CARACTERÍSTICAS DE CRIANÇAS COM MIELOMENINGOCELE: implicações para a fisioterapia



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ISSN 0103-5150 Fisioter. Mov., Curitiba, v. 22, n. 1, p. 69-75, jan./mar. 2009 Fisioterapia em Movimento CARACTERÍSTICAS DE CRIANÇAS COM MIELOMENINGOCELE: implicações para a fisioterapia Characteristics of children with myelomeningocele: implications for physical therapy Aline Dias Brandão a, Dirce Shizuko Fujisawa b, Jefferson Rosa Cardoso c a Acadêmica do 4º. ano do curso de graduação em Fisioterapia da Universidade Estadual Londrina, PR, Bolsista de Iniciação Científica CNPq, Londrina, PR - Brasil, e-mail: li_dbrandao@yahoo.com.br b Professora. do Departamento de Fisioterapia da Universidade Estadual de Londrina, Londrina, PR - Brasil, e-mail: dirce_fujisawa@uel.br c Professor do Departamento de Fisioterapia da Universidade Estadual de Londrina, Londrina, PR - Brasil, e-mail: jeffcar@hotmail.com Resumo INTRODUÇÃO: A mielomeningocele afeta os sistemas: nervoso, músculo-esquelético e genitourinário, este trabalho tem por objetivo analisar as características de crianças com mielomeningocele atendidas no ambulatório de um Hospital Universitário. METODOLOGIA: O estudo realizado foi retrospectivo, e a coleta de dados baseada nos prontuários de 42 crianças com diagnóstico de mielomeningocele. As variáveis categóricas foram apresentadas por meio de frequência absoluta e relativa. Para a associação foi utilizada a análise univariada por meio do teste do Quiquadrado (com ou sem correção de Yates) ou teste exato de Fisher. RESULTADOS: Houve predomínio do gênero feminino (52,4%) e da raça branca (76,1%), a média de idade foi de 5,1 anos e 38,1% apresentavam lesão no segmento lombar baixo. As complicações mais frequentes foram: hidrocefalia, infecção urinária e deformidades. A associação ocorreu entre luxação do quadril e segmento lombar alto (P=0,015) e fratura e lesão torácica (P=0,001). A desnutrição ocorreu em 15 (35,7%) crianças. Das crianças avaliadas, 35 (83,3%) integravam famílias com renda até três salários mínimos. Todas as crianças haviam sido submetidas às intervenções cirúrgicas, porém 8 (19%) não faziam fisioterapia. Quanto às formas de locomoção, 19 (45,2%) crianças eram indeterminadas, 15 (35,7%) deambuladoras e 8 (19%) cadeirantes. CONCLUSÃO: A fisioterapia tem papel fundamental na reabilitação da criança com mielomeningocele, visto que a manifestação clínica, as complicações, as dificuldades enfrentadas pelas suas famílias e as intervenções cirúrgicas necessárias são variadas e complexas. Palavras-chave: Mielomeningocele. Disrafismo espinal. Fisioterapia.

