SÓ TE AMO ATÉ TERÇA-FEIRA Rosa Luna Romance Jo Nesbø Tradução de Maria João Freire de Andrade
1 O COMEÇO DO AMOR
Quando coloquei o meu perfil falso no Facebook foi uma forma de te atrair. Claro que a minha ignorância não me fez prever que seria necessário um pedido de amizade e uma aceitação tua. Não sou grande adepta das redes sociais, são montras de ego: por que carga de água é que as pessoas se exibem daquela maneira e têm frisos com fotografias em poses distintas? Seria incapaz de tamanha ousadia. Sou uma pessoa resguardada, a exibição não me é necessária. Por isso, fico fascinada a ver no Facebook a quantidade de informação que as pessoas debitam para ali. Será solidão? O meu caso estava preso aos mistérios amorosos, por isso qualquer desculpa era válida. E tu irias aceitar o meu pedido de amizade porquê? Por sermos da mesma empresa, foi o que pensei e, no fim, talvez tenha sido essa razão que te levou, nove dias depois, a adicionares-me a uma lista cheia de gente que eu desconhecia e gente que conhecia da televisão ou das revistas. Como calculas, só me atrevi a carregar naquela imagem do polegar para cima que equivale a dizer que gosto e a entender, vendo o que lá colocas, quais são as coisas que te prendem a atenção. Foi assim que descobri música e 11
Rosa Luna livros de que nunca ouvira falar. A quantidade de informação que os teus amigos me forneceram? Nem imaginas. Tesouros, autênticas preciosidades para quem está apaixonada, posso garantir. Fui-te colecionando através do computador, compondo a tua figura e, muitas vezes, fazia uma lista. Sim, uma lista para ter a certeza de que correspondias a tudo o que a minha imaginação queria para mim. Tudo o que sonhei a brincar às bonecas, a fingir que eram todas uma família feliz e que tudo corria bem. Um homem honesto, com um sorriso fácil, leal aos seus amigos. E, por isso, era com enorme orgulho que verificava e ainda verifico que todos os dias, mesmo as pessoas mais distantes ou que não pensas conhecer, se calha a fazerem anos, lá vais tu colocar um simpático «Parabéns» com ponto de exclamação e tudo. Tens essa gentileza. Deves pensar que se aceitaste determinada pessoa, tens de cumprir os mínimos de educação. Não podia estar mais de acordo. A minha parte favorita, contudo, é o álbum de fotografias que tens visível para quem é teu amigo no Facebook: em fato de banho com uns amigos, com o teu avô, com uns colegas da faculdade, com fraldas, com a tua irmã, com três raparigas que desconheço. Fiz um esforço imenso para não ter em consideração estas raparigas, sabes? Não julgues que sou idiota ao ponto de achar que em pleno século XXI iria encontrar alguém que tinha esperado pela sua alma gémea. Nos dias que correm, a alma gémea está desvalorizada, e eu, romântica incurável, sou constantemente acusada de viver acima das nuvens. Não é um mau sítio para viver, deixa-me que te diga, nas nuvens podes sonhar o que quiseres, e com a tua página do Facebook aberta no computador passei muitas horas a sonhar, a perceber quando 12
Só Te Amo até Terça-Feira estavas ligado e, sim, a descobrir os teus planos para festas, jantares e outras coisas. Além disto, que pode parecer pouco apesar de me ter enchido dias e dias, sobretudo ao fim de semana, especializei-me a ouvir os diferentes clips de vídeo musicais que colocas no teu mural. Comecei a perceber o teu estado de espírito a partir daí. Ri-me com os posters a dizer «o cérebro é maravilhoso, todos devíamos ter um» e outras coisas. Algumas conversas, confesso, nunca compreendi totalmente, deve ser por isso que os amigos estabelecem códigos. Não sei. Mantiveste sempre o chat desligado durante este tempo todo, disseste, mais tarde muito mais tarde que os chats podem ser viciantes e que tens de trabalhar. Eu compreendo, mas a verdade é que os chats são uma receita maravilhosa para combater a solidão. Se te contar as vezes que fiquei deitada no sofá com o computador a vegetar e a ver coisas cujo interesse até pode ser nulo mas que cumpriam a função de me acompanhar, és capaz de achar estranho. Enfim. As pessoas fazem coisas estranhas. Deixemos isso. As tuas