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tradução Elisa Martins

UM MIGUEL, PAI DE DYLAN, NASCEU EM 1948, ANO QUE A AMPEX LANÇOU suas fitas magnéticas de gravação editável. Seus pais escutavam Beethoven em um gramofone Victrola, com discos de goma-laca de 78 rotações em que o barulho de fundo podia ser confundido com os aplausos da plateia. Entrou na universidade em 65, quando Like a Rolling Stone começava a tocar em todas as rádios e dividia o público de Bob, que comparecia toda noite, religiosamente, a seus shows metade folk, metade barulho, para vaiar quando ele surgia com a guitarra. Mas batizou seu filho com o nome de Dylan no verão de 69, quando ninguém mais falava de traição, conseguindo

4 assim fugir de todas as discussões. Na verdade, Miguel nunca chegou a formar uma opinião própria, apesar de que teria sido mais simples dizer apenas que Dylan era genial com qualquer instrumento e estilo. No fundo, ele ficava paralisado por seu ódio primitivo às opiniões fracas, neutras, que não defendiam nenhum dos extremos. Tinha a impressão de que quando alguém fica em cima do muro é atacado por todos os lados, e como ele não era um personagem polêmico nem de princípios firmes, esperou o ano de 69 para batizar seu filho com o nome Dylan. Uma vez escutou Bob Dylan dizer que, se não fosse ele mesmo, gostaria de ter sido Leonard Cohen. Não há dúvida de que seu filho também teria preferido Leonard, para ser carinhosamente chamado Leo, um nome muito mais adequado à normalidade. Mas Miguel só conhecia uma canção do músico de voz rouca e não ficou convencido. Além disso, pouco tempo atrás, ela foi usada pela companhia de gás para divulgar botijões. Desde então Miguel deixou o tema de lado, como se aproveitasse seu novo dom de se esquecer das coisas para não se lembrar de quem era Leonard Cohen nem do motivo, se é que houve algum, que o levou a colocar o nome Dylan em seu filho Dylan.

5 Que alegria ver o senhor! Posso me sentar? Por favor. Como vai? Sinto muito...; foi de repente, na verdade deveria ter avisado pessoalmente. A diretora não quis me dar seu telefone. Tudo bem. Sem problemas. Eu sei, mas não gosto de sair sem avisar. Que bom que nos encontramos. Estava esperando alguém? Não. Claro... Bem... Estou procurando meu namorado. Ele costuma vir aqui depois do trabalho, mas hoje não apareceu. Boa música. Ah, claro! A música. Não tinha prestado atenção, mas é verdade. O lugar é tranquilo, pouco barulhento. Deve ser por causa da música. Com certeza. Antes..., livraria. Ah, é? Não sabia. E olha que venho aqui há anos. Desde que cheguei a Madri, praticamente. Mantém as estantes. Nossa, é verdade. Não tinha reparado. Ficam escondidas pelas garrafas.

6 Dylan nasceu de uma introdução demorada de uma música de Bob Dylan. Por isso se chama Dylan. Porque seu pai também pensou assim, sentado no sofá, imóvel, com essa musiquinha festiva que parece vir de uma apresentação do circo Holiday, mas que na verdade escapa do toca-discos de casa. O nome é Rainy Day Women. Já tentei falar dela antes em um romance mais antigo, mas não deu certo. Vou tentar de novo. Nisso, Dylan e eu somos parecidos. Desenvolvemos obsessões grandiloquentes a partir de exageros. Decidi escrever um romance em que coubesse uma canção e Dylan estragou a história por culpa de uma música que não cabia. A história se resume a esse paradoxo. A ele e às milhares de interpretações que um leitor acrescenta ao absurdo contanto que não admita que exista. O mais complicado ao criar um personagem que está sentado no sofá é não saber como ele caminha. Você sabe que as pernas tocam o chão, que o tapete parece persa e que a televisão está desligada, apesar de ele olhar fixamente para ela como se a música que está escutando saísse da tela. Ainda não consigo imaginar Dylan em pé e vou levando-o de cenário em cenário, sem deixar que ele se le-

