Observatório da Jurisdição Constitucional



Documentos relacionados
Liberdade provisória sem fiança.

Capítulo 1 Notas Introdutórias Capítulo 2 Direito Processual Penal e Garantias Fundamentais... 3

Lei n /11: o art. 310 do CPP e a inafiançabilidade na visão do STF

PARECER Nº, DE RELATOR: Senador LUIZ HENRIQUE I RELATÓRIO

SENADO FEDERAL PROJETO DE LEI DO SENADO Nº 422, DE 2011

Superior Tribunal de Justiça

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº

INDICIAMENTO E FORMAL INDICIAMENTO. DISTINÇÃO.

BuscaLegis.ccj.ufsc.br

SUJEITOS NO PROCESSO PENAL

QUESTÕES POLÍCIA FEDERAL RODOVIÁRIA DIREITO PROCESSUAL PENAL. 01). Sobre o inquérito policial, assinale a alternativa incorreta:

LUÍSA FOIZER TEIXEIRA VEDAÇÃO DA LIBERDADE PROVISÓRIA CONSTANTE NO ARTIGO 44 DA LEI Nº DE 2006 E A DIVERGÊNCIA ACERCA DE SUA VALIDADE

Laís Maria Costa Silveira Promotora de Justiça de Belo Horizonte Titular da 22ª Promotoria de Justiça de Defesa da Pessoa com Deficiência e Idosos.

Art Extingue-se o processo, sem resolução de mérito:(redação dada pela Lei nº , de 2005) V -quando o juiz acolher a alegação de

CONSIDERAÇÕES SOBRE O INSTITUTO DA TUTELA DE URGÊNCIA EM FACE DA FAZENDA

NOVO CPC: A HOMOLOGAÇÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA DE DIVÓRCIO CONSENSUAL

O SISTEMA DE FIANÇA EM RAZÃO DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 310 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL

Sumário. Capítulo 10 Sistemas processuais Capítulo 11 Aplicação da lei processual penal no espaço... 63

Sumário APRESENTAÇÃO... 17

AULA 8 31/03/11 O RECURSO ORDINÁRIO CONSTITUCIONAL

RESOLUÇÃO Nº PROCESSO ADMINISTRATIVO Nº CLASSE 26 BRASÍLIA DISTRITO FEDERAL

Demócrito Reinaldo Filho Juiz de Direito (32 a. Vara Cível do Recife) 1. Breves explicações sobre o tema

Supremo Tribunal Federal

A RECEPÇÃO DO PARÁGRAFO PRIMEIRO, DO ARTIGO 441, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL MILITAR, PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

PROJETO DE LEI. O Congresso Nacional decreta: Art. 1º. O artigo 27, 2º da Lei 8.038, de 28 de maio de 1990, passa a vigorar com a seguinte redação:

Extensão dos efeitos de decisão judicial transitada em julgado a quem não foi parte na relação processual

DELEGADO DA POLÍCIA FEDERAL

SUMÁRIO CAPÍTULO I CONSIDERAÇÕES INICIAIS...

BuscaLegis.ccj.ufsc.br

A INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 33, 4º, DA LEI /2006

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA

PARECER N.º JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.

PARECER Nº, DE RELATOR: Senador JOSÉ PIMENTEL I RELATÓRIO


1. PRISÃO (CONTINUAÇÃO) Pode ser decretada pelo juiz de ofício, a requerimento do Ministério Público ou a requerimento do querelante.

Supremo Tribunal Federal

DO PROCESSO E PROCEDIMENTO

CONCURSO PGE-SP: ANÁLISE COMPLETA DOS

Excesso de prazo na prisão processual.

ESTADO DE MINAS GERAIS ADVOCACIA-GERAL DO ESTADO. CONCURSO PÚBLICO Edital n 1/2006 PROCURADOR DO ESTADO NÍVEL I GRAU A. Caderno de Questões

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Nº 17599/CS

ESTADO DO RIO DE JANEIRO PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO 7ª CÂMARA CRIMINAL

Cód. VALOR (R$) CUSTAS (Atos da Secretaria do Tribunal): Classes processuais - Justiça Estadual (2ºGRAU) - Cód.