amigas são todas bem-parecidas. Os teus amigos parecem saídos de revistas. Talvez sejam, ou melhor, alguns são mesmo. Não imaginas a tortura que foi para mim quando tive de escolher uma fotografia para o meu perfil. Adotei um truque que algumas pessoas consideraram mórbido: uma fotografia de uma radiografia para elogiar a transparência. Ridículo, não achas? Pois, todas as minhas imagens me pareciam menores, umas porque o sorriso está torto, outras porque a roupa não me favorecia e por aí adiante, numa cadeia de desculpas que terminou na tal radiografia que assustou algumas pessoas. Houve mesmo quem insistisse em que mudasse, mas depois houve uma moda de colocar no perfil fotografias das paisagens 13
Rosa Luna prediletas, e eu, digamos que me safei. Uma coisa é certa: para mim, nas nuvens ou em terra, estava devotada a idolatrar-te e se isso tivesse de ser feito de forma virtual, nada mais me restava do que aceitar. Assim como tu aceitaste o meu pedido de amizade. Desculpa tratar-te já por tu, mas a verdade é que o meu coração explodiu quando me foste apresentado, na sala de reuniões, o filho do dono da empresa, agora responsável pela área de recursos humanos. Ao fim destes três anos, depois de ter pedido transferência da contabilidade para a área que governas dentro da empresa, depois de sorrisos e até de duas prendas de época festiva que deixei, anonimamente, na tua secretária à socapa achei que as redes sociais podiam ajudar a uma aproximação. Não tive muita sorte no início, mas lá consegui furar um pouco da tua carapaça e entrei num espaço que, sendo virtual, ainda coloca muito à vista aquilo que somos ou, pelo menos, aquilo de que gostamos. Talvez esteja a contar tudo depressa de mais e possamos regressar ao princípio, já que existem pedaços da nossa relação que tu claramente apagaste da tua memória. Faremos então essa viagem juntos até àquele dia em que, num post it amarelo, novinho em folha, te escrevi: Só te amo até terça-feira. Queres que comece? Um homem bem vestido é uma raridade, pelo menos aqui, numa empresa enorme, um dinossauro das telecomunicações, onde as mulheres são vistas como as que trabalham muito, mas também se queixam bastante. Todos os dias, a Adília, por exemplo, começa por dizer que não dormiu, as insónias outra vez. A Maria João começa logo a debitar mezinhas sobre como um 14
Só Te Amo até Terça-Feira banho acalma as crianças e tal e parece que é sempre o mesmo filme todos os dias. Há variantes, claro. A Adília teve uma manhã de choro que fez com que a Maria João e a Margarida, sempre mais reservada, lhe oferecessem lenços de papel, e até eu ouvi a história com atenção. Não era uma boa história, mas tu não a sabes, por isso é melhor contar-te, pode ser que valorizes a Adília quando te cruzares com ela. Há já uns dias que ela andava enjoada. Foi ao médico e descobriu que estava grávida. Quando regressou a casa, na viagem de metro, foi pensando os vários cenários possíveis. Uma criança não estava nos planos dela e do Miguel, era um inesperado, mas essas coisas acontecem, logo talvez fosse de aproveitar. A Adília reviu a sua história com o Miguel, o mesmo que há dois meses estava numa empresa de mudanças e depois se transferiu para um armazém de uma grande superfície e que ela conhecera no café lá da rua. Amigo de um amigo de infância. Conclusão? O Miguel não disse nada quando foi informado sobre a boa- -nova e, sem que a Adília percebesse exatamente como, apareceu com um saco e disse que não queria ter filhos, abriu a porta e saiu. A desgraçada não podia acreditar e tão-pouco correr para os braços da mãe, porque não a tem. Restámos nós, as colegas da empresa. O dilema da Adília, em resumo, era: fico ou não com a criança? Sendo que nenhuma de nós teve de dizer fosse o que fosse, porque ela já decidira ser mãe solteira. Maldissemos o Miguel e a irresponsabilidade da criatura. A Margarida até disse que falaria com a chefe, de forma a encontrarmos um advogado para ajudar com os procedimentos legais. Portanto, podes ver, que o clima de trabalho, apesar de algumas confusões, era bom e até de absoluta confiança. Evidentemente que a minha paixoneta por ti nunca foi alvo de conversa. Nem era preciso. 15