7 vante. Do sofá à banqueta do piano, dali às mesas do pub. Ele me lembra minhas Barbies, tão pouco flexíveis que não podiam nem se sentar para tomar um chá. No momento em que termina esta história, Dylan está sentado no sofá com o pai, e passaram vários anos desde que Miguel e eu o imaginamos exatamente assim, com o olhar perdido, ouvindo Bob Dylan. A princípio, nenhum dos dois prestava muita atenção na música. Os mais inexperientes costumam se incomodar com o silêncio. Acham que se trata de algo passageiro, um transe que serve para nos dar tempo até encontrar a palavra exata que há de restabelecer a ordem previsível das coisas. Mas Miguel e Dylan se acostumaram rapidamente e escolheram o mutismo por opção. Agora apenas trocam comentários. Costumam ser repetitivos. Cada disco ganhou uma definição própria atribuída por eles. Assim, sempre que toca Hotel California, por exemplo, Miguel suspira e diz: Aí está tudo o que destruiu o punk. Sobre os Pretenders, Dylan se limita a dizer que sente atração por Chrissie Hynde. Lamento. Tenha deixado suas... aulas. Bem... Também não tinha muito talento. Deveria

8 ter tentado a guitarra, dizem que é mais simples. Ou o baixo. Meu namorado tem um, mas acho muito chato. Nunca entendi que tipo de interesse um instrumento assim pode despertar. Ninguém talento. Nesta... academia. Isso deveria ser um consolo? Mais gente saiu. Nossa..., mas é que para um hobby é muito puxado, não acha? As pessoas fazem ioga ou ginástica, mas apenas algumas horas por semana. Escolhem atividades que quebrem a rotina sem fazer parte dela. Claro. Acredite. Mês passado me matriculei em uma academia de ginástica. Além do fato de que era um saco, parecia um reality show nojento. Todo mundo se conhece e se exibe..., todos suados, como em uma competição. E, depois, nos vestiários...; meu Deus, altas conversas. Dá no mesmo ter... aulas de piano. E fazer musculação. Não, não é isso, sério, respeito muito seu trabalho. Mas me diga, ficou chateado com o que eu disse? De jeito nenhum. Não me convenceu.

9 Sério, não fiquei. Não chateado. Só perguntando. Claro... É que com o senhor é difícil saber, se é que o senhor me entende. Sou sincero. Evita... confusões. Seja pelo motivo que for, quando um cômodo fica vazio, é hora de comprar um piano. Eles existem em diferentes tamanhos. Podem esconder manchas de umidade ou ficar em cima do tapete. Os pianos preenchem espaços vazios e os deixam mais leves. Ninguém diria que o conservatório onde Dylan estudou, por exemplo, foi um quartel militar durante a guerra. Como item de decoração, um piano de cauda preto ou um de parede marrom são de extremo bom gosto. O piano de Dylan que na verdade era de Miguel, que o comprou em memória de sua esposa não passava de uma urna sem cinzas no meio da sala. Passaram-se anos entre a compra do piano e Dylan tirar o feltro vermelho que cobria o teclado. Aí então, com vasos, fotografias e correspondência amontoada sobre a tampa, ele estava bem desafinado. O técnico lembrou que o instrumento não era uma estante. Tinha os dedos gordos como linguiças, mas

10 que se movimentavam velozmente sobre o teclado. Dylan, que ainda não dominava o ofício, deu suas impressões. Ele acabava de entender que nem tudo estava perdido, porque, se era possível ser pianista sem ter dedos de pianista, sua própria contradição não seria um impedimento. Na verdade foi burrice minha. Não queria ter comparado suas aulas com uma esteira. Aparelho de abdominais. Talvez. Não, cara, também não. É sério. Nunca na vida pensei que seria capaz de aprender sequer a escala musical. E, apesar de já não frequentar suas aulas, elas foram a coisa mais emocionante que me aconteceu nos últimos dois anos. A academia de ginástica era... Bem, você sabe, para manter a boa forma. Muitos pianistas... gordos. Com certeza. E violinistas? Não. Violinistas charmosos. E os que tocam tuba? Obesos. Já imaginava. Minha prima se casou com um clarinetista que no começo era muito gordo e de repente emagre-

