Representações da marginalidade na cultura contemporânea: diálogos em torno da personagem Zé Pequeno, em Cidade de Deus.



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MALDITO. de Kelly Furlanetto Soares. Peça escritadurante a Oficina Regular do Núcleo de Dramaturgia SESI PR.Teatro Guaíra, no ano de 2012.

Transcrição:

Representações da marginalidade na cultura contemporânea: diálogos em torno da personagem Zé Pequeno, em Cidade de Deus. Resumo: Doutorando Valquíria Lima dasilva (IFBA/UFBA)... O momento histórico atual nos apresenta obras literárias diferentes, agressivas, que compõem mosaicos para tematizar, radiografar e ressignificar a realidade capitalista, considerada cruel. Entre estas, está o romance Cidade de Deus (1997), de Paulo Lins. Sua narrativa já traz em si a marca da rapidez, assim, requer novos olhares sobre o literário, que o entrecruzem com o cinematográfico e com a história. O filme, com o mesmo nome, dirigido por Fernando Meirelles e lançado em 2002, provocou grande repercussão no cenário nacional e internacional, pela realidade ficcionada e mediada por imagens fortes, que ora conseguiam apresentar ao leitor/ expectador. Entre estes dois textos um dilema se apresenta: a representação do personagem Zé Pequeno, que aparece sob dois olhares, um trazido pela imagem e outro pelo texto literário, configurando leituras que se integram e repelem, contraditoriamente. Palavras-chave: marginalidade representação Cidade de Deus cultura sociedade 1. Introdução A relação entre os discursos da cultura na contemporaneidade faz com que os sujeitos se desloquem e se encontrem em meio a uma pluralidade de possibilidades de percepção e de leitura sobre um tema, objeto, valor, situação vivida, entre outros. Ou seja, a impressão que temos do mundo e de suas relações nos chega mediada por vozes e discursos diversos. O olhar interpelado pelo meio cria, no leitor, uma impressão específica e uma representação simbólica do real, trazendo para a cena da leitura inúmeros planos de articulação com o objeto. O casamento entre o cinema e a literatura propõe uma relação não menos tensa ou diversa qual em um casamento comum, pois as intermediações são de elo e de conflito. Neste bojo, o texto literário na condição de texto de partida apenas sinaliza uma primeira possibilidade de leitura. Em outro meio, com outras vozes, com objetivos e fins diferentes e sob um outro olhar, o mesmo texto então se desloca e, assim, recoloca-se em uma nova opção de leitura, esta agora, mediada a partir de uma nova linguagem. Desta briga e ao mesmo tempo namoro nasce uma nova abordagem, capaz de tecer as mesmas, bem como diferentes ou até contraditórias outras representações do mesmo objeto. Encontramos eco na reflexão de Plaza (2003, p. 14): Nessa medida colocamos a tradução intersemiótica como via de acesso mais interior ao próprio miolo da tradução. Tradução como prática crítico-criativa, como metacriação, como ação sobre estruturas e eventos, como diálogos de signos, como síntese e reescritura da história. Quer dizer, como pensamento em

signos, como trânsito de sentidos, como transcrição de formas de historicidade. É deste modo dialógico, partindo da premissa que Literatura e Cinema são discursos que se atrem e repelem, que buscamos compreender as duas onras aqui em destaque. 2. Nas trilhas dos textos. Lançado em 1997, Cidade de Deus causou repercussão no meio literário e artístico. Tratavase de um texto com características peculiares que apenas se ocupava de narrar a criminalidade e a violência na favela carioca de Cidade de Deus, é o que vai afirmar qualquer primeiro olhar simplista e mais desatento. Contudo, o romance do escritor Paulo Lins, como bem observou Roberto Schwarz, merece ser saudado como um acontecimento (1999, p. 163). Temos aqui a realidade da favela ou neofavela, como denomina a obra, mostrada por um de seus moradores. O olhar lançado sobre este espaço que preocupa a sociedade, mas do qual ela mesma se distancia, não se apresenta mais sob o olhar dos narradores da classe média, assustados com o crescimento da violência e imbuídos da conscientização pela paz. Agora, quem fala da favela é um de seus filhos que não apenas narra, mas compreende a sua complexidade, a sua brutalidade e a sua dor. Este é um novo veio da produção cultural moderna e, queiram ou não, intelectuais, artistas, políticos e jornalistas, eles se anunciam. Em recente entrevista, ao ser perguntado sobre o que teria a dizer sobre o romance ainda hoje, o autor Paulo Lins respondeu: Esse rebento da miséria e da violência foi gerado no ventre da má distribuição da renda nacional. Hoje, eu o ofereço às elites brasileiras com a dedicatória: 'Toma que o filho é teu. 1 A obra, nascida em virtude de uma pesquisa etnográfica anterior, feita em parceria com a antropóloga Alba Zaluar e que começou a ser escrita ainda na década de 80, causa estranheza e malestar em um primeiro momento. É uma narrativa forte que invade o leitor com sua riqueza de detalhes e seu realismo agressivo para contar a história do cotidiano de bandidos que vivem a criminalidade, o tráfico de drogas e estruturam a violência urbana na favela. Porém, essa dura realidade nos é trazida associada à miséria, à pobreza e à agressão diária de uma sociedade elitista e excludente. A realidade aqui grita e não conforta, muito pelo contrário, o leitor perplexo, dá-se conta mais uma vez dos limites a que chegaram a exploração capitalista e a miséria; o leitor conservador, perplexo, acredita sinceramente que se utiliza a literatura para banalizar a violência; o leitor desavisado, perplexo, procura entender a realidade que se apresenta ali, ficcionalizada. Não há como passar impune, não há como sair imune, qualquer que seja o horizonte político do leitor. 1 Fonte: Jornal do Comércio. Disponível em www.portaldovoluntário.org.br e acessado em 05.01.06.

