Participação dos trabalhadores na empresa No âmbito do tema proposto para os trabalhos da nossa comissão, e procurando enquadrar a realidade de Portugal no que ao mesmo respeita, desde logo se refira que não é longa a tradição portuguesa no que toca aos diferentes patamares de intervenção dos trabalhadores na vida das empresas. Se, por um lado, e durante as décadas da ditadura, não se conheceu no país sequer - um desenvolvimento da actividade sindical que possa hoje ser estudado e merecer o rótulo de participação dos trabalhadores na empresa, por outro, já desde as décadas finais do século XX que a tendência liberal (ou neo-liberal) dominante afasta qualquer previsão, a curto ou médio prazo, de novos tempos em que se adoptem modelos que permitam admitir como reforçada a participação de que aqui nos ocupamos. Isto posto, temos então que abordar a questão proposta de modo mais alargado e evitar uma rigidez de conceitos que sempre limitaria o que aqui pudessemos dizer sobre a realidade portuguesa nesta matéria. Assim, consideremos, desde logo, o axioma de que o Direito do Trabalho é o ramo do Direito que regula o trabalho heterodeterminado, subordinado, não autónomo. Queremos com isto dizer que os trabalhadores se subordinam, sem mais, ao poder de direcção dos seus empregadores? Certamente que não. Na verdade, importa ter em consideração que o ordenamento legal do trabalho se desenvolveu como uma reacção aos efeitos da debilidade contratual de uma das partes - o trabalhador -, face ao estatuto de poder ou autoridade do empregador. Se é certo que o Direito do Trabalho abrange um leque variado de limitações à autonomia privada individual, não é menos certo que ele se dedica à missão de proteger os trabalhadores. É neste contexto que se há-de desenhar o que diremos quanto ao tema da participação dos trabalhadores na estrutura laboral em que se inserem. Diremos então que, apesar da tipicidade da relação de trabalho subordinado, não se ignore que nela se incluem também, com enorme relevância, as relações colectivas que se estabelecem entre organizações de trabalhadores e empregadores, organizados ou não. Refira-se que as intervenções legislativas referentes aos fenómenos colectivos laborais 1
assumiram, primeiramente, um carácter essencialmente repressivo, mas foram evoluindo para o campo da tolerância e do reconhecimento de tais fenómenos. Em Portugal, foi com o Decreto de 14 de Abril de 1891, regulador do trabalho de menores e mulheres, que se abriu verdadeiramente o ciclo de uma produção legislativa específica no âmbito das relações de trabalho. Logo a seguir à proclamação da República (1910), surgiu o reconhecimento e a regulamentação do direito à greve e ao lock-out, pelo Decreto de 6 de Dezembro de 1910. Diga-se mesmo que as designadas coligações eram, até então, configuradas como crime e, enquanto tal, punidas pelo Código Penal vigente. Com o derrube da I República, pelo movimento de 28 de Maio de 1926, seguiu-se um período de relativa pobreza na legislação do trabalho, assinalado pelo regresso da proibição da greve (Dec. Nº 13138, de 15 de Fevereiro de 1927). Os alicerces jurídicos do sistema corporativo português foram lançados em 1933, com a Constituição Política e o chamado Estatuto do Trabalho Nacional. Na sequência desses diplomas, verificou-se uma vasta produção legislativa, que constituiu o primeiro conjunto sistemático registado pela história do Direito do Trabalho Português. A estruturação do ordenamento legal corporativo evidenciava o primado da protecção legal da situação individual do trabalhador, condicionando as formas de acção colectiva laboral. O sistema legislativo que, então, se alicerçou nos princípios da Constituição de 1933 e do Estatuto do Trabalho Nacional tinha os seus pontos essenciais em diplomas como o Decreto-Lei 23870, de 18 de Maio de 1934, relativo à punição da greve e do lockout, e o Decreto-Lei 36173, de 6 de Março de 1947, relativo ao regime jurídico da contratação colectiva. Os sindicatos eram criados pelos trabalhadores ou, excepcionalmente, pelos poderes políticos, mas o seu reconhecimento estava sempre dependente de uma entidade administrativa. Os sindicatos ficavam, aliás, na directa dependência do Instituto Nacional de Trabalho e Previdência e deveriam subordinar os respectivos interesses aos interesses da economia nacional, em colaboração com o Estado e com os órgãos da produção e do trabalho (art. 9º do D 23050, de 23 de Setembro de 1933). Não havia, pois, liberdade sindical. Na década de sessenta, embora a liberdade sindical fosse uma liberdade fortemente vigiada pelas autoridades públicas, a verdade é que, a partir do DL nº 49058, alguns sindicatos lançaram as bases para a criação de uma estrutura de coordenação sindical, que viria a concretizar-se, ainda em condições de semi-clandestinidade, com a 2
