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Transcrição:

Tempo, trabalho e dominação social, um importante livro de Moishe Postone 1 Denis Collin Moishe Postone, Temps, travail et domination sociale, edições Mille et une nuits, 2009, traduzido do inglês por Olivier Galthier e Luc Mercier (primeira edição americana, 1993), eis um livro importante enfim acessível aos leitores francófonos. Postone propõe uma reinterpretação de Marx, em oposição radical com o marxismo tradicional, apoiando-se em uma leitura atenta dos Grundrisse e do Capital, especialmente o livro I, primeira seção - consagrada à mercadoria - e seção IV. Diferentemente dos intérpretes que usam os Grundrisse conta O Capital (Negri por exemplo), e dos que se ocupam do Capital deixando de lado os Grundrisse (coisa que eu, sem dúvidas, tenho muito me inclinado a fazer), Postone propõe uma leitura conjunta dessas duas obras, tomando os contornos que são os Grundrisse como chave interpretativa do O Capital. Postone se inscreve na longa fila (agora) desses que querem desvincular Marx do fardo do marxismo, não para libertar o verdadeiro Marx, não para fazer um retorno a Marx, mas para trazer à luz uma leitura fecunda daquele que Michel Henry chama de um dos maiores filósofos de todos os tempos. Moishe Postone parte da crítica dos pressupostos do marxismo tradicional e é isto que constitui o objeto de sua primeira parte. Para resumir sua proposta, dois extratos abaixo: O marxismo tradicional substitui a crítica marxiana dos modos de produção e de distribuição por uma crítica do modo único de distribuição, e substitui sua teoria da auto abolição do proletariado por uma teoria da auto realização do proletariado. A diferença entre as duas formas de crítica é profunda: aquilo que na análise de Marx é o objeto essencial da crítica do capitalismo se torna o fundamento social da liberdade para o marxismo tradicional (p.110). Ou ainda: Para Marx, a abolição do capital é a condição necessária da dignidade do trabalho porque é apenas assim que uma outra estrutura do trabalho social, uma outra relação entre trabalho e lazeres e outras formas de trabalho individual poderão se tornar socialmente generosos. A posição tradicional dá dignidade ao trabalho fragmentado e alienado. É bastante possível que uma tal dignidade, que se encontra no coração dos movimentos operários clássicos, tenha sido um elemento importante para a autoestima dos trabalhadores e que ela tenha constituído um poderoso fator de democratização e de humanização das sociedades capitalistas industrializadas. Mas a ironia dessa posição é que ela impõe implicitamente a perpetuação de um tal trabalho e da forma de crescimento que lhe é ligada como necessários à existência humana. (pp.112-113) Essa inversão do marxismo tradicional tem consequências decisivas que Postone explorará na sua terceira parte e na sua conclusão. A primeira é que a filosofia de Marx não é uma concepção trans-histórica da história universal, mas uma teoria do modo de produção capitalista e de suas contradições, e apenas isso. A segunda é de que o proletariado não é o sujeito da história, o único sujeito é o capital enquanto forma de relações sociais eminentemente contraditórias; a terceira, enfim, reside na possibilidade de fazer de Marx uma arma de guerra contra as teorias do crescimento e, portanto, contra o marxismo 1 Tradução de Jamile Gonçalves e revisão de Jorge Nóvoa.