70 Brandão AD, Fujisawa DS, Cardoso JR. Abstract INTRODUCTION: Myelomeningocele affects the nervous, musculoskeletal and urogenital systems; this work aim is to analyze the characteristics of children with myelomeningocele attended in the outpatient of University Hospital. METHOD: A retrospective study was performed, and the data collection was based on the hospital history registers of 42 children with diagnosis of myelomeningocele. The categorical variables were presented in absolute and relative frequency. For the association, the univariate analysis was applied through the Quisquare test (with or without Yates correction) or by the Fisher exact test. RESULTS: The female gender (52,4%) and the white race (76,1%) prevailed, the mean age was 5,1 years and 38.1% presented lower back segment injury. The most frequent complications were: hydrocephaly, urinary infection and deformities. An association occurred between hip dislocation and the high lumbar segment (P=0,015) and fractures and thoracic injury (P=0,001). The innutrition occurred in 15 (35.7%) children. Of the children assessed, 35 (83.3%) integrated families with income up to three minimum salaries. All the children were submitted to the surgical interventions, however 8 (19%) were not undergoing physical therapy. As for the means of locomotion, 19 (45.2%) were indeterminate, 15 (35.7%) walked and 8 (19%) used wheelchairs. CONCLUSION: Physical therapy has a fundamental role in rehabilitation of the child with myelomeningocele, since the clinical manifestation, the complications, the difficulties faced by their families, the necessary surgical interventions are varied and complex. Keywords: Myelomeningocele. Spinal dysraphism. Physical therapy. INTRODUÇÃO A mielomeningocele é caracterizada por protusão cística, que contém a medula espinhal e meninges, causada por falha no fechamento do tubo neural, durante a quarta semana de gestação (1). A mielomeningocele ocorre em, aproximadamente, 1:1000 nascidos vivos e é considerada como a segunda causa de deficiência motora infantil (1, 2, 3). A causa da mielomeningocele é desconhecida, mas os fatores genéticos e ambientais têm papel significante (1). O ácido fólico é considerado fator de risco mais importante para os defeitos do fechamento do tubo neural (DFTNs) e a mielomeningocele e a anencefalia os mais comuns entre os recém-nascidos vivos (4). A mielomeningocele afeta os sistemas: nervoso, músculo-esquelético e genito-urinário. A gravidade e o grau de inabilidade dependem do local em que ocorreu a lesão medular, bem como, de outros fatores neurológicos (5). A mielomeningocele pode ocorrer em qualquer região da medula, mas 75% são de localização lombo-sacra (1). A criança com mielomeningocele pode apresentar incapacidades crônicas graves, como paralisia dos membros inferiores, hidrocefalia, deformidades dos membros e da coluna vertebral, disfunção vesical, intestinal e sexual, dificuldade de aprendizagem e risco de desajuste psicossocial (4,6). O tratamento de crianças com mielomeningocele requer intervenção clínica e cirúrgica precoce. A cirurgia de correção da mielomeningocele tem como finalidade diminuir a exposição da medula espinhal e raízes ao meio ambiente e a perda liquórica, o que possibilita a reparação nervosa e melhora funcional (7). Os maiores problemas estão relacionados com a possibilidade de levantar, deambular e controlar voluntariamente os sistemas vesical e intestinal. O enfoque terapêutico visa à independência funcional da criança, principalmente, no que se refere à deambulação. Nesse sentido, a fisioterapia tem papel fundamental na independência funcional da criança com mielomeningocele. A complexidade e a diversidade do quadro clínico apresentado pelas crianças com mielomeningocele demandam avaliação fisioterápica criteriosa, visto que é necessário estabelecer programa terapêutico adequado para desenvolver o máximo de sua funcionalidade.