Intersindical, mais tarde Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses, criada em 1 de Outubro de 1970. Com a abolição do sistema corporativo, após o 25 de Abril de 1974, abriu-se um caminho de clara renovação do ordenamento jurídico-laboral português. O DL 203/74, de 15 de Maio (Programa do Governo Provisório), previa, genericamente, um vasto leque de medidas legislativas no domínio do Direito do Trabalho, nomeadamente no que respeita às garantias da liberdade sindical e ao estabelecimento de novos mecanismos de resolução de conflitos colectivos de trabalho. Todavia, estas expectativas de renovação legislativa não se concretizaram: o Estatuto do Trabalho Nacional não foi expressamente revogado e a disciplina legal das relações colectivas de trabalho só em 1976 foi modificada e em 1979 renovada. O período que se seguiu à entrada em vigor da Constituição da República Portuguesa (CRP) de 1976 foi um período de normalização do sistema de relações profissionais, nomeadamente no que respeita ao reconhecimento da relevância da participação no trabalho. O termo participação no trabalho está longe de ser um conceito definitivamente elaborado e pacífico. Há quem prefira, hoje, o termo envolvimento dos trabalhadores (employee involvement). O termo participação cobre um conjunto diversificado de procedimentos formais ou informais, instituídos de modo a permitir aos trabalhadores e/ou seus representantes influenciar o processo de decisão na empresa, em todas as matérias relacionadas com as condições de trabalho. Como se manifesta a participação dos trabalhadores, em Portugal? I- Associações sindicais O artigo 55.º da actual Constituição da República reconhece aos trabalhadores a liberdade sindical, como condição e garantia da construção da sua unidade para defesa e promoção dos seus interesses. O reconhecimento, como um direito, da liberdade sindical, inicialmente punida como crime e mais tarde apenas tolerada, implicou uma ruptura com o individualismo radical que outrora caracterizara o Direito do Trabalho português. O conteúdo da liberdade sindical é extremamente amplo e complexo e desdobra-se em múltiplas dimensões. A liberdade de constituir sindicatos é uma dessas dimensões, que 3
a CRP expressamente refere, e traduz-se numa liberdade de exercício colectivo, na medida em que pressupõe a participação de diversos membros de um grupo. A liberdade sindical é uma liberdade individual, porque cada trabalhador é livre de participar na constituição de um sindicato e de se tornar, ou não, sócio de um existente, ou ainda de deixar de ser sindicalizado, mas é também uma liberdade colectiva: o conjunto dos trabalhadores organizados em sindicato é livre de o estruturar, de regular o seu funcionamento, de eleger e destituir os seus dirigentes, e de definir as formas e as finalidades da acção colectiva. Até há cerca de três décadas, o sindicato existiu sempre, praticamente, do lado de fora da empresa. A presença sindical na empresa só viria a institucionalizar-se na sequência das convulsões do Maio de 68, em França, com repercussões em muitos outros países. Em Portugal, as associações sindicais têm, hoje, nomeadamente, o direito de celebrar convenções colectivas de trabalho, de participar na elaboração da legislação do trabalho e de participar nos processos de reestruturação da empresa, especialmente quando ocorra alteração nas condições de trabalho dos seus associados. Quanto ao direito de que as associações sindicais gozam de participarem (juntamente com as comissões de trabalhadores) na elaboração da legislação do trabalho, importa referir que os pareceres que elas entendam formular hão-de ser tomados em consideração, embora como meros elementos de trabalho, na versão final dos diplomas, devendo, além disso, ser referidos nos respectivos preâmbulos e relatórios. Assume extrema relevância o princípio de que nenhum projecto ou proposta de lei relativo à legislação do trabalho pode ser discutido e votado sem que as comissões de trabalhadores, as associações sindicais e as associações de empregadores tenham podido pronunciar-se sobre o respectivo teor. Desta forma, procura atender-se aos diversos interesses em jogo, de modo a possibilitar a articulação necessária entre os mesmos. Hoje, os trabalhadores e os sindicatos têm direito a desenvolver actividade sindical no interior da empresa, nomeadamente através dos delegados sindicais, das comissões sindicais e das comissões intersindicais. Face à lei portuguesa, deve entender-se que os delegados sindicais são representantes do sindicato, ainda que eleitos pelos trabalhadores, cujas funções se reconduzem a dois aspectos essenciais: a prestação de informação nos dois sentidos (sindicato-trabalhadores e vice-versa) e a fiscalização do cumprimento das normas reguladoras do trabalho, maxime das convenções colectivas, que referiremos adiante. 4