produtivista do desenvolvimento ilimitado das forças produtivas, sem para tanto avalizar as teses do decrescimento que se situam na mesma problemática (falsa) que aquilo que elas pretendem combater. O marxismo tradicional, ao se colocar ao lado do trabalho permanece finalmente nas formas de consciência alienada que são aquelas que produzem a relação capitalista. Não é, portanto, surpreendente. Num segundo momento, Postone mostra que, a despeito de esforços louváveis, os teóricos da escola de Frankfurt não chegam a abandonar o time do marxismo tradicional. Há uma exceção, entretanto: Marcuse (cf. p.134) sobre quem Postone faz uma interessante referência: A superação do trabalho alienado como condição da emancipação se encontra no centro do pensamento de Herbert Marcuse, que foi um dos primeiros a reconhecer a importância tanto dos Manuscritos de 1844 quanto dos Grundrisse. Como se negligencia frequentemente a dimensão histórica da análise de Marcuse, atribui-se a essas posições um grau de romantismo mais elevado que não corresponde à realidade (p.556) Postone mostra que a tentativa da «teoria crítica» de superar os limites do marxismo tradicional falha porque seus pressupostos não são verdadeiramente questionados da forma devida. A viravolta pessimista de Pollock ou de Horkheimer se explica pelo fato de que, analisando o desenvolvimento do capitalismo burocrático e da racionalização crescente da vida em sociedade, em uma ótica que teve origem na sociologia de Weber, eles chegam a pensar que as contradições entre proletariado e burguesia não são mais portadoras de um potencial emancipatório a classe operária viria a ser integrada ao sistema capitalista. Segundo Postone, quanto mais os pensadores da teoria crítica têm razão de pôr em questão os impasses do marxismo tradicional na análise das sociedades capitalistas pós liberais, mais eles se enganam no aprofundamento da compreensão que eles têm de Marx, ficando prisioneiros justamente dos ensinamentos do marxismo tradicional. A terceira parte diz respeito à reconstrução da teoria marxiana. Trata-se de capturar a lógica muito paradoxal do capital. E por isso compreender o que é verdadeiramente a especificidade das sociedades dominadas pelo modo de produção capitalista: Uma das características do capitalismo é que suas relações sociais fundamentais são sociais de uma maneira muito particular. Elas não existem enquanto relações abertamente interpessoais, mas como um conjunto quase independente de estruturas que se opõem aos indivíduos, como uma esfera de necessidade objetiva impessoal e de dependência objetiva. Em consequência, a forma de dominação social própria ao capitalismo não é abertamente social e pessoal... (p.188) Ou ainda, de maneira mais resumida, Postone diz: A dominação objetiva, abstrata, impessoal, própria ao capitalismo está, ao que parece, intrinsecamente ligada à dominação dos indivíduos pelo seu trabalho social (p. 189) Que está lá a questão central da dominação no modo de produção capitalista, o sabe quem tiver lido seriamente o Capital. E quando Marx quer definir os objetivos sociais gerais, que ele resume adiante sob a alcunha comunismo, ele afirma: A liberdade não pode consistir em nada além de: os produtores associados o homem socializado regulam de

maneira racional suas trocas com a natureza e lhes submetem ao controle comum no lugar de serem dominados pelo poder cego dessas trocas; (O Capital, livro III, conclusão) Eu analisei em outro momento esse texto (ver notadamente a conclusão do livro III de O Capital) sobre o qual Postone se estende, ele também, em termos bastante próximos aos meus. O problema é então compreender como os homens podem estar submetidos a relações sociais que são o produto da sua própria atividade. Postone sublinha o caráter inédito dessa situação na história humana. Nas sociedades antigas, a escravidão na antiguidade ou o feudalismo, a dominação é uma dominação pessoal, clara e pensada como tal e para a qual é preciso encontrar acima de tudo toda sorte de justificativas. O escravo é dominado pelo seu mestre, o servo pelo senhor etc. No modo de produção capitalista, a dominação é abstrata. Ora, essa dominação abstrata só é compreensível se compreendermos o que é a categoria de valor. Recaímos aqui sobre as mais que velhas discussões sobre a leitura do Capital e a compreensão exata do significado de sua ordem de exposição. Quem leu o Capital o sabe: Marx não começa nem pelo trabalho, nem pela produção, nem por nada daquilo que se constitui o abecedário do materialismo histórico. Ele começa pela mercadoria, célula da sociedade burguesa, e, ademais, ele começa por uma série de desenvolvimentos que fazem invariavelmente