A Judiaria de Torres Vedras Carlos Guardado da Silva rua dos Celeiros de Santa Maria antiga rua da Judiaria (Torres Vedras) A presença de judeus em Torres Vedras aparece testemunhada na documentação a partir da segunda metade do século XIII, nomeadamente no reinado de D. Afonso III (1248-1279) 1. Todavia, Pedro Gomes Barbosa coloca a hipótese da comunidade ser anterior ou consentânea à reconquista da vila, vindo, neste caso, os seus membros dos centros urbanos então integrados no espaço cristão. Certo é que o poder económico e a influência política de alguns dos seus membros parecem reforçar a tese de uma presença antiga e bem consolidada 2. Eram naturais de Torres Vedras os dois rabis-mor de D. Dinis (1279-1325), D. Judah Guedelha e seu filho D. Guedelha ben Judah, tendo este permanecido no cargo ainda em parte do reinado de D. Afonso IV (1325-1357). Ambos foram agraciados por aquele monarca com numerosas doações patrimoniais, nomeadamente no sul do reino, tendo ampliado de forma considerável as suas fortunas. Em Torres Vedras, D. Dinis doou a Judas Negro, filho de D. Guedelha, seu rabi-mor, uns pardieiros para que os transformasse em casas. 1 TAVARES, Maria José Ferro As judiarias de Portugal. Lisboa : CTT Correios de Portugal, 2010. p. 127. 2 SILVA, Carlos Guardado da A judiaria de Torres Vedras. In Torres Vedras Antiga e Medieval. Lisboa : Colibri ; Torres Vedras : Câmara Municipal, 2008. p. 91.
Também durante o reinado de D. Dinis, alguns judeus proprietários no termo torriense obtiveram elevados lucros com a compra e venda de propriedades, assim como através do empréstimo de dinheiro a juros, uma actividade que tradicionalmente estava associada à comunidade 3. A par destes proprietários, alguns judeus eram simples artesãos ou camponeses, enquanto outros se dedicavam ao arrendamento de rendas régias e ao artesanato, sendo esta uma actividade bastante lucrativa, que levou a igreja de S. Pedro a exigir-lhes o pagamento de dízimas pessoais. No que diz respeito às rendas régias, por exemplo, Guedelha Fraire arrendou, em 1381, as sisas gerais da vila e termo, por um período de três anos, pela quantia de seis mil libras 4. No seguimento das suas lutas com a Igreja, D. Dinis comprometeu-se a obrigar os judeus a morarem, em bairro próprio, apartados dos cristãos 5. Uma prática de segregação de tipo religioso que não era, porém, inédita, uma vez que já era feita no seio dos centros urbanos islâmicos. Para Torres Vedras não temos conhecimento da existência de qualquer judiaria 6 anterior ao reinado de D. Afonso IV (1325-1357), altura em que o monarca asynara a dita judaria aos judeus da dita villa que pellos tempos fossem pera morarem em ella e que era isenta. É provável que no mesmo reinado a Comuna 7 se tivesse constituído, dotando-se dos foros e privilégios habituais, apesar dos dados socio-económicos que possuímos serem escassos. Todavia, a separação de facto parece ser anterior, uma vez que, em 1322, aparece num documento a referência a um filho de João Pais da Judaria, denunciando o elemento toponímico a existência de um lugar apartado para os seguidores da Thorah, assim como já em 1299, pelo menos, 3 VICENTE, António Maria Balcão Judeus em Torres Vedras. In Turres Veteras II : Actas de história moderna. Torres Vedras : Câmara Municipal ; Lisboa : Instituto de Estudos Regionais e do Municipalismo Alexandre Herculano, 2000. p. 29-31; BARBOSA, Pedro Gomes alguns grupos marginais nos documentos de Santa Maria de Alcobaça : sécs. XII e XIII. In Documentos, lugares e homens : estudos de história medieval. Lisboa : Cosmos, 1991. p. 115 e ss. 4 Chancelaria de D. Fernando. Liv. 3.º, fl. 3-3v.º. 5 FERRO, Maria José Pimenta - Os Judeus em Portugal no Século XIV. 2.ª ed. Lisboa : Guimarães Ed., 1970. p. 23-24. 6 Isto é, uma rua ou ruas em que moravam os judeus. 7 Entidade administrativa da Judiaria. 2
