disciplina. Impõe-se a ele o isolamento, pois a solidão é a condição primeira para a submissão. O trabalho penal deve ter regularidade e ordem e sujeitar os corpos a movimentos regulares, longe da agitação e da distração. Necessita de vigilância

7 constante por se tratar de produzir indivíduos mecanizados a exemplo da sociedade industrial. É a requalificação do ladrão em operário, em indivíduo-máquina. O encarceramento mais do que substituir o suplício é um dispositivo que não diminui a delinqüência, pelo contrário provoca reincidência. A prisão não devolve à sociedade indivíduos corrigidos, mas mais perigosos do que eram. Para Foucault o sistema carcerário consegue tornar natural e legítimo o exercício da punição, acaba com os exageros do castigo, porém, dá legalidade aos mecanismos disciplinares. As punições legais podem ser infligidas pelo poder sem que isso seja visto como excesso e violência. É preciso tornar o poder de punir tão discreto quanto possível. O carcerário torna natural o poder legal de punir, assim como legaliza o poder técnico de disciplinar, realizando a grande economia do poder. Há cada vez mais dificuldade em julgar. Há também vergonha em condenar. Os juízes medem, avaliam, diagnosticam e reconhecem o que é normal. Os juízes têm apetite por medicina, apelam a psiquiatras, médicos, psicólogos evidenciando que há uma certa obediência à lei, o resto é poder normativo. A onipresença do dispositivo da disciplina mostra que o poder normativo é uma das funções mais importantes da sociedade. A rede carcerária foi e é o apoio do poder normalizador.