O PROCESSO CAUTELAR PENAL

COMISSÃO DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, INDÚSTRIA E COMÉRCIO

BuscaLegis.ccj.ufsc.br

A QUESTÃO DA INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI NO RECURSO ESPECIAL

Hugo Nigro Mazzilli. Notas sobre as vedações constitucionais do MP. Procurador de Justiça aposentado Ex-Presidente da Associação Paulista do MP

PARECER Nº, DE RELATOR: Senador JOSÉ PIMENTEL

COMISSÃO DE CONSTITUIÇÃO E JUSTIÇA E DE CIDADANIA

FACULDADES INTEGRADAS FAFIBE CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PRESSUNÇÃO DE INOCÊNCIA E SUA APLICABILIDADE PROCESSUAL

A DISPARIDADE EXISTENTE NO INSTITUTO DA FIANÇA

Eficácia da norma processual no tempo Incidência da LICC (vacatio legis 45 dias); Sucessão de lei no tempo: Unidade processual segundo o qual, apesar

Secretaria de Defesa Social POLÍCIA CIVIL DE PERNAMBUCO Gabinete do Chefe de Polícia PORTARIA GAB/PCPE Nº 686/2011

QUESTIONÁRIO SOBRE JURISDIÇÃO E COMPETÊNCIA

Alterações promovidas na esfera do Direito Processual Penal pela Lei nº /2016

UNIC/SUL - CURSO DE DIREITO 3º SEMESTRE - 2º BIMESTRE DISCIPLINA: Direito Constitucional II Profª Maria das Graças Souto

PARECER Nº, DE RELATOR: Senador EXPEDITO JÚNIOR I RELATÓRIO

Superior Tribunal de Justiça

MEDIDA: PRISÃO PREVENTIVA PARA ASSEGURAR A DEVOLUÇÃO DO DINHEIRO DESVIADO

PROVIMENTO CGJ Nº 09 / 2015

RESOLUÇÃO Nº 21, DE 15 DE SETEMBRO DE 2015.

LEI Nº /2009: BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DA NOVA LEI DE IDENTIFICAÇÃO CRIMINAL

Aula 9 de Processo do Trabalho I. Segundo a redação do artigo 840 da Consolidação das Leis do Trabalho a petição inicial poderá ser escrita ou verbal.

Luiz Flávio Gomes Valerio de Oliveira Mazzuoli. O método dialógico e a magistratura na pós-modernidade

Supremo Tribunal Federal

: RENATA COSTA BOMFIM E OUTRO(A/S)

PARECER Nº, DE RELATOR: Senador GEOVANI BORGES I RELATÓRIO

Orientações de interação com o Sistema de Controle Processual do TJPE (JUDWIN 1º GRAU)

Toque 11 Isonomia, Capacidade Contributiva e Progressividade

A POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DE TUTELA ANTECIPADA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA EM DECORRÊNCIA DO CARÁTER TAXATIVO DO ARTIGO 1º DA LEI N. 9.

Supremo Tribunal Federal

* Flagrante: prisão cautelar ( processual). Flagrante é uma palavra que tem origem no latim flagrantis, que significa queimar.

OAB GABARITO COMENTADO SEGUNDA FASE EMPRESARIAL. Artigo 9º e 4º do artigo 10 Lei /2005, procuração, CPC e estatuto da OAB.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL 2ª CÂMARA DE COORDENAÇÃO E REVISÃO

Poder Judiciário Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte

O artigo 44 da Lei Antitóxicos é especial tanto em relação ao Estatuto Processual Penal quanto à Lei n.º 8.072/90.

: MIN. GILMAR MENDES

BuscaLegis.ccj.ufsc.br

CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

Superior Tribunal de Justiça

SEJUS-PI SUMÁRIO. Língua Portuguesa. Leitura, compreensão e interpretação de textos Os sentidos contextuais de palavras e expressões...