11 ceu trinta quilos. Com uma dieta à base de líquidos, acho. Na última vez em que vi o marido da minha prima, não o reconheci. Impressionante. O que você quer? O quê? A senhorita... Beber. O quê. Ah, não deveria, mas peça para mim um uísque. Não..., melhor uma cerveja; long neck, se tiver. Duas, por favor. Não tenho certeza sobre quem é a mulher que está conversando com Dylan. Chama-se Julia e gosto dos peitos dela, um pouco pontiagudos, lembram os da Madonna. Acabo de imaginá-la com cabelos cacheados, na altura da orelha, e eles balançam sem parar porque ela gesticula muito quando fala. Na verdade, todo mundo costuma fazer isso quando conversa com o Dylan. É como ensaiar na frente do espelho. Mas ela está nervosa. Senta-se na ponta da cadeira e se mexe algumas vezes. Ao fazer isso, se dá conta de que essa mania de não se encostar no respaldo da cadeira é típica de pianistas e começa a forçar o gesto, como se Dylan pudesse inter-

12 pretar essa tentativa de cumplicidade. É óbvio que ainda não o conhece bem. Acabo de criar Julia sentada, mas posso imaginá-la de corpo inteiro. A imagem cabe perfeitamente em um vagão de metrô que a leva direto para casa. Julia gosta de palavras cruzadas e romances de suspense, mas dificilmente encontra lugar livre no metrô e tem que abrir o livro com uma mão, enquanto se segura com a outra. Com as unhas pintadas de vermelho, ela assinou o contrato de uma hipoteca pela vida inteira e não consegue parar de pensar nisso. Então. Que tempo horrível. O trânsito está impossível com essa maldita greve de transportes. Não deveria beber. A senhorita disse. Disse. É que não me faz bem, mas estou cansada de controlar tudo. É tão absurdo preocupar-se tanto... Depois leio as notícias do jornal: caiu um andaime na cabeça de um cara, ou um vaso de planta, e percebo que falta um pouco de sentido nas coisas. Mas também fuma. E fuma. Especial. Ah, é? Nunca me disseram isso. Lembra...

13 Lana Turner? Era uma fumante maravilhosa, não acha? Claro. Mulheres bonitas... fumam. Meu pai dizia que as mulheres bonitas deveriam morrer jovens, antes de ficarem acabadas. Lembrei agora. Não era um homem muito fino. Que coisa. Não se preocupe. É crônico. Já sei que estou me matando. Duvido que... saiba. Por quê? Se soubesse... não faria... Tá, tá. O senhor parece um daqueles cartazes do Ministério da Saúde. Eles invadiram Madri com suas advertências por uma vida mais saudável, os espaços sem fumaça. Mas me diga, a quem eu lembro o senhor? Uma mulher. Não diga! Uma mulher! Sério? Sim. O senhor não vai direto ao ponto. Quem? Uma artista? Uma amante? Primeira mulher fumante... que conheci. Que lindo. Lembro da minha mãe. Ela ainda fumava com aqueles filtros longuíssimos, tão elegantes. Guardo

