[(1886), Jornal do Commercio, ano XXXIII, nº 9839, 17 de Setembro (Lisboa)] IV ANTROPOLOGIA. OS CINGALESES E OS DO JARDIM DE ACLIMAÇÃO DE PARIS



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Transcrição:

[(1886), Jornal do Commercio, ano XXXIII, nº 9839, 17 de Setembro (Lisboa)] IV ANTROPOLOGIA. OS CINGALESES E OS DO JARDIM DE ACLIMAÇÃO DE PARIS O mais curioso espectáculo que pode oferecer um Jardim de Aclimação é sem dúvida alguma o de criaturas humanas trazidas dos mais longínquos países, arrancadas à sua vida selvagem, à floresta ou ao jungle, para serem instaladas entre uns magros arbustos no canto de uma grande capital. Ver um leão a rugir dentro de uma jaula, ou um urso a atirar-se furioso às paredes dum fosso, tornou-se um espectáculo banal. Depois que esta ratoeira da teoria de Darwin, como quase lhe chama M. de Quatrefages apanhou, como ratos esfomeados, os nossos espíritos, uma ordem de animais, os grandes macacos, observados vivos nos jardins zoológicos, constituíam uma novidade crescente e um exemplo especial de observações para o naturalista filósofo e para o antropologista. Mas o macaco é agarrado e trazido à força, e conquanto parecido com o homem, e segundo as doutrinas transformistas, seu próximo parente, não é um homem. Convencer não é um ou dois selvagens, mas uma família inteira, a vir habitar entre os brancos, conduzi-los e instalá-los pacificamente, a esse que nós não podemos deixar de considerar como homens nossos irmãos, e que são, alguns, pouco mais do que macacos, era sem dúvida o mais importante, e constitui um dos mais seguros elementos de divulgação das teorias modernas, e do seu progresso, facilitando o estudo á tête repoussée do estado mental das tribos mais próximas da primitiva humanidade e menos acessíveis no seu meio natural. É nesse meio que o estudo psicológico das raças deve ser de preferência feito. Contudo duas razões se apresentam para que o estudo delas, transplantadas num meio civilizado, seja especialmente interessante: por um lado, o poderem ser estudados, simultaneamente, pelos mesmos sábios os mesmos indivíduos; e por outro, o problema da sua adaptação a um meio físico e social radicalmente oposto e que nos habituámos a chamar melhor. Paris tem podido realizar nestes últimos anos a aquisição de exemplares muito curiosos, deste género. Em 1881 foi uma troupe de 11 habitantes da Terra-do-Fogo, que andavam acocorados a imitar os movimentos e o grasnar dos patos, que bebiam água como os cães, com a língua, pondo as mãos no chão por não saberem erguer a escudela. O espectáculo que estes naturais deram à população parisiense, foi dos mais instrutivos; ela pôde estudar na natureza o homem primitivo e completar as suas ideias sobre a aurora da humanidade, porque, de todas as raças mais inferiores, os fueguinos são, com razão, considerados os mais puros representantes do homem quaternário. Em 1883 e agora, são os cingaleses, ou naturais de Ceilão, que constituem o objecto de maior curiosidade do Jardim de Aclimação de Paris, conquanto o seu estado físico e mental não possa comparar-se ao dos hóspedes de 1881. Ceilão, o paraíso de verdura de que Hœckel, no livro da sua viagem à Índia, nos descreve a fauna e a flora e os jardins submarinos de coral, o berço da humanidade, a ilha onde está o rebento da figueira sagrada que abrigava Çakyamúni mergulhado nas suas santas meditações, a opulenta Taprobana dos gregos e dos romanos, «ainda além» da qual nós passámos, a ilha que, do século dezasseis ao

século dezoito, as primeiras nações coloniais, Portugal, Holanda, França e Inglaterra, se disputaram! Para todos, viajantes, naturalistas, antropólogos, historiadores e patriotas, Ceilão é um nome em volta do qual se agrupam mil recordações especiais. A sua posição e os seus pontos, as suas produções, o arroz, a canela, as madeiras preciosas, as pérolas, o marfim, parecem mesmo indicá-la para centro de todo o comércio do Oriente. Bastava isto para que ela devesse ser possuída pelos ingleses, senhores, em todos os mares, de tudo quanto é centro e de tudo quanto é passagem. Eles possuíam definitivamente Ceilão e aí, num clima que é uma verdadeira estufa, a sua vida, aliás