DEBATE Fundamentação teórica da Clínica de Psicologia da Unijuí A Clínica surge do próprio projeto do curso de Psicologia. Este curso tem como base teórica fundamental as teorias psicanalítica e psicológica. Assim, a organização da mesma não está separada dos fundamentos que a sustentam, muito pelo contrário, há sempre uma imbricação entre a forma de organização com os princípios orientadores do trabalho. Uma prática referida à estas teorias não se apresenta como normativa ou adaptativa, numa referência a padrões ideais. Nesta prática considera-se que os sintomas são manifestações singulares, que tem sentido para o sujeito que sofre, remetendo a desejos inconscientes. É possível considerar estes pressupostos no cotidiano de uma clínica em Instituição universitária? Colocaremos alguns elementos de reflexão que foram se colocando ao longo da experiência da Clínica de Psicologia da Unijuí. A Clínica oferece atendimento psicológico individual àqueles que a ela endereçam seu pedido de tratamento, tal como ocorre em todas as clínicas. O paciente (ou seus familiares quando se trata de uma criança) ao chegar, apresenta uma queixa que ele define como motivo da procura do tratamento. O que norteia os encontros iniciais com o paciente é uma escuta que permita a este se implicar na queixa que
traz, para a partir daí responsabilizar-se por seu sofrimento, saindo deste modo dos intermináveis roteiros institucionais. Em outros termos, o que se quer possibilitar é que o paciente saia da posição daquele que sofre passivamente, ultrapasse seu estado de vitimização, e que possa se colocar numa posição comprometida com sua cura. Do lado de quem atende o paciente, é fundamental não responder da posição de quem tem um saber sobre o sofrimento deste, como também não ignorar que é justamente esta suposição de saber que vai sustentar a transferência e possibilitar o tratamento. Estas considerações indicam que não se trata de dar conselhos e que se deve estar atento para o lugar que se ocupa, particularmente quando se está dentro de uma instituição universitária e que portanto encarna o saber. Apesar do trabalho se concentrar nas camadas pobres da população não se propõe atendimento gratuito. O pagamento é trabalhado na transferência, considerando-se os aspectos simbólicos que aí se expressam. Portanto, não usamos nenhum tipo de tabela ou valores pré-fixados. Considera-se imprescindível para sustentar uma clínica onde se opera na transferência, a supervisão individual, e até onde é possível numa universidade, que a escolha do supervisor também se dê pela via da transferência. Em uma clínica ligada a uma instituição universitária, onde são os estudantes-estagiários que fazem o atendimento, colocam-se questões clínicas derivadas das restrições organizacionais e de funcionamento. Por exemplo, ao encerrar-se o período de estágio de um estudante, o encaminhamento para outro estagiário coloca a questão dos efeitos da transferência. Por outro lado, a característica dos pacientes que
procuram tratamento em uma instituição é que o pedido de tratamento não vem dirigido para alguém e sim à instituição, significa que é necessário um tempo de trabalho para estabelecer a demanda de tratamento. É possível um tratamento quando a demanda é para a instituição e não a alguém? São questões como estas que animam o debate coletivo da Clínica. A experiência tem demonstrado, que este tipo de trabalho clínico tem pelo menos dois efeitos para o paciente: ele pode sair do anonimato que se encontra, social e subjetivo e pode apropriar-se de seu sofrimento. São estes dois efeitos que permitem que possa demandar um tratamento para alguém e poder neste, reescrever sua história. A ÉTICA DO SUJEITO NA PRÁTICA CLÍNICA Trazemos algumas considerações a respeito da experiência de atendimento psicológico, desenvolvida na Clínica de Psicologia da UNIJUÍ, particularmente com relação à ética que orienta nosso trabalho. A Clínica de Psicologia da Unijuí, em consonância com a orientação teórica principal do Curso de Psicologia desta Universidade, fundamenta seu projeto de trabalho na Psicologia, e principalmente na Psicanálise. Consideramos, como nos aponta o psicólogo Luis Cláudio Figueiredo, (no livro Revisitando as Psicologias: Da Epistemologia à Ética nas Práticas e Discursos Psicológicos ), que as diversas abordagens teóricas que podem dar fundamento ao trabalho do psicólogo, para além das diferenças epistêmicas, remetem a éticas
diferenciada. O termo ethos do qual deriva a palavra ética, tem na língua grega o sentido de morada. Assim, ao afirmarmos que a cada teoria corresponde uma ética, queremos dizer que as teorias são dispositivos que dão ao homem um lugar e um destino. Certamente a opção pela psicanálise como teoria orientadora de uma Clínica não se dará sem que se produzam conseqüências na organização e na condução do trabalho, marcando diferenças com outras concepções de clínica. A origem do método clínico, em acordo com os princípios científicos emergentes, na medicina do século XVIII, estava ligada ao privilégio do olhar da observação e da prescrição no campo dos signos e dos sintomas. Isto é, a doença passou a ser definida em função de um conjunto específico e ordenado de sinais e de sintomas. Estes constituíam a totalidade da doença, eliminando-se toda a distância entre significante e significado, quer dizer, entre a doença e sua expressão sintomática. Esta concepção de clínica privilegia a doença em detrimento do doente. Freud ao criar a psicanálise alicerçada na noção de inconsciente, introduziu uma outra concepção de clínica, porque apontou para a existência de uma outra lógica, regida pelo desejo. Freud descobriu um sujeito dividido, e alienado de si mesmo. Isto só se tornou possível porque na clínica freudiana o médico foi colocado na posição de escuta e a palavra foi devolvida ao doente. Esta divisão que constitui os humanos também pode ser enunciada como uma divisão entre verdade e saber. O discurso
científico sustenta que é possível construir um saber sobre a verdade. A psicanálise, ao contrário, revela que, embora a verdade inconsciente atue, em relação a ela ficamos sempre em falta, e é, justamente esta falta que nos constitui como sujeitos desejantes. Esta falta estrutural coloca os humanos na condição permanente de busca do objeto que supostamente a preencheria, em outras palavras, que os completasse. Lacan, no Seminário VII: a Ética da Psicanálise afirma que uma ética implica num juízo sobre as ações do sujeito, e que neste sentido podemos falar de uma ética da psicanálise uma vez que ela incide na relação entre a ação e o desejo que a sustenta. A ética da psicanálise é formulada por ele, como sendo a ética do desejo ou a ética do bem-dizer. Enquanto ética do desejo a psicanálise não se propõe a realização das vontades do sujeito, porque o desejo no campo da psicanálise não tem objeto, não se apresenta como desejo de algo. O desejo aparece neste campo, como um exercício, como algo que impulsiona na direção de um agir. Sendo assim, o desejo tem uma função metonímica de provocar o deslizamento do sujeito de objeto a objeto. Bem-dizer não significa que a partir da psicanálise se possa dizer onde está o bem do sujeito, isto é, aquilo que será bom ou ruim para ele, aquilo que ele deve ou não deve fazer. A ética da psicanálise não se propõe como uma ética do serviço dos bens, diferenciando-se assim das éticas tradicionais, que versam sobre seu ordenamento visando a universalização. Bem-dizer refere-se a possibilidade de que o paciente se reconheça no inconsciente.