pensar na teoria hegeliana da medida, um método sobre o qual Marx, no prefácio à segunda edição alemã, diz ser uma espécie de coquetismo com Hegel. Mas para além do velho, muito velho, assunto da referência de Marx a Hegel, trata-se de uma outra coisa muito diferente de um coquetismo sobre esse ponto, Postone conseguiu me convencer, uma vez que eu mantinha uma posição muito ambígua no meu livro sobre La théorie de la connaissance chez Marx. Vejamos mais precisamente o problema. Há uma primeira leitura que faz da análise da mercadoria uma exposição das bases de uma sociedade pré-capitalista, os livres produtores trocando seus produtos no mercado (segundo o famoso esquema M-D-M). Após, Marx mostraria como passamos dessa circulação simples de mercadorias à circulação de capital (D-M-D ). Em suma, a ordem de exposição do Capital seria uma ordem histórica: 1) os produtores independentes e a circulação de mercadorias; 2) a expropriação dos produtores independentes e a dominação dos capitalistas; 3) se tudo correr bem, a expropriação dos expropriadores. Existem razões suficientes, na leitura do Capital e dos textos que lhe precedem para entender que esta leitura é equivocada. A segunda leitura é aquela proposta por Althusser notadamente na introdução que ele escreve para a publicação da editora Flammarion do livro I de O Capital. Essa primeira seção seria por demais hegeliana, é preciso saltá-la e eventualmente retornar a ela depois, porque o essencial estaria na análise do modo de produção, sendo o conceito de modo de produção o núcleo do marxismo como ciência. Essa segunda abordagem teve o mérito de mostrar que alguma coisa não se encaixava na intepretação tradicional do problema. Mas recai por sua vez na mesma incompreensão do método de exposição adotado por Marx. A forma da mercadoria não deve ser concebida como uma forma trans-histórica. É preciso, ao contrário, partir de seu pleno desenvolvimento dentro do modo de produção capitalista para captar sua essência. E é a partir dela que podem ser explicadas características determinantes do capital. Essa forma só pode atingir seu pleno

desenvolvimento dentro de uma sociedade onde domine, não mais o trabalho em geral, mas o trabalho abstrato. Postone implica a essa noção de trabalho abstrato uma fundamental importância ao destacar o quanto ela se opõe à noção de trabalho em geral. O marxismo tradicional não considera o trabalho dentro do modo de produção capitalista como diferente essencialmente do trabalho nas outras formas de sociedade, ele visa apenas a mostrar que ele é a verdadeira fonte do valor e a lhe restituir o seu lugar. É essa concepção que Postone transverte. Ele mostra em seguida como esse trabalho abstrato institui um outro tipo de tempo, um tempo abstrato. Encontraremos numerosas considerações apaixonadas sobre as relações entre tempo abstrato e tempo histórico ou ainda sobre as formas de consciência que lhe são ligadas. Daí Postone passa a um exame crítico minucioso das teses de Habermas, notadamente as tais que são expostas no Connaissance et intérêt e em Théorie de l agir communicationnel. A última parte, seguindo a reconstrução da crítica marxiana, se interessa pela trajetória do capital. Trata-se de mostrar onde reside a contradição fundamental. E então Postone parte daquilo que deveria ser bem conhecido de todos os leitores de Marx: o trabalho não é a única fonte de riqueza, e riqueza e valor não podem ser confundidos. Ainda, é a característica excepcional do modo de produção capitalista que deve ser sublinhada: o capitalismo marca uma ruptura qualitativa com todas as outras formas históricas de vida social. (p.398) A contradição fundamental é a seguinte: no modo de produção capitalista, a riqueza se identifica com o valor e a grandeza do valor é somente função do dispêndio de trabalho enquanto medido por uma variável independente (o tempo abstrato) (p.425). Ora, a dinâmica da produção de valor impulsiona para o aumento da produtividade do trabalho (o que Marx analisa como mais-valia ou sobrevalor relativa). Mas ao final, a elevação da produtividade, apesar de proporcionar uma vantagem temporária à fração do capital que se beneficia dela, não aumenta a grandeza do valor. Se se produz duas vezes mais lona em uma hora, o valor do metro da lona simplesmente diminuiu pela metade! Basta, de todo modo, diga-se de passagem, partir desse raciocínio para compreender o fundo da atual crise de modo de produção capitalista, o que evitará que se passe o tempo a correr atrás de fantasmas, da especulação, dos especuladores, dos subprimes, etc., vez por outra trazidos à tona como responsáveis pela crise. O aumento de produtividade aumenta a riqueza, mas não