Características de crianças com mielomeningocele 71 Esse estudo teve como objetivo analisar as características clínicas, socioeconômicas, terapêuticas e de independência funcional de crianças com mielomeningocele com o intuito de possibilitar a intervenção da fisioterapia mais adequada e efetiva. METODOLOGIA Foi realizado estudo retrospectivo, e a coleta de dados baseada nas informações dos prontuários de crianças atendidas no projeto de extensão Grupo de atendimento multidisciplinar a crianças portadoras de bexiga neurogênica. As informações foram coletadas em protocolo, que continha os seguintes itens: dados de identificação e aspectos clínicos, socioeconômicos, terapêuticos, funcionais e educacionais. Os dados de identificação buscaram informações sobre gênero, cor, procedência e idade. Nos aspectos clínicos foram levantados: classificação quanto ao segmento neurológico afetado, presença de complicações (escaras, luxação de quadril, fraturas, hidrocefalia, medula presa, infecção do trato urinário e deformidades) e diagnóstico nutricional. O segmento neurológico afetado foi determinado pela avaliação da função motora e sensitiva, de acordo com a American Spinal Injury Association s (ASIA) e International Standards for Neurological Classification of Spinal Cord Injury (8). A classificação como lesão torácica, lombar alta, lombar baixa e sacral foi realizada após a determinação do segmento neurológico afetado (9). O diagnóstico nutricional foi baseado no score Z do índice peso para estatura, descritos pela nutricionista integrante da equipe multidisciplinar (10). O aspecto socioeconômico se referiu à renda familiar, conforme informações descritas no prontuário. Os aspectos terapêuticos abordaram a realização de fisioterapia e intervenções cirúrgicas. No aspecto independência funcional foi avaliada a forma de locomoção: indeterminado, cadeirante ou deambulador. As variáveis categóricas foram apresentadas por meio de frequência absoluta e relativa. Para avaliar a associação entre segmento neurológico e medula presa, luxação de quadril, deformidades e fratura; entre fratura e locomoção, entre diagnóstico nutricional e condição socioeconômica foi utilizada a análise univariada por meio do teste do Quiquadrado (com ou sem correção de Yates) ou teste exato de Fisher, quando necessário. A significância estatística foi estipulada em 5% (P d 0,05). RESULTADOS Foram incluídos no estudo 42 prontuários de crianças com diagnóstico de mielomeningocele. Houve predomínio do gênero feminino (22-52,4%), 32 brancas, 6 pardas e 4 negras. Das crianças avaliadas, apenas 2 (4,8%) eram provenientes da zona rural. A idade mínima foi de 8 meses e a máxima de 14 anos e 3 meses, média 5,1 anos. Quanto ao aspecto clínico, os segmentos neurológicos afetados foram torácico (8-19%), lombar alto (11-26,2%), lombar baixo (16-38,1%) e sacral (7-16,7%). Dentre as complicações, ocorreram a hidrocefalia (16 38,1%), a infecção urinária (16 38,1%), a úlcera de pressão (15-35,7%), a luxação de quadril (9-21,4%), a fratura (6-14,3%) e a medula presa (5-11,9%). As deformidades encontradas foram: pé equino-varo (12-28,6%), flexão de joelho (7-16,7%), hiperextensão de joelho (1-2,4%), valgismo dos joelhos (1-2,4%), flexão de quadril (3-7,1%), extensão de quadril (1-2,4%), rotação externa de quadril bilateral (1-2,3%), escoliose (4 9,5%) e cifose (3-7,1%). Houve associação entre luxação de quadril e segmento neurológico lombar alto, das 9 crianças que tinham luxação de quadril, 5 apresentavam o segmento lombar alto afetado (P =0,015). Também ocorreu associação entre fraturas e segmento neurológico torácico, das 6 crianças que apresentavam fraturas, 5 tinham o segmento torácico afetado (P=0,001). O diagnóstico nutricional revelou que 21 (50%) crianças eram eutróficas, 15 (35,7%) desnutridas e 5 (12%) sobrepeso, apenas um prontuário não continha os dados sobre o estado nutricional. Quanto ao aspecto socioeconômico, 35 (83,3%) crianças integravam famílias que sobreviviam com até três salários mínimos, 5 (11,9%) com mais de três salários mínimos e 2 (4,8%) não possuíam renda fixa.

