MAURO SÉRGIO DOS SANTOS DIREITO



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Transcrição:

MAURO SÉRGIO DOS SANTOS curso de DIREITO 2ª edição Revista e ampliada Mauro Sergio -Curso de Direito Administrativo 2ed.indb 3 24/03/2016 10:47:52

1 DIREITO ADMINISTRATIVO 1.1. NOÇÕES GERAIS Quanto mais evoluído for o Direito Administrativo de um Estado, mais desenvolvidas e democráticas serão suas instituições. Isso porque esse ramo do Direito Público não se compatibiliza com o modelo dos Estados absolutos, sobretudo pelo fato de que nestes não há um controle rígido da atividade administrativa por órgãos ou entes estatais e principalmente pela sociedade civil organizada. Por tais razões, apenas com o surgimento dos movimentos constitucionalistas do século XVIII, mais precisamente a partir da entrada em vigor das Constituições Americana de 1787 e Francesa de 1791, é que surgiu um campo mais fértil para o desenvolvimento do Direito Administrativo como ramo autônomo do Direito. Com efeito, esse desenvolvimento somente passou a afigurar-se possível em virtude da organização do Estado, a partir de critérios estabelecidos na própria Constituição, e também do surgimento da ideia de Estado de Direito, que é aquele em que todas as pessoas se sujeitam às leis, inclusive e principalmente aquelas que as elaboram. Nesse contexto, leciona Maria Sylvia Zanella Di Pietro que A formação do direito administrativo teve início, juntamente com o direito constitucional e outros ramos do direito público, a partir do momento em que começou a desenvolver-se já na fase do Estado Moderno o conceito de Estado de Direito, estruturado sobre o princípio da legalidade (em decorrência do qual até mesmo os governantes se submetem à lei, em especial à lei fundamental que é a Constituição) e sobre o princípio da separação de poderes, que tem por objetivo assegurar a proteção dos direitos individuais, não apenas nas relações entre particulares, mas também entre estes e o Estado. 1 1 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. 500 Anos de direito administrativo brasileiro. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ Centro de Atualização Jurídica, nº 10, janeiro, 2002. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em: 2 jan. 2011. Mauro Sergio -Curso de Direito Administrativo 2ed.indb 27 24/03/2016 10:47:54

28 CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIVO Mauro Sérgio dos Santos Corroborando o conceito acima, podemos afirmar que o Direito Administrativo originou-se no final do século XVIII, com a criação do sistema do contencioso administrativo na França, que se caracterizava pela existência de órgãos administrativos estranhos, portanto, ao Poder Judiciário que possuíam competência para julgar os processos em que a Administração figurasse como parte. Essa estrutura orgânica perdura até os dias atuais, propiciando, ao longo de mais de dois séculos, a criação e incorporação de vários princípios específicos do Direito Administrativo no ordenamento jurídico francês, dando vida própria a esse importante ramo do Direito moderno. No Brasil, o Direito Administrativo finca suas raízes no ano de 1856, tendo sido ministrado pela primeira vez como disciplina autônoma na Faculdade de Direito de São Paulo. Em seguida, também foi criada a mesma cadeira na Faculdade de Direito de Olinda, em Pernambuco. O Direito Administrativo, como já afirmado, é um ramo do Direito Público. É de conhecimento geral que o Direito é uno e indivisível, mas, por tradição e para fins didáticos, desde a época dos romanos é dividido em dois grandes ramos: direito público e direito privado. Essa divisão leva em conta sobretudo o interesse prevalente nas inúmeras relações jurídicas abarcadas em cada ramo jurídico. Com efeito, se numa determinada relação jurídica prevalece o interesse do Estado ou o da sociedade como um todo, tal relação será tutelada por um ramo de direito público, como o direito constitucional, o tributário, o penal, o processual, o ambiental, o eleitoral e, por óbvio, o direito administrativo. Por outro lado, os ramos de direito privado são responsáveis por regular as relações jurídicas em que preponderam os interesses particulares. São exemplos o direito civil e o empresarial, entre outros. Enquanto a principal característica do direito privado é a existência de igualdade entre as partes, nos ramos do direito público prevalece a desigualdade nas relações jurídicas, tendo em vista, em regra, a preponderância do interesse público sobre o privado. 1.2. CONCEITO Inúmeros são os conceitos de Direito Administrativo encontrados na doutrina especializada. Isso se explica pelo fato de que alguns doutrinadores conceituam esse ramo do direito público a partir de seu objeto principal, que consiste no estudo das atividades administrativas atribuídas ao Estado, enquanto outros englobam no conceito também os entes ou órgãos que executam os serviços e atividades de competência estatal. Para Celso Antônio Bandeira de Mello, Direito Administrativo é o ramo do Direito Público que disciplina a função administrativa e os órgãos que a exercem. 2 Já o Prof. José dos Santos 2 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 27. Mauro Sergio -Curso de Direito Administrativo 2ed.indb 28 24/03/2016 10:47:54