alguns judeus moravam em casas contíguas, nomeadamente Isaac Guedelha e D. Judas Guedelha 8, rabi-mor de D. Dinis. Deste modo, a Judiaria já marcava a paisagem da urbe medieval, ainda que só se tenha constituído formalmente no reinado de D. Afonso IV, como parece testemunhar um processo que opunha a comuna judaica às igrejas da vila e ao cabido da sé de Lisboa, a respeito de dízimas. A esse propósito o procurador da comuna alegou em sua defesa que El Rey dom Afonso que ( ) de perdom asynara a dita judaria aos Judeus da dita villa que pellos tempos fossem pera morarem em ella e que era Isenta 9. Até então, as comunidades judaicas já se encontravam instaladas em judiaria, em muitos centros urbanos, não necessitando para tal de uma carta fundacional régia. A situação altera-se precisamente no reinado do rei lavrador, conferindo o monarca personalidade jurídica a uma realidade social que se baseava no costume, ao mesmo tempo que intervinha na sua administração interna 10. A presumível existência de uma sinagoga parece reforçar a presença de uma comunidade judaica considerável na vila e termo. Pois ainda no reinado de D. Afonso III, o capelão dos judeus, a par de outros três membros da mesma comunidade, aparece a testemunhar a doação de uma propriedade à infanta D. Sancha por Moisés e Aviziboa, moradores em Torres Vedras. Mas a judaria não se encontraria ainda constituída, fazendo com que o seu aparecimento e fixação tivessem a ver, muito provavelmente, com a localização anterior do templo. A Judiaria torriense ocupava uma só rua (sensivelmente no sítio da actual rua dos Celeiros de Santa Maria), onde, no início, conviviam homens das duas religiões. Mas a influência dos judeus de Torres Vedras, nomeadamente os rabi-mores de D. Dinis, D. Judas Guedelha e D. Guedelha, 8 ANTT Santa Maria. m. 27, n.º 25. D. Judas Guedelha era, muito provavelmente, irmão de Salomão Guedelha, o rabi dos judeus em Torres Vedras, em 1318. Cf. BARBOSA, Pedro Gomes Povoamento e estrutura agrícola na Estremadura Central : séc. XII a 1325. Lisboa : Instituto Nacional de Investigação Científica, 1992. p. 294. 9 ANTT São Pedro. m. 4, n.º 237. 10 VICENTE, António Maria Balcão Judeus em Torres Vedras. In Turres Veteras II : Actas de história moderna. Torres Vedras : Câmara Municipal ; Lisboa : Instituto de Estudos Regionais e do Municipalismo Alexandre Herculano, 2000. p. 28. 3
seu filho, que lhe sucedeu no cargo em 1316 11, parecem ter contribuído para a sua existência, desde cedo, e para o recrudescimento da importância da comunidade judaica de Torres Vedras, desde finais do século XIII 12, com a instituição da sua comuna. Um crescimento da importância da comunidade judaica de Torres Vedras, assim como da família Guedelha, a que não é certamente alheia a sua participação no arrabiado régio. Para a formação de uma Comuna Judaica era necessário o número mínimo de dez judeus, tendo como centro aglutinador a sinagoga. A comuna tinha o poder de se organizar e viver como entidade administrativa independente do concelho, dispondo de um rabi, encarregado do ministério religioso e da educação das crianças, e de um escrivão, que anotava todos os negócios de importância. Quanto à população, os testemunhos também parecem ser escassos, comparados com o conjunto de pelo menos vinte e cinco famílias na vila de Torres Vedras, em 1381, número correspondente aos fogos tributáveis. A partir do século XV, multiplicam-se os dados referentes a judeus torrienses, denunciando uma intensa actividade comercial da comunidade, autorizando-os a comerciar com cristãos. Nesta altura a Comuna contava com um cirurgião (Judas Lexorda, a partir de 1471, e José Mouçam, a partir de 1482), e vinte e um mesteirais. A comunidade judaica torriense conheceu um enorme crescimento nesta centúria, tornando-se necessário o alargamento da Judiaria, em 1469, cuja porta avançou de modo a incluir as casas onde paulatinamente se instalaram os judeus que não tinham encontrado espaço para morar dentro dela. Todavia, nos finais do século XV aumentara um sentimento anti-semita na Península Ibérica. Os membros da comunidade judaica eram acusados e julgados como culpados de crimes de feitiçaria, más palavras e roubo, culminando, no reino de Portugal, com a expulsão decretada em Dezembro de 1496, de todos os homens que não quisessem converter-se ao cristianismo. 11 WILKE, Carsten L. História dos judeus portugueses. Lisboa : Edições 70, 2009. p. 24. 12 BARBOSA, Pedro Gomes Povoamento e estrutura agrícola na Estremadura Central : séc. XII a 1325. Lisboa : Instituto Nacional de Investigação Científica, 1992. p. 282. 4