A partir destas formulações podemos reafirmar que uma Clínica baseada nesta ética, não se apresenta como uma prática normativa ou adaptativa, numa referência a padrões ideais. Nesta referência clínica considera-se que os sintomas são manifestações singulares, que tem um sentido para o sujeito que sofre, remetendo a desejos inconscientes. Assim, nesta ética o que norteia os encontros iniciais com o paciente, é possibilitar uma escuta, que lhe permita implicar-se na queixa que traz para a partir daí responsabilizar-se por seu sofrimento. Em outros termos, o que se quer possibilitar é que o paciente saia da posição daquele que sofre passivamente e possa se colocar numa posição comprometida com sua cura. Para o estagiário é fundamental não responder da posição de quem tem um saber sobre o sofrimento deste, sem contudo ignorar que é justamente esta suposição de saber que vai sustentar a transferência e possibilitar o tratamento. Estas considerações já indicam que não trabalhamos com aconselhamento. Quando um período de estágio se encerra, o paciente é encaminhado a outro estagiário. Esta é uma questão problemática que se coloca para as clínicas nas quais o trabalho é realizado por estagiários. É um momento em que se observa um número maior de interrupções de tratamento. A orientação que seguimos é de que o desligamento e a passagem sejam trabalhados em supervisão caso a caso. Procura-se considerar as nuances do laço transferencial em cada tratamento. Algumas vezes adota-se o procedimento da apresentação do novo estagiário ao paciente, feita pelo estagiário que está encerrando o estágio. Outras vezes ele é apenas informado do nome de quem vai atendê-lo.
É uma característica dos pacientes que procuram tratamento em uma instituição que o pedido de tratamento não venha dirigido a um nome. A procura se dá pelo nome da instituição. Ocorre, por vezes, que como efeito do próprio tratamento, o paciente não suporte mais as trocas de estagiários, estando em condições de endereçar um pedido de tratamento a alguém em particular. Para estas situações a Clínica dispõe de um cadastro de psicólogos egressos do Curso de Psicologia da Unijuí, que se dispõe a receber pacientes encaminhados pela Clínica, para atendimento em seus consultórios. Quando se dá uma troca de estagiário é preciso que uma nova relação transferencial se estabeleça. Neste sentido há um fim de tratamento e início de outro. Por outro lado há uma continuidade porque o paciente permanece com um laço com a instituição. Isto nos coloca a questão: quais as informações sobre um paciente, que um estagiário deve passar para outro? Temos restringido bastante estas informações, limitando-as mais a dados objetivos como, por exemplo, resultados de exames de outros profissionais, registros de freqüência às sessões, etc... Esta é ainda uma questão sobre a qual sentimos a necessidade de ter uma discussão maior. Sabe-se que toda a instituição pauta seu funcionamento em um conjunto de normas, tendendo, freqüentemente, a uma certa burocratização. Este é um risco que como instituição também se corre. Acontece, às vezes, que procedimentos tomados em uma situação particular se transformem em regras, isto é, se institucionalizam e passam a funcionar como normas, perdendo-se sua razão original. Esta tendência à burocratização coloca-se na direção contrária ao que sejam os fundamentos de uma clínica psicanalítica. Por isso pensamos que a condução de tal prática em uma instituição (neste caso
a Clínica de Psicologia da Unijuí) requer o exercício constante da retomada dos seus fundamentos. No dia a dia da vida Institucional, isto se apresenta, muitas vezes, nas repetidas discussões das mesmas questões. Por exemplo: discutimos repetidas vezes, as dificuldades que temos em relação ao pagamento, dificuldades estas que se situam tanto do lado dos pacientes quanto dos estagiários e supervisores; também retornam às nossas discussões questões do tipo: - Podemos permitir que um paciente, uma criança, leve consigo um brinquedo? Ou, desenhe nas paredes? E assim por diante...mas a psicanálise também nos ensina, que o que se repete não é exatamente a mesma coisa. Isto nos anima a seguirmos, relançando e resignificando as nossas interrogações. * Texto elaborado pela prof. Ângela S. Drügg.