igual à que levam por toda a Índia, reparte-se entre a febre do negócio e a da mesa. Há, pelo dia adiante, três ou quatro refeições antes da refeição definitiva a que se chama então o jantar, e que tem lugar das 7 para as 8 hora da noite, refeição composta de muitos pratos de carne e de peixe, de pudins e de frutas, tudo regado copiosamente com vinhos diversos e com cerveja forte e espirituosa; «jantar de gala» quotidiano que Hœckel, com o seu «pobre estômago de professor alemão», nos descreve com horror. Em Colombo, na capital da ilha, por entre os europeus invasores, fartos, robustos e bem vestidos, uma outra população, sóbria, fraca e seminua, com a tez da cor de café torrado, atrai bem mais a atenção dos viajantes, etnólogos e historiadores. São os cingaleses, de que se acha agora uma nova troupe no Jardim de Paris. A primeira coisa que impressiona o viajante, que desembarca nos portos de Ceilão, é o penteado dos cingaleses. Os homens, com a sua cabeleira negra, longa e cuidadosamente frisada, entrançada, e segura com um pente semicircular de tartaruga, confundem-se inteiramente com as mulheres quando vistos por detrás, e é só quando se voltam e deixam ver as feições viris e a barba, que o viajante sabe com que sexo tem a lidar. O traço mais característico dos cingaleses é terem-se conservado puros de todo e qualquer cruzamento, apesar das numerosas invasões e conquistas de que Ceilão tem sido teatro. Uma outra raça, essencialmente distinta, habita a parte meridional da Índia. Considerando o isolamento, relativamente nulo, do Ceilão, e a facilidade de relações que, pelo contrário, as duas ilhas do estreito de Mannar parecem estabelecer, a diferença enorme que existe entre os drávidas e os cingaleses surpreende com razão. Além disto a perfeita semelhança do clima, da flora e da fauna parecia dever constituir um meio próprio para assegurar a identidade étnica das suas populações. Não é, contudo, assim, e à parte uma pequena colónia de tamis, ou tâmules, estabelecida no norte da ilha já muito nos tempos históricos, Ceilão conserva-se de posse do seu povo, perfeitamente caracterizado e quase seguramente autóctone. Não só os caracteres físicos da raça cingalesa, mas também a sua língua tem-se conservado distinta. O idioma dos cingaleses, chamado elu, não tem congénere conhecido, ao menos até hoje, e conserva-se isolado do grupo dravídico. Sob o ponto de vista morfológico, o elu é aglutinante e polissilábico; mas está neste caso não só o dravídico mas a maior parte das línguas faladas actualmente pelos diversos povos do globo. Contudo a influência das civilizações da Índia exerceu-se não na contextura íntima mas no vocabulário dos cingaleses; o sânscrito introduziu uma quantidade considerável de expressões, principalmente os nomes dos números, e o tâmil ou tâmul introduziu também muitos vocábulos e o seu sistema de escrita; mas o que é facto é que, apesar de tudo isto, o elu ou idioma dos cingaleses conserva a sua perfeita originalidade. Os cingaleses, são porém uma raça que, mesmo por essa sua tendência para se conservar pura, desaparecerá mais tarde ou mais cedo, não já diante a invasão

europeia, mas da dos próprios índios de outra raça. Se os tamis não ocupam a bem dizer senão a parte setentrional da ilha, eles vão-se espalhando cada vez mais pelas partes centrais das terras elevadas, graças à indolência e à moleza que caracteriza os cingaleses. Cada ano um número considerável de tamis ou habitantes do Malabar (50.000 há trinta anos, e hoje mais de 200.000) deixa no inverno a costa de Côromandel e vem trabalhar durante seis ou oito meses nas plantações, retirando-se depois para a sua pátria continental, com as suas economias para o resto do ano. Os tamis distinguem-se dos cingaleses pela sua construção mais robusta, pelos traços fisionómicos e pela cor da pele, e também pelo carácter, língua, culto e costumes. Enquanto que os segundos são quase todos budistas, os primeiros professam pela maior parte o culto de Siva. A tez do tâmil é mais carregada do que a do cingalês, e em ambas as raças o cabelo (nunca lanuginoso) é igualmente longo, liso, ou, quando muito, anelado e de um negro intenso; o tâmil tem