14 uma imagem bem glamourosa dela, mas a verdade é que, sem o cigarro, ela tinha menos estilo que um mercadinho de bairro. É curioso como fugimos das lembranças. Penso em Julia, que nasceu sem passado em um bar irlandês chamado Twelve O Clock. Era um desses pubs escuros com listéis de madeira na parede e anúncios de uísque Jameson dos anos vinte. A ideia de não saber muito bem quem é ela me agrada. Agora mesmo, seus olhos brilham por causa da cerveja, e ela lembra uma dessas meninas que gritam obscenidades para Axl Rose na saída de um show. Mas duvido de que seja fã do Guns N Roses. Nos anos noventa, todas as amigas da moça choraram a morte de Kurt Cobain. Julia também tinha o quarto cheio de pôsteres e seu primeiro namorado cantou Come as you are para ela na saída de um show. Isso não quer dizer que Julia jogou Nintendo nem que continue escutando Foo Fighters até hoje por pura nostalgia. No apartamento alugado, ela não tem aparelho de som e vive com a televisão ligada, com a maioria das suas coisas amontoadas em caixas de papelão, pronta para ir embora. É evidente: existe um toque niilista no jeito de Julia

15 que nos leva a imaginá-la sem o uniforme do trabalho, tomando cerveja em um squatter 1 de Londres. Mas, claro, essa suposição poderia ofendê-la porque Julia pensa que já viveu o bastante de punk tardio e de jet lag geracional, ela que, afinal, nasceu nos anos oitenta. Esse homem. O que tem ele? Parece... Está procurando alguém... Onde? Ah, não! Não é o Aurelio. Acho que ele não vem mais, para dizer a verdade. Ele já saiu do trabalho há horas. Está nervosa. É uma pergunta? Está nervosa. Porque ele não vem. Imagina. Não vivemos juntos, sabe? Ainda não; estamos planejando, mas... continuo livre. De certo modo, pelo menos. Entendo. Fico com pena desses casais que vivem desconfiando e reclamando. Não quero isso para mim. Não tem problema se ele não aparecer hoje, sabe? Nem tínhamos combinado nada.

16 Dylan não sabe que, na noite do acidente, seu pai estava bêbado. Não muito, mas o bastante para pensar que poderia dirigir os duzentos quilômetros de volta. Tinham passado o dia na casa de um velho colega da universidade, e a sobremesa do almoço acabou emendando com o jantar. Esteban, o amigo do pai, era casado com uma mexicana de peitos exuberantes, e os dois viviam em uma espécie de lua de mel permanente, entre garrafas de tequila e apostas certeiras na Bolsa. Tinham filhos gêmeos que contaram a Dylan ter sofrido um acesso de vômitos depois de vinte horas seguidas jogando Atari. Quando o deixaram sozinho com eles no quarto de brinquedos, Dylan sentou-se em um canto, morto de medo, sem nem atrever-se a tocar nos controles. Escutava a conversa do pai dos gêmeos na cozinha. Todos riam com a história dos covers dos Destroyers, aqueles que sofreram uma descarga elétrica no meio de um show universitário, por causa da chuva. Eles continuaram tocando, mesmo com o cabelo queimado. Pareciam os Pistols, opinou Esteban. Todas as suas histórias giravam em torno dos mesmos assuntos. Café com uísque na época de provas, tentativas de formar bandas de rock, velhos amigos, namoradas, presentes e ausentes. Quando começou a

17 ficar tarde e o casal convidou-os para dormir ali, Miguel já pensava em sair correndo há muito tempo. Talvez o conheça. De vista. Com certeza. Ele passa mais tempo nesse maldito bar do que em qualquer outro lugar. E justo em um dia em que venho encontrá-lo... Enfim, o que se pode fazer. Não se zangue. Não, não estou zangada! É o que eu disse. Não tenho por que saber sempre onde ele está, nem nada. Claro que quando estivermos vivendo juntos não vou deixar que ele me ignore desse jeito. Não sei se me entende. É ele quem quer que a gente more junto. Eu digo: tudo bem, mas assumindo responsabilidades. Me desculpe. Nem sei por que estou contando tudo isso ao senhor. Não se preocupe. Não, é sério, desculpe. É verdade, estou nervosa. Já faz alguns meses que Julia adoraria viver em hotéis. A vida itinerante é mais organizada, com a roupa indispensável, o dinheiro contado e a escova de dente própria para viagens, que cabe em qualquer lugar. Quando uma pessoa viaja,