A liberdade de acção sindical na empresa compreende, entre outros, os direitos seguintes: Direito à informação e consulta sobre a evolução provável das actividades da empresa, sobre a estrutura e evolução provável do emprego e sobre as decisões susceptíveis de desencadear mudanças substanciais a nível dos contratos de trabalho; Direito de reunião no local de trabalho, dentro ou fora do horário de trabalho, nos termos do disposto no artigo 497.º do Código do Trabalho, para discussão de aspectos relativos às suas linhas de actuação dentro da empresa, de modo a assegurar a defesa dos interesses dos trabalhadores; Direito a instalações, isto é, direito à utilização, pelos delegados sindicais, de um local dentro da empresa apropriado ao exercício das suas funções. II Comissões de trabalhadores As associações sindicais não foram o primeiro tipo de manifestação da presença organizada dos trabalhadores na empresa. A representação a nível de empresa começou, aliás, por ser informal e transitória. O grande surto de comissões, em Portugal, verificou-se em 1974/75, em coincidência com a fase de reordenamento sindical que se seguiu à queda do regime corporativo. De acordo com o disposto no artigo 54.º da CRP, é direito dos trabalhadores criarem comissões de trabalhadores para defesa dos seus interesses e intervenção democrática na vida da empresa. Para defesa e promoção dos seus interesses, os trabalhadores criam estruturas de representação, através das quais se exprimem como colectivos dotados de substantividade própria. A comissão de trabalhadores é uma organização dotada de personalidade jurídica, constituída por membros do pessoal da empresa, em número variável e dependente do efectivo global, que são eleitos de entre os trabalhadores da mesma empresa mediante votação destes. A sua organização e o seu funcionamento são regulados por estatutos aprovados também pelos trabalhadores da empresa. Da concepção legal da comissão de trabalhadores decorre que tal entidade não é um órgão nem um serviço da empresa. Constitui, antes, uma instância representativa dos trabalhadores, dotada de competência legal para agir no interior da mesma. 5
Os direitos fundamentais das comissões de trabalhadores face à empresa em que se inserem são o direito à informação e o direito ao controlo de gestão. O direito à informação tem um âmbito definido. Na verdade, a lei não quis habilitar as comissões com a faculdade de requerer qualquer informação sobre qualquer assunto. Assim, em primeiro lugar, esse direito refere-se ao conhecimento de certos instrumentos de gestão: planos, orçamentos, regulamentos internos, balanços, contas de resultados e balancetes trimestrais. O dever de informação deve considerar-se preenchido, nestes casos, pelo simples fornecimento de cópias dos mencionados documentos. Em segundo lugar, o direito à informação respeita a indicadores de gestão económica, financeira e social: os relativos às questões de aprovisionamento, vendas, pessoal e financeira. A empresa tem de dar conhecimento à comissão de trabalhadores dos indicadores por ela elaborados. Por fim, quanto às medidas sobre as quais é obrigatório ouvir a comissão de trabalhadores, elas respeitam, sobretudo, a actos ou medidas de gestão com incidência na situação dos trabalhadores: Celebração de contratos de viabilização ou contratos-programa; Dissolução da empresa ou pedido de declaração de falência; Encerramento do estabelecimento ou de linhas de produção; Despedimentos ou agravamento das condições de trabalho; Estabelecimento do plano anual de férias; Alteração dos horários de trabalho; Modificações nos critérios base de classificação profissional e de promoção; Mudança de local de actividade da empresa ou do estabelecimento. O direito ao controlo de gestão, por sua vez, é, essencialmente, uma forma de participação na vida da empresa, ancorada em dois critérios fundamentais: o da defesa dos interesses dos trabalhadores e do próprio interesse da empresa. Para o exercício da sua actividade, cada um dos membros das comissões de trabalhadores dispõe de um crédito de horas. Para além disso, os órgãos de gestão das empresas devem pôr à disposição das comissões ou subcomissões de trabalhadores as instalações adequadas, bem como os meios materiais e técnicos necessários ao desempenho das suas atribuições. Só assim a participação dos trabalhadores, neste ãmbito concreto, se pode efectivar convenientemente. 6