72 Brandão AD, Fujisawa DS, Cardoso JR. No aspecto terapêutico, verificou-se que 8 (19%) crianças não realizavam fisioterapia, todas haviam sido submetidas às intervenções cirúrgicas, e as mais frequentes foram fechamento da mielomeningocele, derivação ventrículo peritoneal e correção ortopédica. Em relação à independência funcional, constataram-se as seguintes formas de locomoção: 15 (35,7%) crianças eram deambuladoras, 8 (19 %) cadeirantes e 19 (45,2%) indeterminado. DISCUSSÃO Os resultados encontrados mostraram que, de acordo com a literatura, ocorreu predomínio do gênero feminino e da raça branca (1,2,11). Apenas 2 crianças eram procedentes da zona rural, porém deve-se dar atenção especial a elas, já que as oriundas da zona urbana desenvolvem com mais frequência a deambulação (12). Em 17 crianças, o segmento afetado foi lombar baixo, ou seja, apresentam melhor prognóstico de marcha (9). Entretanto, crianças com lesão medular alta também podem conseguir a deambulação, desde que recebam cuidados especiais (13). Nesse sentido, a fisioterapia deve preparar e treinar a deambulação em todas as crianças com mielomeningocele, independente do segmento neurológico afetado, mesmo que, posteriormente, seja realizada a opção pela locomoção em cadeira de rodas. O recém-nascido com mielomeningocele tem 80% a 85% de possibilidade de desenvolver hidrocefalia, e a incidência pode variar de 0,3 a 1/1.000 nascimentos (14-17). Essas variações podem estar relacionadas a diferenças étnicas, geográficas e metodológicas (18). A hidrocefalia, muitas vezes, não é evidente logo após o nascimento, e a derivação ventrículo-peritoneal realizada na primeira semana de vida (19). Em vários casos, a presença da hidrocefalia resulta em inabilidade intelectual ou dificuldade de aprendizagem, atraso do desenvolvimento neuropsicomotor e interferência no prognóstico de marcha (16). A infecção do trato urinário (ITU) é uma das complicações mais frequentes em crianças com mielomeningocele (20). Portanto, crianças com mielomeningocele requerem acompanhamento regular da neurocirurgia, nefropediatria e enfermagem. As úlceras de pressão reduzem a possibilidade de deambulação e podem levar a necessidade de amputação das extremidades inferiores (21). O fisioterapeuta deve supervisionar e orientar os pais quanto aos cuidados diários, relativos à ausência de sensibilidade, como por exemplo, temperatura da água do banho, ajuste das roupas, inserção gradativa de órtese, mudança de decúbito e alívio da pressão na posição sentada (9). A luxação do quadril é frequente nas lesões torácica e lombar alta, mas raramente requerem intervenção cirúrgica, pois não interferem na habilidade da criança em deambular (22). Dessa forma, crianças que apresentam luxação do quadril não têm restrição para ortostatismo e treino de marcha na fisioterapia. Das 6 crianças que apresentaram fraturas, 5 tinham o segmento torácico afetado, e somente 3 realizavam ortostatismo. Embora não haja diferença estatisticamente significante entre crianças com mielomeningocele deambuladoras e não deambuladoras em relação à densidade mineral óssea, a excreção de cálcio na urina de não deambuladores é maior do que nos deambuladores (23). Destaca-se que a fisioterapia deve proporcionar mobilização das extremidades inferiores, ortostatismo e deambulação não funcional nas crianças com lesão torácica ou que não sejam deambuladoras. Por outro lado, o manuseio de crianças com mielomeningocele e diminuição da densidade mineral óssea deve ser cuidadoso (24). As manifestações clínicas da medula presa incluem piora dos déficits motores e sensoriais, incontinência urinária e fecal, evolução de deformidades músculo-esqueléticas, dor em região lombar e alteração súbita do padrão de marcha (25). O fisioterapeuta deve estar atento e encaminhar a criança com mielomeningocele para avaliação neurológica sempre que houver sintomas de medula presa. As deformidades na mielomeningocele variam conforme o segmento neurológico afetado: crianças com lesão torácica são, particularmente, propensas às escolioses e as cifoses; as contraturas no quadril e joelho e as deformidades nos pés ocorrem universalmente; a luxação de quadril na lesão lombar alta e; nas crianças com lesão sacral e lombar baixa predominam as deformidades nos pés e as ulceras de pressão (22). O acompanhamento ortopédico deve ser frequente, com a finalidade de alinhar as extremidades inferiores para melhor desempenho funcional. A fisioterapia deve se preocupar com a manutenção da amplitude de movimento, a estabilidade das articulações e a funcionalidade das extremidades inferiores.