o valor. A dinâmica mesma do capitalismo faz erodir a base sobre a qual repousa o capitalismo. Postone insiste: se evidentemente o antagonismo proletários/capitalistas joga um papel central, não é a partir desse antagonismo que pode sair uma perspectiva de inversão do modo de produção capitalista. A razão é a seguinte: A luta de classes e o sistema estruturado pela troca de mercadorias não se repousam sobre princípios opostos; esse tipo de luta não representa uma perturbação dentro de um sistema, para além disso, harmonioso. Ela é, ao contrário, inerente a uma sociedade constituída pela mercadoria como forma totalizante e totalizada. (p. 466) Proletários e capitalistas existem apenas na sua relação recíproca, no fundo como os dois polos dessa forma genérica que é o capital. O capital não pode ser abolido se não for abolido aquilo que o produz, o dito trabalho abstrato, ou seja o trabalho assalariado que é

fonte do valor. E desse ponto de vista, as formas precisas da propriedade são bastante indiferentes. O marxismo tradicional, que vê a sociedade socialista como uma sociedade de trabalhadores assalariados por um único empregador, o Estado, permanece então adequado à estrutura de submissão à lei do valor e, portanto, ao trabalho alienado. Igualmente, a contradição não é entre forças produtivas cuja dinâmica própria, fundada sobre o trabalho e a cooperação, entrariam em contradição com as relações de produção. As relações de produção, segundo a teoria de Marx, não são absolutamente exteriores às forças produtivas. A ideia de que o socialismo liberaria forças produtivas contidas pela propriedade privada dos meios de produção não tem, muito menos ela, nenhuma relação direta com o pensamento de Marx (tal como ele se exprime em O Capital). Segundo a teoria crítica elaborada por Marx, abolir o cego processo acelerado de crescimento econômico e de transformação socioeconômica sob o capitalismo, assim como a natureza portadora de crises desse processo, exigiria a abolição do valor. Ultrapassar essas formas alienadas implicaria necessariamente em estabelecer uma sociedade fundada sobre a riqueza material, uma sociedade onde o aumento da produtividade conduziria a um aumento correspondente da riqueza social. Seria necessário igualmente evocar os longos desenvolvimentos que Postone consagra à produção industrial e ao tipo de divisão do trabalho que ela pressupõe. Ele termina de esquematizar essa teoria das forças produtivas neutras e de uma divisão técnica do trabalho que poderíamos separar da divisão social do trabalho e das formas de alienação. A que tudo isso conduz? A alguns eixos de reflexão fundamentais. O proletariado não é o sujeito do processo histórico, nem sob sua forma restringida de classe operária produtiva, nem sob a forma abrangente de assalariada. O singular sujeito histórico é o capital e é a partir da compreensão de seu desenvolvimento imanente que podemos pensar sua superação. Aquilo que o desenvolvimento do capital abre é uma possibilidade, a de sua superação através da inversão da função do valor, ou seja, a dominação dos homens pelo seu próprio trabalho social, e, a partir daí uma revolução radical naquilo que chamamos trabalho. Não se trata do crescimento ilimitado de forças produtivas... nem do decréscimo, mas de um outro crescimento, aquele das possibilidades para os humanos de se livrarem deixando o mais distante possível as formas rigorosas, embrutecedoras do trabalho, de não ser mais atado por uma divisão do trabalho cada vez mais poderosa, e, portanto, a possibilidade de uma verdadeira libertação de cujo capitalismo guarda a ideia sob uma forma perfeitamente alienada: O sonho contido na forma capital é aquele de uma ilimitação absoluta, de uma ideia de liberdade como liberação completa em direção à matéria da natureza. Esse sonho do capital se tornou o pesadelo para este e estes que o capital se esforça para libertar: o planeta e seus habitantes. A humanidade não pode acordar completamente desse estado de sonambulismo senão pela abolição do valor. Essa abolição desencadearia a necessidade de que a produtividade aumente sem cessar... (p.561) O trabalho de Moishe Postone está longe de liquidar todas as questões. O autor dá, ademais, um certo número de pistas de pesquisa que seria necessário perseguir. Mas é, em todo caso, uma obra maior que deveria ser lida e debatida primeiramente por todos aqueles

que fazem parte da escola de Marx mas também por todos os que recusam a ordem posta, sentem que seu desenvolvimento desenfreado ameaça a humanidade, mas tratam Marx como um sapato velho, por não conhecerem desse pensador ilustre mais que a vulgata, cuja futilidade Postone aponta brilhantemente.