DIREITOS HUMANOS E INTEGRAÇAO REGIONAL A reunião dos países do Mercosul e associados em torno da promoção e defesa dos direitos humanos tem contribuído para o fortalecimento da integração regional, sobretudo depois da criação, em 2005, de um órgão institucionalizado na estrutura do Bloco para o tratamento da temática a Reunião de Altas Autoridades em Direitos Humanos e Chancelarias do Mercosul (RAADH), que consiste em foro de articulação de uma ampla agenda de direitos humanos e compreende grupos de trabalho para desenvolver questões específicas vinculadas à matéria. A semelhança dos problemas enfrentados pelos países da região, a circunstância de muitos deles terem passado por um período ditatorial em que os direitos humanos estavam suprimidos ou mitigados e o compromisso com os preceitos da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, no âmbito do sistema interamericano, são fatores que os aproximam e permitem trocas de experiência e conhecimento na busca de implementar mecanismos em prol dos direitos humanos. As questões relativas à proteção das comunidades tradicionais, à situação degradante das pessoas privadas de liberdade, ao desaparecimento forçado, à prática de tortura e aos massacres cometidos contra população rural são alguns dos problemas em comum que unem esses países em torno de um ideal comum. A Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República SEDH/PR - é responsável pela formulação das políticas e diretrizes voltadas à promoção dos direitos da cidadania e pela coordenação da política nacional de direitos humanos, implementando ações e apoiando projetos voltados para a proteção e promoção desses direitos em âmbito nacional. As ações da SEDH/PR compreendem diversas áreas dos direitos humanos, como a proteção das crianças e adolescentes, dos portadores de 1
deficiência, das comunidades indígenas, do idoso. Além disso, no âmbito da Presidência da República, a Secretaria Especial de Promoção de Políticas para as Mulheres e a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial são responsáveis pela formulação de políticas sobre o tema de igualdade de gênero e racial, respectivamente. As atribuições da SEDH/PR não eximem os outros órgãos do governo federal e demais entes federados, assim como os poderes da República, de atuar no sentido de promover a máxima efetividade dos direitos humanos no país, tendo em vista que a Constituição Brasileira arrola, no art. 1º, inc. III, o princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento da República e do Estado Democrático de Direito, a que todos devem observar e perseguir. Além disso, no art. 3º da Constituição, constam como objetivos fundamentais da República preceitos relacionados à promoção dos direitos humanos, como a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (inc. I), o desenvolvimento nacional (inc. II), a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais (inc. III) e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (inc. IV). A prevalência dos direitos humanos é colocada também como princípio orientador das relações internacionais do Brasil no art. 4º. A Constituição brasileira contempla ainda, de forma detalhada, a proteção e garantia de diversos outros direitos fundamentais ao ser humano, em todo o seu texto e, em especial, em seu art. 5º, os quais não excluem outros decorrentes de tratados internacionais de que o país seja parte (parágrafo 2º). Mais recentemente, por meio da Emenda Constitucional n. 45, de 2004, previu-se expressamente a possibilidade de que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos ganhem status de emenda constitucional, desde que aprovados por quorum qualificado no Parlamento. (parágrafo 3º), em tentativa de reforçar a aplicação dos direitos decorrentes de tratados no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro. 2
Até o momento, o primeiro e único caso de aprovação de tratado sob essa modalidade foi concernente à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Após sua assinatura pelo Brasil, o Presidente da República iniciou os trâmites para sua internalização, encaminhando a Convenção ao Congresso Nacional, por meio da Mensagem n. 711/2007, e solicitando sua tramitação com equivalência de emenda constitucional. Por meio do Decreto Legislativo n. 186, de 9 de julho de 2008, o Presidente do Senado Federal aprovou os termos da Convenção, que pode então ser ratificada perante as Nações Unidas. A aprovação dessa Convenção reveste-se de importância histórica, mas não é possível olvidar que os tratados e convenções já ratificados pelo Brasil antes da entrada em vigor da Emenda 45/04 não são considerados, pelos tribunais pátrios, com o mesmo status constitucional, o que requer a tomada de posição do Estado quanto à forma de proceder nesses casos. Se por um lado, existe uma norma que estipula procedimento especial para que os tratados sejam elevados ao nível constitucional, por outro, não se justifica que tratados de direitos humanos sejam colocados em patamares diferentes no ordenamento jurídico, sobretudo levando-se em conta os princípios de direitos humanos estabelecidos na Constituição. Atualmente, tramitam perante as casas do Congresso Nacional, projetos de resolução para alterar o regimento da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, de modo a adequá-los à norma trazida pela Emenda n. 45/04, e que apresentam propostas para a situação dos tratados e convenções já ratificados pelo país antes da entrada em vigor dessa Emenda. Nesse sentido, o Brasil tem conhecimento de que esse problema foi superado em alguns países do Bloco e acredita que as experiências e o conhecimento adquirido nesse processo podem ser muito ricos para o desenvolvimento do assunto no país. 3