Características de crianças com mielomeningocele 73 A desnutrição encontrada no estudo contradiz com a literatura que associa a mielomeningocele ao sobrepeso e a obesidade (5). O treino de marcha deve ser realizado com pausas, como forma de manter a marcha funcional e a frequência cardíaca e controlar o gasto energético (26). A situação socioeconômica das famílias, provavelmente, interferiu desfavoravelmente no estado nutricional das crianças com mielomeningocele. A baixa renda familiar está associada também com as barreiras enfrentadas por estas crianças e suas famílias na realização do tratamento. Assim, faz-se necessário o acompanhamento da nutrição e do serviço social para que seja recomendada a dieta adequada à criança, as estratégias para a subsistência desses familiares e a possibilidade de realizar os procedimentos indicados. A fisioterapia faz parte do processo de reabilitação e deve ser realizada nas crianças com mielomeningocele. As intervenções cirúrgicas, mais frequentes, correspondiam aos descritos na literatura (2, 19, 22). As formas de locomoção, identificadas no estudo, estavam relacionadas ao segmento neurológico afetado e a idade. As crianças com lesão alta eram cadeirantes, as com lesão baixa deambuladoras e indeterminada, aquelas que o desenvolvimento motor e a condição física não as tornavam apta para a marcha, ou ainda, era precoce o uso de cadeira de rodas. O início da deambulação ocorre em diferentes idades, conforme o segmento neurológico afetado: torácico 4 anos e 6 meses; lombar alto 5 anos e 2 meses; lombar baixo 3 anos e 10 meses; sacral 2 anos e 2 meses (27). As órteses e os dispositivos auxiliares podem ser necessários ao treino de marcha. O treino de marcha pode ser iniciado com a criança em pé, apoiada na parede, para que se adapte a posição ortostática, e posteriormente, a deambulação. O treinamento de colocação e retirada de órteses, queda, sentar e levantar promove a independência funcional. O fisioterapeuta deve indicar a cadeira de rodas, quando a marcha não for funcional, e o treino deve promover deslocamento nos vários tipos de solo, transferências e alivio de pressão. CONCLUSÃO Os resultados demonstraram que a ocorrência de luxação do quadril e de fratura está associada ao segmento neurológico afetado lombar alto e torácico, respectivamente. A fisioterapia tem papel fundamental na reabilitação da criança com mielomeningocele, visto que a manifestação clínica, as complicações, as dificuldades enfrentadas pelas suas famílias e as intervenções cirúrgicas necessárias são variadas e complexas. Assim, a fisioterapia em crianças com mielomeningocele demanda avaliação criteriosa, visto que é necessário estabelecer programa terapêutico individualizado e adequado. Ressalta-se que, a atuação do fisioterapeuta deve acontecer de forma integrada aos demais profissionais da equipe multidisciplinar. REFERÊNCIAS 1. Feeley BT, Ip TC, Otsuka NY. Skeletal maturity in myelomeningocele. J Pediatr Orthop. 2003;23(6):718-21. 2. Ulsenheimer MM, Antoniuk AS, Santos LHC, Ceccatto MP, Silveira AE, Ruiz AP, et al. Myelomeningocele: a Brazilian University Hospital experience. Arq Neuropsiquiatr. 2004;62(4):963-68. 3. Iborra J, Pagès E, Cuxart A. Neurological abnormalities, major orthopaedic deformities and ambulation analysis in a myelomeningocele population in Catalonia (Spain). Spinal Cord. 1999;37(5):351-7. 4. Aguiar MJB, Campos AS, Aguiar RALP, Lana AMA, Magalhães RL, Babeto LT. Defeitos de fechamento do tubo neural e fatores associados em recém-nascidos vivos e natimortos. J Pediatr. 2003;79(2):129-34.