05/02/2013 SEGUNDA TURMA : MIN. GILMAR MENDES

OS LIMITES DA CLÁUSULA AD JUDICIA NA PROCURAÇÃO

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Nº /CS

: MIN. TEORI ZAVASCKI

Inconstitucionalidade de restrição temporal ao gozo de férias acumuladas por mais de dois períodos

Cabe contra decisões dos juízos de primeira instância e também dos de segunda instância.

DO LITISCONSÓRCIO. Des. ANA MARIA DUARTE AMARANTE BRITO

Diante do exposto, indaga-se: aplicar-se-ia o princípio da anterioridade tributária ao presente caso?

QUADRO COMPARATIVO ENTRE O NOVO CÓDIGO CIVIL, O CÓDIGO CIVIL DE 1916 E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE QUANTO A ADOÇÃO.

DO JULGAMENTO PELO TRIBUNAL DO JÚRI, DA ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ FEDERAL SERGIO MORO, DA 13ª VARA FEDERAL DA SEÇÃO JUDICIÁRIA DE CURITIBA (PR)

RESOLUÇÃO TCE/MA Nº 214, DE 30 DE ABRIL DE 2014.

Supremo Tribunal Federal

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL REPERCUSSÃO GERAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO SANTA CATARINA EMENTA

Supremo Tribunal Federal

EFEITOS PROCESSUAIS NO CONTROLE JUDICIAL DE CONSTITUCIONALIDADE

Benefícios autorizadores para a concessão saída do preso EDNALDO DE ARAÚJO DA SILVA JÚNIOR

PROCURADORIA-GERAL DO ESTADO PROCURADORIA PREVIDENCIÁRIA PARECER Nº

Transcrição:

Observatório da Jurisdição Constitucional Ano 1 - Outubro 2007 - Brasília - Brasil - ISSN 1982-4564 INAFIANÇABILIDADE E INTERDIÇÃO DE LIBERDADE PROVISÓRIA NO ESTATUTO DO DESARMAMENTO: COMENTÁRIOS À DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA ADI nº 3.112 E OUTRAS. Igor Nery Figueiredo * Na sessão plenária do dia 02 de maio de 2007, os ministros do Supremo Tribunal Federal apreciaram, em conjunto, diversas ações diretas de inconstitucionalidade que tinham por objeto disposições da Lei Federal nº 10.826/2003, conhecida como Estatuto do Desarmamento. Dentre os vários temas tratados na ocasião, dois deles compõem o objeto central desses comentários. O primeiro refere-se à impugnação feita aos parágrafos únicos dos arts. 14 e 15 do Estatuto. Tais dispositivos tornam inafiançáveis os crimes de porte ilegal de arma de fogo de uso permitido ( salvo quando a arma de fogo estiver registrada em nome do agente ) e de disparo de arma de fogo. O segundo enfoque reside no exame da constitucionalidade do art. 21 da lei, segundo o qual ficam insuscetíveis de liberdade provisória os delitos previstos em seus arts. 16 (posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito), 17 (comércio ilegal de arma de fogo) e 18 (tráfico internacional de arma de fogo). Iniciemos a abordagem por esta última questão. Editado em 1941 e sob forte influência fascista, o Código de Processo Penal brasileiro positivou um sistema com características nitidamente autoritárias. Um dos aspectos em que fica mais notável tal inspiração está no tratamento que o Código confere ao regime das prisões processuais. Com efeito, na sistemática de 1941, preso o acusado em flagrante delito, aperfeiçoava-se um juízo de antecipação de sua culpabilidade, permanecendo, como regra e por força de lei, a prisão então verificada. A liberdade constituía, nesse quadro, uma providência apenas * Procurador da República.