18 planeja sua vida para um tempo determinado. É mais difícil imaginar-se em uma situação de caos quando tudo tem data para acontecer. Talvez por isso tenha transformado a casa em um cenário de viagem iminente. Os livros, vestidos de festa e artigos de decoração descansam dentro de caixas de papelão empilhadas. Elas ficam no hall, ao lado da porta, e assim, todo dia ao sair de casa, Julia lembra que fugir seria muito simples, tanto quanto encher o elevador com suas coisas e pedir um táxi para o aeroporto. Quando menos esperar terá que fazer isso, mas seu destino será desembrulhar tudo de novo e escolher um lugar exato para cada objeto, uma arrumação específica que seja mantida durante anos. Julia tem medo do acúmulo de pó visível embaixo dos livros quando ela os retira da estante. Faz tanto tempo que não toca nas enciclopédias que as prateleiras até inclinaram com o peso e, se resolvesse arrastar as mesinhas de cabeceira, encontraria dezenas de insetos esmagados, em seus lugares de sempre. São os produtos da inércia que espantam Julia. Ela chegou a Madri com 18 anos e viveu um mês na casa de parentes. O mural da universidade estava cheio de anúncios de aluguel, mas nenhuma chamava sua atenção. Talvez tivesse a ver com os ataques de tristeza que tinha

19 toda noite, quando se recolhia no quarto e pela primeira vez na vida estava sozinha. Tudo aquilo, a universidade, as pessoas, a independência recém-conquistada, nada combinava com o ideal adolescente que a motivara a deixar a casa dos pais. Madri era hostil, grande demais. Era impossível adivinhar quem eram as pessoas que se sentavam ao seu lado no metrô. De vez em quando, Julia reconhecia essa mesma angústia nos imigrantes que via passar entre uma estação e outra, mas a cidade era de uma ausência completa de interesse, de emoção. Era desnaturalizada. Julia só decidiu dividir um apartamento com Aurelio e Sandra porque eles também eram estrangeiros, desses visitantes que andam com um mapa do metrô nas mãos e a certeza de estar no lugar errado. Sentiam-se sobrando em uma cidade com tantos milhões de habitantes. ALLEN JORDAN DEFENDE-SE PUBLICAMENTE DAS ACUSAÇÕES DO CASO GOULD A reação das pessoas? Não me surpreende em nada. Mesmo se me provassem que Deus não existe, continuaria pensando da mesma maneira.

20 Assim começou a entrevista com o doutor Jordan, transmitida ontem, em horário nobre, por uma televisão canadense. Desde que a Fundação Glenn Gould anunciou que iria mover uma ação contra o famoso psiquiatra, o debate ganhou repercussão internacional, e a opinião pública, embora dividida, tende a apoiar os que demonizam a teoria do médico. A polêmica começou há duas semanas, quando a revista Tomorrow publicou um artigo em que Jordan associava o virtuosismo de Glenn Gould a um transtorno cerebral chamado Asperger, que muitos historiadores lhe atribuem. É preciso levar em consideração que nossos conhecimentos sobre a doença são muito recentes o primeiro estudo amplo sobre o Asperger data de 1981. Além disso, a sintomatologia não é evidente; é compreensível que Gould não tenha sido diagnosticado em vida. A síndrome de Asperger é um transtorno do desenvolvimento cerebral cujas características impressionaram Jordan por sua aparente incompatibilidade com a criação artística. Em sua pesquisa, ele reforça a falta de capacidade dos pacientes para interpretar emoções, o que resulta em uma ausência quase total do que chamamos de empatia. Como um músico, um intérprete, que trabalha tão próximo às emoções artísticas, podem padecer desta síndrome? Quanto mais procurava uma resposta, mais encontrava contradições. O pensa-