Cidade de Deus não possui um foco narrativo centralizado. O narrador mobiliza-se para acompanhar a sucessão de tipos e imagens dispostos pelo espaço da favela. Estamos diante de um mural fragmentado, no qual pessoas e histórias bastante diversas, aproximam-se, primeiro pela miséria, depois pelo crime, na condição de expectador ou de agente, porém, não sem envolvimento, de algum modo. Trata-se de um mosaico estilhaçado à espera de um leitor atento que lhe reúna as fraturas e extraia suas densas possibilidades reflexivas. Não caminhamos por uma história e sim por múltiplas histórias que se sobrepõem e se completam. Zé Miúdo, Inferninho, Cabeleira, Silva, Martelo, Cabeça de Nós Todo, Pardalzinho, Mané Galinha, Cenoura, Cleide, Berenice, Lúcia Maracanã, Ana Rubro Negra, Maguinha, Mosca, malandros, otários, bichos-soltos, cocotas, prostitutas, vadias, trabalhadores, trabalhadoras... em última instância, desvalidos, analfabetos, pobres, explorados, oprimidos, humilhados, esquecidos pela sociedade e pelo Estado, a não ser pela ação abusiva da polícia. Cidade de Deus opera agressivamente para apresentar uma dialética que expõe, de maneira descarnada, o crime e a violência, ao mesmo tempo em que problematiza esta dura realidade à luz do debate e das consequências decorrentes da exploração desmedida do trabalho, da fetichização da mercadoria e do apelo consumista a que chegou a sociedade atual. Em Cidade de Deus o nervosismo da escrita é levado ao seu limite pra arrebentar o conforto do leitor e tem a clara intenção de provocar. A realidade é transfigurada na linguagem coloquial, na composição das cenas, no apelo visual trazido pela obra e na aproximação textual com a linguagem do cinema. Por estes e outros aspectos, é que podemos observar que o romance, ao fundar uma nova linguagem, desloca o nosso olhar de leitor e de crítico, no sentido do que nos coloca Júlio Plaza, ao observar que: Como sistema-padrão organizado culturalmente, cada linguagem nos faz perceber o real de forma diferenciada, organizando nosso e constituindo nossa consciência. A mediação do mundo pelo signo não se faz sem profundas modificações na consciência, visto que cada sistema-padrão de linguagem nos impõe suas normas, seus cânones, ora enrijecendo, ora liberando a consciência, ora colocando a sua sintaxe como moldura que se interpõe entre nós e o mundo real. (2003, p. 14) A obra compõe o novo cenário da literatura marginal e opera com novos elementos imagéticos e sensíveis, quando tratamos da sua relação simbólica com o real. Neste construto, um personagem, em especial, chama a atenção, o bandido Zé Pequeno. O que se coloca, então, para a crítica, nestes textos, é a impossibilidade de operar com os mesmos elementos de análise de outrora. Este novo modelo de escrita a que Roberto Schwarz chama arte compósita requer uma análise que se movimente entre as áreas de literatura e as demais (Sociologia, História, Filosofia, Ciência