2 excepcional. O mesmo ocorria quando proferida sentença condenatória (ainda sem trânsito em julgado) ou decisão de pronúncia, quando o réu, só por isso, deveria recolher-se à prisão. A ordem jurídica inaugurada pela Constituição Federal de 1988 inverteu completamente a lógica anterior. No dizer de Eugênio Pacelli de Oliveira, que bem explicita essa problemática, Com a Constituição Federal de 1988, duas conseqüências imediatas se fizeram sentir no âmago do sistema prisional, a saber: a) a instituição de um princípio afirmativo da situação de inocência de todo aquele que estiver submetido à persecução penal; b) a garantia de que toda prisão seja efetivamente fundamentada e por ordem escrita de autoridade judiciária competente. 1 A inclusão de direitos fundamentais do réu que afirmam seu status de inocência até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, bem como a necessidade de fundamentação, por juízo competente, de qualquer ordem de prisão contra ele dirigida, demonstra que as prisões processuais passam a ostentar evidente natureza cautelar. Vale dizer, com isso, que a prisão durante o processo, na ordem constitucional atual, não pode decorrer, simplesmente, da acusação penal, devendo estar ancorada na instrumentalidade de manter-se o réu preso com vistas a atender a objetivos de elevada estatura (conveniência da instrução criminal, aplicação da lei penal etc.). Essas considerações foram debatidas no Supremo Tribunal Federal quando a Corte enunciou a inconstitucionalidade do art. 21 do Estatuto do Desarmamento, que, como já se viu, proíbe a liberdade provisória quanto aos delitos previstos em seus arts. 16, 17 e 18. Relator das ações diretas em exame, o Min. Ricardo Lewandowski, no voto que conduziu o julgamento, ponderou que a ordem constitucional não autoriza a prisão ex lege e que a interdição à liberdade provisória estaria a violar os preceitos inscritos no art. 5º, LVII, LXI e LV, da Carta Política. Reconheceu, também, e com razão, que a declaração de inconstitucionalidade do dispositivo não impede que, no caso concreto, o magistrado, justificadamente, decrete a prisão processual, quando presente a cautelaridade. A decisão, no ponto, afigura-se correta. Fica, contudo, uma impressão. Como se sabe, outras leis penais vigentes no Brasil, além do Estatuto do Desarmamento, contêm dispositivos semelhantes, que vedam, em relação a determinados delitos, a concessão de liberdade provisória. 1 Curso de processo penal. 7.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 414.

3 É o caso da Lei de Tóxicos (Lei nº 11.343/06, art.44), da Lei de Lavagem de Bens, Direitos e Valores (Lei nº 9.613/98, art. 3º) e da Lei das Organizações Criminosas (Lei nº 9.034/95, art. 7º). Também quanto a essas regras, e pela identidade de razões, parece dever-se aplicar o mesmo entendimento manifestado a propósito da Lei nº 10.826/2003, ora em destaque. O segundo aspecto do julgamento a merecer cuidadosa análise refere-se à parte em que o Supremo Tribunal apreciou a inafiançabilidade dos crimes de porte ilegal de arma de foto de uso permitido e de disparo de arma de fogo (parágrafos únicos dos arts. 14 e 15 do Estatuto). O voto do Ministro Lewandowski, também vencedor quanto a esse ponto, considerou desarrazoada a inafiançabilidade descrita na lei, declarando sua inconstitucionalidade. Cabe referir, inicialmente, a importância que possui, no regime das liberdades provisórias vigente no país, o advento da Lei nº 6.416/77. Até a edição dessa lei, o sistema era composto, basicamente, pela liberdade mediante fiança. À exceção das liberdades previstas nos arts. 321 e caput do art. 310 do Código de Processo Penal esses dispositivos referem-se às hipóteses em que o réu livrar-se-á solto ou a casos nos quais sequer há crime, para o que, portanto, a liberdade é medida imperativa e intuitiva a fiança era a única espécie de liberdade provisória existente 2. Veio, então, a Lei nº 6.416/77 e inseriu um parágrafo único ao art. 310 do CPP, com a seguinte redação: Art. 310. Quando o juiz verificar pelo auto de prisão em flagrante que o agente praticou o fato, nas condições do art. 19, I, II e III, do Código Penal, poderá, depois de ouvir o Ministério Público, conceder ao réu liberdade provisória, mediante termo de comparecimento a todos os atos do processo, sob pena de revogação. Parágrafo único. Igual procedimento será adotado quando o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, a inocorrência de qualquer das hipóteses que autorizam a prisão preventiva (arts. 311 e 312). De conseqüência, se ausentes os motivos necessários à decretação da prisão preventiva, o juiz deveria conceder liberdade provisória ao acusado, independentemente de fiança. Ficava, desse modo, quase sem aplicação a liberdade mediante fiança, eis que o parágrafo único do art. 310 criara uma espécie de liberdade genérica e sem o ônus da garantia real. 2 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Ob. cit. p. 458.