21 mento estritamente concreto e lógico das pessoas com Asperger, por exemplo, é um traço que vai contra nossa concepção do artista. Partindo desse paradoxo, Allen Jordan considerou várias hipóteses até chegar à conclusão que buscava. Ao investigar a biografia de Gould, chamaram sua atenção as preferências musicais do artista. Gould é reconhecido internacionalmente por suas interpretações de Johann Sebastian Bach. Não é pura casualidade sua afirmação de que, de Bach a Wagner, a música apresenta um vazio indesculpável. Era tido como uma excentricidade seu ódio à música romântica e a Beethoven e Chopin, compositores temperamentais cuja música está infestada de emoções contraditórias, complexas, que marcaram suas partituras. Tomando Bach como exemplo, um compositor claramente técnico, dotado de uma mente matemática implacável, a associação torna-se óbvia. Uma pessoa com Asperger dificilmente apreciaria composições que não demonstrassem ser lógicas e que implicassem uma identificação emocional com seu criador. Essas afirmações, por si só, já podem parecer polêmicas, mas elas não são a parte mais controversa do artigo. Como em muitos casos de autismo, as pessoas com Asperger tendem a demonstrar certa obsessão com atividades específicas, em que se revelam brilhantes. Sinto-me ofendido como admirador de Glenn, e também como pianista. O senhor Allen Jordan insinua que a genialidade de

22 Gould se deve ao estudo compulsivo do piano, como se qualquer um que se dispusesse a ficar horas tocando pudesse se transformar em um grande intérprete. É uma teoria absurda e exagerada. Dizer que Glenn Gould foi pianista graças à síndrome de Asperger é o mesmo que afirmar que Beethoven foi um gênio porque era surdo, ironiza Andrés Bejas, professor do Conservatório Superior de Oviedo. A poucos dias do início do processo judicial, pessoas de todo o mundo nos enviam diferentes opiniões. Por um lado, esse pode ser um caso de possível difamação, do uso de uma hipótese que apoia um argumento enganoso; mas o caso Gould também toca em feridas, em um debate que evitamos e que ditará o tom do novo século: a rejeição social aos avanços científicos que podem destruir nossos mais sagrados mitos. O veredito, dessa vez, pode recair em todos nós. Era um Renault 5 escuro que nas curvas quase tocava as barreiras de proteção da estrada. O caminho estava vazio. O motorista aumentou o volume do rádio e acordou o menino, que dormia no banco de trás, com o som da música que tinha ganhado o Eurovision Song Contest 2 daquele ano. Todos começaram a cantar e, por alguns minutos, o motorista resistiu ao sono. A mulher que roncava no banco do carona entoou o refrão sem nem abrir os olhos. Na

23 verdade só repetiam Waterloo a cada início de frase. A canção continuou tocando com a freada, com a criança voando pela janela, e com o motorista que mordia os lábios enquanto tentava controlar o carro com o ritmo da música grudado na cabeça. Tudo aconteceu em menos de um minuto, porque, afinal, embora o rádio tivesse parado de funcionar, ele calculou que a música ainda tocava em todos os rádios ligados naquela hora. Só para ter certeza, enquanto a ambulância, a polícia e os moradores das casas próximas chegavam, o motorista tentou sintonizar de novo a estação. Só achou um programa de música eletrônica, e o maqueiro, de maneira bem mal-educada, mandou que ele desligasse o aparelho.

24 NOTAS 1. Equivalente inglês ao termo okupa, que na Espanha refere-se a um movimento social de ocupação de edifícios abandonados e casas sem inquilinos, transformados em centros sociais com atividades como shows e oficinas. Ele começou no início dos anos oitenta, coincidindo com um período de baixa oferta de trabalho e alternativas no país. Existe um grande debate na Espanha sobre os ideais desses espaços okupados, que se transformam em centros sociais, e de seus integrantes, também conhecidos como okupas. De um lado, eles são chamados de punks, drogados e invasores; de outro, argumentam lutar contra o sistema vigente, pela coletivização e o direto a uma moradia digna. (N. T.) 2. Popular festival e concurso musical celebrado anualmente na Europa. Apesar de retransmitido para várias rádios e canais de TV, é visto por muitos como um espaço de divulgação de cantores de gosto duvidoso. (N. T.)