Política e Economia), de modo que olhar para o literário não dissocie as suas diversas instâncias de composição. Assim, observemos as impressões de ROCHA: Paulo Lins e Ferréz explicitam o verdadeiro salto qualitativo da dialética da marginalidade, superando definitivamente a brutalidade dos cobradores de Rubem Fonseca, pois a violência somente reforça a desigualdade social. De um lado, legitima a repressão policial, que já afeta cotidianamente a população das áreas mais pobres. De outro lado, estimula as correntes mais reacionárias da sociedade civil, perfeitamente representadas por programas de televisão como o já referido "Cidade Alerta" e derivados, sempre prontos a exigir a pena de morte e o aumento do aparato repressivo. É como se o sistema se beneficiasse da violência e até mesmo contasse com ela, a fim de justificar sua própria necessidade. A alternativa, portanto, é converter a violência cotidiana em força simbólica, por intermédio de uma produção cultural vista como modelo de organização comunitária. O ódio do cobrador voltava-se contra indivíduos e, por isso mesmo, tinha um alcance limitado. A dialética da marginalidade, pelo contrário, tem como alvo o dilema coletivo e se caracteriza por um esforço sério de interpretação dos mecanismos de exclusão social, pela primeira vez realizado pelos próprios excluídos. (2004, s/p). O filme, com o mesmo nome, dirigido por Fernando Meirelles e lançado em 2002, provocou grande repercussão no cenário nacional e internacional, pela realidade ficcionada e mediada por imagens fortes, que ora conseguia apresentar ao leitor/ expectador. Por força de sua recepção, as imagens trazidas pelo filme trouxeram para leitores do mundo inteiro símbolos representacionais do Brasil, da favela, do crime e dos bandidos. Em especial, uma imagem também tomará a sociedade de modo peculiar nesta trilha de entrecruzamento entre texto literário e texto fílmico: o bandido Zé Pequeno. A despeito da gama de possibilidades críticas que o filme suscita, no que tange a este personagem, em especial, podemos adotar dois focos para a abordagem representacional, um que parte do texto literário conflitivo e caleidoscópico e outro que emerge do texto fílmico a nosso ver, conciliador e ponto de partida para leituras estereotipadas. Vejamos como João Cezar de Castro Rocha (2011, p. 44) reflete o problema: Ora, qual o ponto de vista narrativo do filme Cidade de Deus? Em lugar de um narrador difuso e deliberadamente ambíguo, optou-se pela determinação do foco narrativo em primeira pessoa, atribuído ao adolescente Buscapé. No filme, ele parece ter dois problemas principais: perder a virgindade e deixar a favela graças a um possível emprego como fotógrafo. Essa extraordinária simplificação da personagem corresponde a um propósito duplo: tanto torna o horror da história mais palatável, por acrescentar uma dose de comédia, quanto associa o desejo do espectador, de distanciar-se da realidade ao objetivo do rapaz de abandonar Cidade d Deus. Ao mesmo tempo, no tocante à audiência internacional, a história da primeira noite de um homem, no caso do favelado Buscapé, permite uma rápida associação com um clichê narrativo explorado à exaustão pelo cinema holywoodiano.

Portanto, a escolha do foco narrativo é reveladora. A perspectiva de Buscapé estabelece uma série de mediações entre o espectador e as causas da violência: o ponto de vista do fotógrafo, a própria câmera; o desejo de Buscapé de escapar da verdadeira favela da Cidade de Deus. Esses vários filtros tornam a insuportável realidade da comunidade dominada pelo tráfico de drogas em material para um espetáculo dinâmico, inegavelmente divertido e muito bem feito. Assim, o voyeurismo de Buscapé, fotógrafo da própria comunidade, legitima nosso papel de voyeurs da miséria alheira. Se o foco do filme tivesse sido o Zé Pequeno, o público teria louvado o filme Cidade de Deus? Como poderíamos, audiência de outras classes sociais, identificarmo-nos com o ponto de vista de um criminoso impiedoso? Eis o ponto de conciliação representacional do texto fílmico: a apresentação de Zé Pequeno o demonstra impiedoso e não sujeito conflitivo em uma sociedade marcada por situações de desigualdade social violentas. A cena/imagem que se cristaliza no imaginário popular a partir do filme conforta uma certa classe média que prefere acreditar nas razões patológicas e imutáveis para o crime, como relembramos a seguir: O romance, sendo polifônico, nos mostra as diversas faces de uma mesma realidade social, crivada de pontos de análise que oscilam entre o social e o psicológico, entre a pobreza e o consumo, entre o estigma e autoaceitação, entre o presente e a memória. A memória de Zé Pequeno é um detalhe importante, que aponta problemas na análise determinista deste marginal/bandido/criminoso, para o qual a sociedade está sempre disposta a pedir pena de morte e extermínio. Mas, é preciso retornar ao passado para repensar os desígnios do presente: Dadinho nasceu na favela Macedo Sobrinho em 1955. Era o segundo de uma família de três filhos. Ficou órfão de pai aos quatro anos de idade, seu genitor morrera afogado numa pescaria em Botafogo, deixando a família em apuros por nunca ter tido emprego oficializado. A mãe, obrigada a trabalhar fora, deixou os filhos sob os cuidados de parentes. O bandido foi criado pela madrinha na casa de sua patroa, no Jardim Botânico. (CD, p.184)