74 Brandão AD, Fujisawa DS, Cardoso JR. 5. Littlewood RA, Trocki O, Shepherd RW, Shepherd K, Davies PSW. Resting energy expenditure and body composition in children with myelomeningocele. Pediatr Rehabil. 2003;6(1):31-7. 6. Pádua L, Rendeli C, Rabini A, Girardi E, Tonali P, Salvaggio E. Health-related quality of life and disability in young patients with spina bifida. Arch Phys Med Rehabil. 2002;83(10):1384-8. 7. Didelot WP. Current concepts in myelomeningocele. Curr Opin Orthop. 2003;14(6):398-402. 8. Maynard FM, Bracken MB, Creasey G, Dittuno JF, Donovan WH, Ducker TB, et al. International standards for neurological and functional classification of spinal cord injury. American Spinal Injury Association. Spinal Cord. 1997;35(5):266-74. 9. Tappit-Emas E. Espina bífida. In: Tecklin JS. editor. Fisioterapia pediátrica. Porto Alegre: Artmed; 2002. p. 141-187. 10. World Health Organization. Physical status: the use and interpretation of anthropometry. Geneva, 1995. Technical Report Series 854. [Cited 2008 Mar 01] Available from: www.who.int/ childgrowth/publications/physical_status/en/index.html 11. Greene WB, Terry RC, DeMasi RA, Herrington RT. Effect of race and gender on neurological level in myelomeningocele. Dev Med Child Neurol. 1991;33(2):110-7. 12. Buccimazza S, Molteno C, Dunne T. Pre-School follow-up of a cohort of children with myelomeningocele in Cape Town, South Africa. Ann Trop Paediatr. 1999;19(3):245-52. 13. Charney EB, Melchionni JB, Smith DR. Community ambulation by children with myelomeningocele and high-level paralysis. J Pediatr Orthop. 1991;11(5):579-82. 14. Schrander-Stumpel C, Fryns JP. Congenital hydrocephalus: nosology and guidelines for clinical approach and genetic counselling. Eur J Pediatr. 1998;157(5):355-62. 15. Blackburn BL, Fineman RM. Epidemiology of congenital hydrocephalus in Utah, 1940-1979: Report of an iatrogenically related Epidemic. Am J Med Genet. 1994;52(2):123-9. 16. Rajab A, Vaishnav A, Freeman NV, Patton MA. Neural tube defects and congenital hydrocephalus in the sultanate of Oman. J Tropical Pediatr. 1998;44(5):300-3. 17. Xiao KZ, Zhang ZY, Su YM, Liu FQ, Yan ZZ, Jiang ZQ, et al. Central nervous system congenital malformations, special neural tube defects in 29 provinces, metropolitan cities and autonomous regions of China: Chinese Birth Defects Monitoring Program. J Epidemiol. 1990; 19(4):978-82. 18. Cavalcanti DP, Salomão MA. Incidência de hidrocefalia congênita e o papel do diagnóstico pré-natal. J Pediatr. 2003;79(2):135-40. 19. Rintoul NE, Sutton LN, Hubbard AM, Cohen B, Melchionni J, Pasquariello PS, et al. A new look at myelomeningocele: functional level, vertebral level, shunting, and implication for fetal interventions. Pediatrics. 2002;109(3):409-13. 20. Stamm AMNF, Bicca J. Bacteriúria assintomática. Perfil clínico-epidemiológico. Rev Bras Med. 2003;60(4):185-90. 21. Allan RK, Brown JP, Pugh LI, Stasikelis PJ. Function of children with myelodysplasia and lower extremity amputations. J Pediatr Orthop. 2007;27(1):51-3. 22. Karol LA, King E. The orthopaedic management of myelomeningocele. Oper Tech Plast Reconstr Surg. 2000;7(2):53-9.

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