Há de se destacar que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal vem caminhando para o maior reconhecimento da aplicação do direito internacional dos direitos humanos no âmbito interno, em consonância com a evolução dos direitos humanos no mundo. Em recente julgado sobre a prisão civil de depositário infiel, pela 2ª Turma do STF, tendo como relatora a Min. Ellen Gracie, afirmou-se o status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil, que estão abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. Forte nesse entendimento, a 2ª Turma do STF afastou a aplicação da legislação infraconstitucional, ressaltando ainda que não importa se a lei seja anterior ou posterior ao ato de ratificação. (HC 88240, STF, 2ª TURMA) Esse entendimento representa avanço em relação à anterior posição firmada no Plenário da Corte Suprema de que disposições de tratados internacionais de direitos humanos e, em especial da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, têm caráter de norma infraconstitucional geral e, por isso, não poderiam derrogar normas infraconstitucionais especiais. (HC 72.131, STF, Plenário) Essa evolução há de ser louvada, sem olvidar que, não obstante o Brasil ter ratificado a maioria dos tratados de direitos humanos no sistema global e regional e estar galgando posição de protagonismo na comunidade internacional, a aplicabilidade interna dos tratados internacionais de direitos humanos ainda encontra resistências em razão da tradição do direito positivado. No que concerne aos direitos humanos, no entanto, a exigência de positivação deve ser relativizada, tendo em vista a universalidade desses direitos e sua essência supranacional. A proteção da pessoa humana, erigida em princípio fundamental da Constituição, por si só, já prescindiria de 4
qualquer outro preceito, muito embora a Constituição contenha um rol extenso de direitos específicos protegidos. Nesse processo, o papel do Poder Judiciário é de grande relevo, pois os juízes, em seu mister constitucional de dizer o direito, detêm o potencial para transformar a sociedade, orientados pelos princípios de direitos humanos, constantes tanto da Constituição como dos tratados internacionais. Além disso, deve-se ressaltar que a aplicabilidade ampla dos tratados internacionais decorre não da imposição de um organismo internacional ou de outra nação, mas do ato do Estado que, livremente, comprometeu-se com seus termos, ao assiná-lo e ratificá-lo, envolvendo, nesse processo, os Poderes Executivo e Legislativo. A validade dos tratados internacionais não afeta, portanto, a soberania do país; antes, é um ato de soberania, enquanto manifestação de sua vontade. A maior integração das Cortes Supremas dos países americanos poderá trazer também experiências valiosas quanto à implementação das decisões emanadas dos organismos internacionais de direitos humanos. Ressai a importância das decisões da Comissão e Corte Interamericanas, as quais têm grande influência nos países do Mercosul e associados, contribuindo para o aprimoramento das instituições e formulação de políticas públicas. Durante o período ditatorial suportado por vários países da região, a Comissão desempenhou importante função no acompanhamento do processo de abertura política e de consolidação da democracia. A jurisprudência da Corte também tem norteado a atuação dos países quanto à apuração de crimes contra a humanidade cometidos nessa época, tema no qual alguns países do Bloco encontram-se bem avançados. A participação do Brasil no sistema interamericano é recente. O Brasil ratificou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos em 1992 e 5
reconheceu a jurisdição da Corte em 1998. Até o momento, teve apenas dois casos julgados pela Corte, tendo sido condenado em um deles; dois outros casos encontram-se em vias de serem julgados. A circunstância de ter tido poucos casos submetidos à Corte Interamericana faz com que o sistema regional seja pouco divulgado no país, mesmo entre os profissionais da área jurídica. No entanto, a tendência de crescimento do sistema trará a esses profissionais o desafio de implementar internamente as sentenças da Corte, o que poderá exigir o estabelecimento de novos paradigmas e a reforma de institutos jurídicos. Nesse caso, é relevante conhecer as medidas que têm sido adotadas pelos países integrantes do sistema interamericano para cumprir as determinações da Corte, principalmente no que diz respeito às obrigações de apurar a responsabilidade por violações de direitos humanos, cujo cumprimento requer a colaboração do Poder Judiciário. No âmbito mais estrito dos países do Mercosul, merecem destaque as discussões para a elaboração de uma Carta de Direitos Fundamentais do Mercosul, que serão enriquecidas com a participação qualificada das cortes superiores. Essa iniciativa, que tem como exemplos bem sucedidos a Carta de Direitos Fundamentais da União Européia e a Carta Africana de Direitos do Homem e dos Povos, é mais um importante passo para o processo de integração regional. Rogério Sottili, Secretário Adjunto da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. 6
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