a barba menos farta, e a sua expressão é severa e nunca tem o cunho de alegre expansibilidade da do cingalês; mas tem sobre este a vantagem de ser muito mais robusto e de poder, por conseguinte, executar facilmente trabalhos que para ele apresentam uma dificuldade invencível. Os poetas cingaleses têm exigências estéticas rigorosas, segundo as quais a perfeição plástica existe quando se acham reunidas trinta e duas qualidades: primeiro, a longa cabeleira negra, os olhos em amêndoa, os lábios grossos, os seios como nozes novas de coco, etc., etc. Hœckel confessa que essas numerosas qualidades se achavam reunidas numa família de dezasseis crianças (nove rapazes e sete raparigas) que lhe foi apresentada por um feliz casal onde estava hospedado. Destas crianças, somente as mais velhas, as que se aproximavam dos doze anos, estavam meias vestidas; para as outras, um fio enrolado por cima das nádegas e tendo pendente adiante uma moeda, simbolizava o vestuário; braços e pernas estavam adornados com braceletes de prata. As suas formas eram verdadeiramente elegantes, as suas feições belas, e os pés e as mãos de uma pequenez encantadora. A alimentação dos cingaleses forma o mais completo contraste com a dos europeus. Eles são da maior frugalidade e a sua alimentação compõe-se quase exclusivamente de arroz e de curry (raízes misturadas com carne), algumas frutas, e, por única bebida, água, ou, quando muito, vinho de palma. A carne de que se servem os cingaleses para comporem o seu curry é tirada dos mais diversos exemplares zoológicos da fauna de Ceilão: as aves, os peixes, os répteis, mesmo uma ou outra serpente, os lagostins, as lulas, e os chocos, os caracóis cozidos (aquelas belas espécies, de cascas cujo colorido variado e brilhante não inveja nada às conchas marinhas), as ostras assadas, até os ouriços e as estrelas-do-mar, tudo presta o seu contingente ao curry and rice nacional, no qual entra como tempero uma massa inextricável de raízes, folhas e frutos. Os cingaleses são dum carácter brando e excessivamente afectuosos e polidos. Uma razão zoológica determina porém na sua moralidade a existência de um traço que nós outros, que só teríamos, pelo contrário, a lastimar a abundância das mulheres, consideramos pouco moral a poliandria. As mulheres são raras na raça cingalesa; por cada dez nascimentos masculinos há uma média de oito a nove femininos, apenas. A consequência necessária é a poliandria apesar dos esforços perseverantes do governo inglês para a impedir, e não é raro que dois ou três irmãos tenham em comum uma mesma mulher, e houve mesmo damas que tiveram oito a doze maridos reconhecidos.

Um carácter que revela nos cingaleses bastante inferioridade é o mau tratamento infligido aos animais, sobretudo aos cavalos. Parece que eles nunca supuseram que se pudesse ensinar um cavalo a puxar um veículo, e metem-no para ali, sem o mais pequeno ensino prévio, obrigando-o a partir, por meio de mil torturas como, irritar as ventas com ganchos e torcer as orelhas tendo-as amarrado num pau; o cavalo puxa quando chega ao desespero. Isto é tanto mais curioso quanto é certo que um dos preceitos do budismo que os cingaleses cumprem à risca, é o não matar os animais; agrada-lhes que os outros os livrem dos macacos que lhes comem as bananas; dos elefantes que lhes destroem os arrozais; dos leopardos que dizimam os rebanhos das cabras, mas não são capazes de praticar por suas próprias mãos um acto semelhante; chega isto ao ponto de serem os pescadores cingaleses que renegaram o culto de Buda e abraçaram o catolicismo, a fim de serem livres para matar os peixes. Os cingaleses entendem pois, e não entendem muito mal, que não matar não é o mesmo que não fazer sofrer. Um facto que não menos revela o carácter e a moralidade dos cingaleses é a paz, a tranquilidade de corpo e de espírito em que eles vivem. Nos bazares de Ceilão nada há desta bulha característica das praças e dos mercados das capitais europeias. Eles não se prendem ao negócio por mais do que ele vale. É que nesse belo país qualquer hora por dia lhes basta para cultivar a sua horta de arroz, e o resto é exclusivamente consagrado ao prazer, ao repouso à sombra das