Zé Pequeno não é um problema dele mesmo. Há no romance, a anulação de qualquer possibilidade de transformação exclusivamente individual, pois o problema é urgente e de todos. Além do mais, como nos lembra Schwarz: Morto no chão, o senhor violento e astuto da vida e da morte dos outros é um menino desdentado, desnutrido e analfabeto, muitas vezes descalço e de bermuda, de cor sempre escura, o ponto de acumulação de todas as injustiças de nossa sociedade, (1999, p. 167). Não esqueçamos disto, ao lançarmos nossos olhares sobre o personagem. 3. Conclusão A tematização da violência encerra problemas mais agudos. A radiografia da desigualdade, sem querer justificar a violência na miséria, depõe que é preciso dar-se conta que o país encontra-se, ele também, no limite da diferenciação explosiva entre os que possuem e os que não possuem. Porém, há que se perceber que a resistência operada com base na revolta e no crime é nãoorganizada, ao contrário, trata-se de uma reação explosiva à exploração desmedida e à retirada da capacidade de consumo em uma sociedade na qual a fetichização da mercadoria se aprofundou de tal modo que consumo virou sinônimo de cidadania. Por isso, mais uma vez, insistimos na necessidade de uma leitura que, de forma dialética para acompanhar a complexidade do problema associe as dimensões política, histórica, filosófica, sociológica e econômica, ou cairemos no erro de enveredar pelo caminho mais fácil: a leitura permeada exclusivamente pelo juízo moralizador. Quando tratamos do marginal, os discursos que aparecem sobre ele, tendem a explicar ou repelir, mas de um modo ou de outro eis um sujeito que angustia a sociedade brasileira, dado que mesmo sendo o que ela gostaria de ter, exclusivamente, como seu reverso, é parte e resultado de suas práticas e escolhas históricas. Entendemos que a cultura é um lugar privilegiado de construção de sentidos/práticas e, neste processo, literatura e cinema, são discursos a partir dos quais se instituem e difundem identidades no imaginário social. Assim, em um contexto em que o debate sobre a violência na sociedade se torna cada vez mais necessário, compreender como estes campos tecem as representações sobre o marginal e a marginalidade é uma etapa importante nos estudos sobre a cultura contemporânea e no entendimento das identidades que emergem no cenário nacional, a fim de buscar uma outra história. Referências Bibliográficas 1] FERRÉZ. Literatura Marginal talentos da escrita periférica. Rio de janeiro: Agir, 2005. 2] LINS, Paulo. Cidade de Deus. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 3] LINS, Paulo. Entrevista a Heloísa Buarque de Holanda. Disponível em: <http://portalliteral.terra.com.br/literal/calandra>. Acesso em: 03 ago. 2006.

4] MEIRELES, Fernando; LUND, Kátia. Cidade de Deus. Miramax films, 2002. 5] SILVA, Valquíria Lima da. Escrevendo com o corpo: Paixão pagu e a experimentação revolucionária de Parque Industrial. Dissertação de Metrado. Feira de Santana: UEFS, 2007. 6] PLAZA, Júlio. Tradução intersemiótica. São Paulo: perspectiva, 2003. 7] ROCHA, João Cezar de Castro. Dialética da marginalidade. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/>. Acesso em: 02 mar. 2004. 8] ROCHA, João Cezar de Castro. A guerra de relatos no Brasil contemporâneo. Ou: a dialética da marginalidade. In: Revista de pós-graduação em Letras PPGL/UFSM. Disponível em: http://w3.ufsm.br/revistaletras/artigos_r32/revista32_2.pdf. Acesso em 12 de Março de 2011. 9] SCHWARZ, Roberto. Seqüências Brasileiras: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.