Rosa Luna Por isso, dizia eu, um homem bem vestido, para mais perfumado e com um rosto quase perfeito, fez com que todos nos calássemos de imediato, mulheres e homens. A Adília até comentou que afinal «aquilo é que é um homem, não era o tipo que eu tinha lá em casa». Confesso, o comentário chocou-me, ligeiramente, e acrescentei que era o pai do filho dela e, fosse como fosse, era melhor treinar-se mentalmente para não maldizer o indivíduo (por esta altura já só o tratávamos assim: «o indivíduo»), não fosse traumatizar a criança. Mas deixemos isto. A Rosário, chefe dos chefes, a tal que é secretariada pela Margarida, fez um discurso muito amistoso para te dar as boas-vindas, um discurso um pouco irritante, aqui entre nós, sobre a necessidade de abrir horizontes e novos negócios, a internacionalização e a competição especializada e, desfazendo-se em sorrisos e gestos afetados, apresentou-te. Diogo Vargas, filho do nosso presidente, mas não é por isso que aqui está. Acabou de chegar de Inglaterra, tem um currículo académico extraordinário e, como podem ver, é simpático. Quase posso jurar que suspirou no final da frase, mas seja como for, a verdade é que rematou o seu discurso, a Rosário, cheia de sabedoria e desfazendo-se, novamente, como se fosse manteiga. Isso foi visível para todos os que estavam na grande sala de reuniões e comentado a seguir entre risos e outras maldades. Tu não tinhas aberto a boca, e eu não percebi de imediato onde estava a tal simpatia de que falava a Rosário, mas deixei passar, podia simplesmente acreditar nela. Estava, por essa altura, fixa no teu rosto. Ao mesmo tempo, as minhas mãos suavam, não conseguia desviar o olhar, estava colada a ti como um 16
Só Te Amo até Terça-Feira quadro à parede e todo o meu corpo reagia de forma estranha. Tu parecias uma aparição de outro mundo. Nem mais nem menos. Tentei rever o meu aspeto: o fato azul escuro, riscas roxas, camisa branca com um laço, nada muito excessivo, meias de vidro, sapatos de salto curto. Deveria ter ido ao cabeleireiro. Não estaria mal de todo, quer dizer, sei que tenho dois palmos de cara e que me posso produzir o suficiente para que me notem, apesar disso ir ao cabeleireiro, além dos sessenta euros para fazer nuances, consumia então o tempo e o ouvido. Sim, porque a Rosa Maria, a minha irmã, estava sempre pronta a fazer um desconto, claro, mas sempre a falar, a falar, a falar. Ora sobre o futebolista, ora sobre o cancro do ator X ou o casamento falhado de uns outros que há dois meses tinham aparecido numa revista a dizer que o amor deles era único, era para sempre, uma dádiva dos deuses. Mas estou a desviar-me, tendência que me parece natural, porque toda a vida andei em desvios, embora não da melhor espécie. Olhava para ti, impecável, mais de um metro e oitenta sempre odiei homens baixos, fazem-me lembrar o meu primeiro namorado e não queremos ir para essa história, tu num fato de executivo de corte impecável, quem sabe se italiano ou coisa que o valha. Uma fortuna de fato, sem dúvida. Mais tarde, soube que tinhas tudo o que para mim quer dizer riqueza, como uma família de palavras, na escola em plena quarta classe: o carro com capota, o apartamento no último andar de um prédio com portaria, um prédio com piscina e spa, uma vivenda na zona do Algarve, diferentes viagens pelo mundo e mais uma centena de pormenores que fui colecionando como uma maníaca. Começou tudo na reunião, e, embora o desmintas, não me viste, nem ao suor a acumular na minha testa, as mãos nervosas 17
Rosa Luna debaixo da mesa. Toda eu tremia. Pode parecer piroso e se for, paciência, mas os meus pés levitavam e eu olhava para ti pronta para dizer «sim». Não estou a exagerar: vi, ali diante dos meus olhos, o nosso casamento, o meu vestido, os teus braços na minha cintura e o tal beijo que, como nos filmes, me faria levantar ligeiramente a perna. Seria a tua princesa. A fantasia não terminou aí, mas fiz um esforço para me concentrar no teu discurso, aliás curto, que me encheu de orgulho por já te considerar meu. 18