III- Negociação colectiva As relações colectivas constituem a base de uma importantíssima fonte de Direito do Trabalho: a convenção colectiva. Como meio de composição de interesses colectivos contrapostos, nela converge o interesse dos trabalhadores (pelo acréscimo do seu poder negocial, pela diminuição de desigualdades de estatuto dentro da mesma profissão ou actividade) e o dos empregadores. A negociação colectiva constitui um factor de equilíbrio social. Um processo de negociação colectiva pode situar-se ao nível da empresa, do ramo de actividade ou da profissão. Têm capacidade para celebrar convenções colectivas as associações patronais e os empregadores, por um lado, e as associações sindicais, por outro. Na verdade, qualquer associação sindical ou de empregadores regularmente constituída pode intervir em processos negociais que interessem aos seus membros. As convenções colectivas de trabalho devem, designadamente, regular: a) As relações entre as partes outorgantes, em particular quanto à verificação do cumprimento da convenção e aos meios de resolução de conflitos decorrentes da sua aplicação e revisão; b) As acções de formação profissional, tendo presentes as necessidades do trabalhador e do empregador; c) As condições de prestação do trabalho relativas à segurança, higiene e saúde; d) O âmbito temporal, nomeadamente a sobrevigência e o prazo de denúncia; e) Os direitos e deveres recíprocos dos trabalhadores e dos empregadores; f) Os processos de resolução dos litígios emergentes de contratos de trabalho, instituindo mecanismos de conciliação, mediação e arbitragem; g) A definição de serviços mínimos e dos meios necessários para os assegurar em caso de greve. Os representantes legítimos das associações sindicais e dos empregadores devem, oportunamente, fazer as necessárias consultas aos trabalhadores e aos empregadores interessados. A convenção colectiva assume grande relevância, na medida em que é encarada como um contrato gerador de obrigações para ambas as partes e em que as disposições que nela constam resultam de um processo concertado de negociação. 7
IV- Conclusão O ordenamento jurídico-laboral não visa unicamente as relações individuais. A esfera destas relações está envolvida por fenómenos colectivos dotados de enorme relevância social, que assumem o duplo papel de objecto e fonte de normas jurídicas. Esses fenómenos exprimem-se sob diversas formas - a acção sindical na empresa, a participação dos trabalhadores reunidos em comissões, a participação na elaboração da legislação do trabalho, entre outras - e o ordenamento jurídico cuida de proporcionar os meios de equilíbrio necessários e os instrumentos de composição dos diferentes interesses em jogo na empresa. Do que dissemos resulta, então, que em Portugal nos vemos limitados à análise do papel da intervenção colectiva dos trabalhadores quando queremos referir o que designamos por participação dos trabalhadores na vida das empresas, ou, como dissemos, pelo menos se queremos referir o que realmente importa dessa participação. Sempre diremos que esta problemática da participação poderia ser vista, também, pelo prisma da intevenção dos trabalhadores em actividades e/ou organismos da empresa paralelos à relação laboral, antes classificáveis como instrumentos de promoção e difusão do que hoje designamos por cultura de empresa, e muito tendo em vista um pretendido objectivo de reforço de coesão interna e de espírito de grupo. Temos, porém, para nós que a abordagem por esta perspectiva não passaria de uma operação de marketing para camuflar uma verdadeira falta de participação dos trabalhadores na vida da empresa que pensamos existir em Portugal, e que sempre se manterá enquanto a lei não instituír mecanismos de intervenção dos trabalhadores que se repercutam directamente na gestão corrente das empresas, definição de estratégias e planos de desenvolvimento. Bibliografia: FERNANDES, António Monteiro, Direito do Trabalho, 12.ª Edição, Coimbra, Almedina, 2004 LEITE, Jorge, Direito do Trabalho, Vol. I., Coimbra, Serviços de Acção Social da U.C., 2003 Pedro Botelho Gomes Agosto, 2006. 8