A presença antiga da judiaria medieval, ainda hoje bem definida do espaço urbano do centro histórico, constitui um testemunho da presença judaica na urbe e no território de Torres Vedras, de uma comunidade influente e em crescimento, alcançando, pelo menos, em 1381, como vimos anteriormente, o número de vinte e cinco famílias 13. Era constituída por uma só rua onde, de início, convivia gente das duas religiões 14 cristã e judaica -, a exemplo de muitas vilas e cidades medievais, mas que, progressivamente, se reserva aos seguidores da Lei de Moisés. E localizava-se no centro da urbe, como as judiarias de Óbidos, Sintra e Tomar. Teriam sido necessários dez fogos para a constituição da judiaria. Mas este número encontrava-se largamente ultrapassado em finais do século XIV, subentendendo-se que a comunidade judaica torriense se encontrava em crescimento. Assim se explica a necessidade de expandir a judiaria, na segunda metade do século XV, através da mudança de localização de uma das suas portas de modo a incluir as casas da cristandade onde se tinham instalado os judeus que não tinham encontrado espaço no seu interior para aí residirem 15. Hoje, estes testemunhos judaicos fazem parte do património material e imaterial de Torres Vedras, tornando presente um passado assaz longínquo, mas que permanece na memória colectiva das suas gentes. Alguns dos membros da comunidade judaica deixaram o seu registo em muitos dos cartórios das colegiadas da vila e dos mosteiros medievais, cujo levantamento importa efectuar, fazendo notar-se a sua forte ligação à comunidade mosaica de Atouguia. Outros, porém, não deixaram qualquer registo escrito que os permita identificar, ainda que tenham deixado testemunhos anónimos da sua presença, de que são exemplos as diversas estelas funerárias medievais, em número de dezoito, nas quais se inscreveu o pentalfa 16. Todos são testemunhos dessa comunidade que habitou a judiaria, sensivelmente o 13 RODRIGUES, Ana Maria Seabra de Almeida Ibidem. p. 132. 14 ANTT Santa Maria. m. 27, n.º 18 ; m. 29, n.º 14. 15 ANTT Chancelaria de D. Afonso V. Liv. 31, fl. 58. 16 MOREIRA, José Beleza Catálogo das cabeceiras de sepultura do concelho de Torres Vedras. Torres Vedras : Associação para a Defesa e Divulgação do Património Cultural de Torres Vedras, 1982. 5
espaço ocupado actualmente pela rua dos Celeiros de Santa Maria, com um novo nome, é certo. No sítio da sinagoga, segundo a tradição, ergueu-se, em tempos, um Passo, fazendo permanecer a sacralização do espaço, ainda que seguindo outro Livro. E, como em outras comunidades, alguns indivíduos, nomeadamente dentre a família Guedelha, ligada nos séculos XIV e XV à família lisboeta Negro 17 ou Ibn Yahya, destacaram-se, adquirindo prestígio e poder a nível nacional. Bibliografia sumária BARBOSA, Pedro Gomes Povoamento e estrutura agrícola na Estremadura Central : séc. XII a 1325. Lisboa : Instituto Nacional de Investigação Científica, 1992. BARBOSA, Pedro Gomes alguns grupos marginais nos documentos de Santa Maria de Alcobaça : sécs. XII e XIII. In Documentos, lugares e homens : estudos de história medieval. Lisboa : Cosmos, 1991. p. 105-131. FERRO, Maria José Pimenta - Os Judeus em Portugal no Século XIV. 2.ª ed. Lisboa : Guimarães Ed., 1970. MOREIRA, José Beleza Catálogo das cabeceiras de sepultura do concelho de Torres Vedras. Torres Vedras : Associação para a Defesa e Divulgação do Património Cultural de Torres Vedras, 1982. p. 64. MUCZNIK, Lúcia Liba [et al.] - Negro, família. Dicionário do Judaísmo Português. Lisboa : Ed. Presença, 2009. RODRIGUES, Ana Maria Seabra de Almeida Torres Vedras : a vila e o termo nos finais da Idade Média. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, 1995. SILVA, Carlos Guardado da A judiaria de Torres Vedras. In Torres Vedras Antiga e Medieval. Lisboa : Colibri ; Torres Vedras : Câmara Municipal, 2008. p. 91-93. TAVARES, Maria José Ferro As judiarias de Portugal. Lisboa : CTT Correios de Portugal, 2010. VICENTE, António Maria Balcão Judeus em Torres Vedras. In Turres Veteras II : Actas de história moderna. Torres Vedras : Câmara Municipal ; Lisboa : Instituto de Estudos Regionais e do Municipalismo Alexandre Herculano, 2000. p. 21-31. WILKE, Carsten L. História dos judeus portugueses. Lisboa : Edições 70, 2009. 17 Homens de negócio, rendeiros de direitos reais e letrados que, ao longo do século XV, possuem o arrabiado-mor, integrando a oligarquia comunal. Na comuna, dominam a sua escrivaninha. Cf. MUCZNIK, Lúcia Liba [et al.] - Negro, família. Dicionário do Judaísmo Português. Lisboa : Ed. Presença, 2009. p. 386-387. 6