4 A Constituição Federal de 1988, contudo, parece ter dado novo ânimo ao instituto da fiança, ao considerar inafiançáveis vários delitos (art. 5º, XLII, XLIII, XLIV). Essa previsão constitucional veio, assim, na contramão do movimento iniciado com a legislação de 1977, tendente a substituir a fiança pela liberdade sem fiança. De todo modo, a interpretação do sistema, especialmente ante a letra expressa da Carta Maior, conduz à presença dos dois tipos de liberdade provisória, a com fiança e a sem fiança, ambas com requisitos autônomos. Isso significa que se um crime for considerado inafiançável, mas o caso se adequar, por exemplo, à previsão do art. 310, parágrafo único, do CPP, caberá a liberdade provisória sem fiança. Segue-se, pois, que a previsão contida no Estatuto do Desarmamento, de inafiançabilidade dos delitos descritos em seus arts. 14 e 15, não tem o efeito de impedir a concessão, em relação a esses crimes, da liberdade provisória sem fiança. Inafiançabilidade, como se vê, significa vedação da liberdade provisória mediante fiança. A perplexidade que possa gerar a cabimento de liberdade provisória sem fiança para um crime inafiançável é afastada com a análise sistêmica do processo penal brasileiro, que não pode ser interpretado de modo a prejudicar o réu, mas de acordo com os valores maiores da Constituição. Embora possa impressionar à primeira vista, afigura-se incorreto, desde a perspectiva de uma interpretação que garanta ao acusado os direitos fundamentais previstos na Carta Maior, concluir que se, por sua gravidade, fica vedada a fiança em relação a determinado crime, com maioria de razão deveria ficar interditada a liberdade sem fiança. Assim, a inteira possibilidade de dar liberdade ao réu, acusado dos crimes de porte ilegal de arma de foto de uso permitido e de disparo de arma de fogo, quando ausentes os motivos autorizadores da prisão preventiva (art. 310, p.único, CPP), e independentemente de fiança, leva à conclusão de não parecer desarrazoada e excessivamente onerosa a previsão, quanto a eles, de inafiançabilidade. Por fim, não se afigura correto o argumento que sugere ser a previsão de inafiançabilidade uma reserva da Constituição. De fato, embora o Constituinte tenha enunciado a restrição para alguns crimes, não impediu que o legislador infraconstitucional tomasse a mesma medida em

5 relação a outros delitos, para os quais entenda conveniente a inafiançabilidade. A Constituição Federal antecipou-se e indicou crimes que, já de saída, desejava inafiançáveis, mas não tornou a restrição exclusiva a eles. Note-se, por exemplo, que o Código de Processo Penal estabelece inúmeros limites ao reconhecimento de afiançabilidade aos delitos (CPP, art. 323), não parecendo que tais balizas tenham sido revogadas pela Carta de 1988. Como citar: FIGUEIREDO, Igor Nery. Inafiançabilidade e Interdição de Liberdade Provisória no Estatuto do Desarmamento: Comentários à Decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI nº 3.112 e outras. Observatório da Jurisdição Constitucional, Brasília, ano 1, out. 2007. Disponível em: <http://www.idp.org.br/index.php?op=stub&id=9&sc_1=60>. Acesso em: dia mês ano.