bananeiras, e dos coqueiros representados como efígie nas suas moedas de cobre. O que lhes é necessário para a vida, cai-lhes, por assim dizer dentro da boca, e o struggle terrível parece não existir nestes homens frugais, sem batalhas, sem ambições mais do que trazer bem polido o pente de tartaruga que lhes prende o cabelo! A observação mais importante feita nos cingaleses do Jardim de Aclimação de Paris, foi a do seu índice cefálico que os coloca entre as populações sub-braquicéfalas e os distingue portanto também de todas as raças do sul da Índia que são compostas de dolicocéfalos bem determinados. E, o que é mais importante, todos os outros índios que habitam Ceilão são também dolicocéfalos. Os que estiveram no jardim há três anos, tinham a tez relativamente clara, entre o café levemente torrado e a canela, o que é notável, pois eram legítimos habitantes do interior, camponeses cultivadores de arroz, café, cana-de-açúcar, condutores de elefantes, pastores de bois, vivendo ao ar livre, torrados pelo calor implacável. As cinco mulheres tinham a tez mais carregada. Elas eram mais simpáticas do que belas; graciosas nos seus movimentos e correrias e delicadas de maneiras, estavam contudo longe da beleza das filhas da Índia. Os seus olhos eram grandes e negros, o que compensava de certo modo o traço fisionómico traduzido principalmente num leve prognatismo. Ainda neste exemplo o tipo feminino teria conservado melhor os caracteres do tipo inferior de que saiu provavelmente a raça. Os cingaleses trouxeram consigo o seu vestuário e os seus pentes de tartaruga; os homens usavam dois e as mulheres um só. Eles vieram também com os seus elefantes que faziam trabalhar, deslocando e transportando grandes troncos de árvores com uma destreza admirável. Nalguns dias o calor que fez em Paris foi grande, e o público parisiense à vista dos cingaleses e dos seus elefantes a trabalhar julgava-se transportado ao clima tropical de Ceilão. Pelo contrário, os cingaleses, saídos desse clima aonde a temperatura se eleva constantemente a 25º e 32º C., pareciam ter desejo de se ir

aquecer ao braseiro em que faziam ao ar livre o seu jantar, enquanto os parisienses esponjavam o suor! A base da sua alimentação era o arroz temperado com pimenta trazida mesmo de Ceilão. Da carne que lhes era fornecida pelo Jardim de Aclimação eles preferiam a de carneiro. Um deles era marceneiro e trabalhava bem e um outro que falava bem o inglês e tinha maneiras de verdadeiro gentleman, afirmou que a poliandria já não se encontrava em Ceilão senão na classe mais baixa. Fieis à sua índole, esses cingaleses parece que nunca tiveram curiosidade de ver Paris! A nova troupe de cingaleses que está presentemente em Paris, é muito mais completa que a de 1883, e tem um interesse particular devido ao número de objectos curiosos que a acompanham e aos exercícios que pratica. São ao todo setenta, 57 homens e 13 mulheres, e entre eles há sacerdotes de Buda, médicos, dançarinos e domesticadores de serpentes e de leopardos. Doze elefantes, entre os quais uma fêmea amamentando o filho, catorze zebus e diversos outros animais do país, completam esta notável exposição. Os elefantes fazem os conhecidos trabalhos domésticos de força e destreza, e os zebus trotadores constituem também um curioso espectáculo. A fisionomia destes novos cingaleses é simpática e nalguns mesmo encantadora; os membros são delgados, a barba e o cabelo característicos; mas este, em vez do pente, tem um alfinete de ouro. Eles apresentam-se mais ágeis do que se julga próprio da raça, jogando o pau e prestidigitando admiravelmente. Esta verdadeira caravana de cingaleses está sendo, sem dúvida, objecto de profundos estudos dos antropologistas e etnólogos de Paris, e, repetimo-lo, estas instalações nos grandes centros intelectuais de populações representantes das primeiras fases da humanidade, são ao mesmo tempo um dos mais atraentes espectáculos e o grande passo para o desenvolvimento e progresso das ciências especiais que, por muito tempo, e ainda hoje em muitos pontos, andaram à mercê de observações isoladas, devidas ao primeiro viajante nem sempre dotado com a instrução e o critério indispensáveis.