Cap. 1 DIREITO ADMINISTRATIVO 29 Carvalho Filho define o Direito Administrativo como sendo o conjunto de normas e princípios que, visando sempre ao interesse público, regem as relações jurídicas entre as pessoas e órgãos do Estado e entre este e as coletividades a que devem servir. 3 Na doutrina internacional, Guido Zanobini define o Direito Administrativo como a parte do Direito Público que tem por objeto a organização, os meios e as formas de atividade da Administração Pública e as consequentes relações jurídicas entre ela e os outros indivíduos. 4 Levando-se em conta as mais diversas relações jurídicas que, de uma forma ou de outra, envolvem o Estado, pode-se conceituar o Direito Administrativo como o conjunto de regras e princípios aplicáveis ao Estado em suas relações com particulares, com seus agentes ou consigo mesmo, tendentes à realização de atividades administrativas típicas ou outras de índole privada, mas sempre visando o interesse público. O Direito Administrativo visa à satisfação do interesse coletivo, ou, do ponto de vista filosófico, ao alcance do bem comum, assim entendido como o complexo de necessidades a que a iniciativa privada não pode responder e que são absolutamente vitais para a comunidade. 5 Na perspectiva de cumprir seu papel, o Direito Administrativo apresenta dupla função: legitimar a intervenção da autoridade pública e proteger a esfera jurídica dos particulares ou, por outras palavras, permitir a realização do interesse coletivo e impedir o esmagamento dos interesses individuais. 6 1.3. CODIFICAÇÃO O Direito Administrativo, no Brasil, não é codificado. Significa com isso dizer que não existe um texto único no qual são reunidas, de forma científica e sistematizada, todas as regras e princípios deste ramo jurídico, tal como acontece com o direito penal, o direito processual, o direito civil e outros. Não obstante seja regra em nosso sistema jurídico a codificação dos ramos jurídicos que adquirem autonomia, o Direito Administrativo seguiu rumo inverso, pois, embora tenha vida própria desde o século XIX, não há, como já mencionado, um código administrativo. Por esse motivo, as regras e princípios aplicáveis ao Direito Administrativo brasileiro encontram-se espalhados por todo o ordenamento, a começar pela Constituição Federal, passando também por diversas leis ordinárias, complementares e ainda inúmeros outros atos normativos. 3 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 21. ed. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2009. p. 8. 4 ZANOBINI, Guido. Corso di Diritto Amministrativo. Vol. 1. 8. Ed. Milão, 1958. p. 26. 5 RIVERO, Jean. Direito administrativo. Coimbra: Livraria Almedina, 1981. p. 14. 6 Conforme lição RIVERO, Jean. Op. Cit. 1981, p. 157. Mauro Sergio -Curso de Direito Administrativo 2ed.indb 29 24/03/2016 10:47:54

30 CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIVO Mauro Sérgio dos Santos A ausência de codificação em nada interfere na autonomia do Direito Administrativo brasileiro, que, diga-se, vive por si mesmo a partir de seus inúmeros princípios norteadores e também em razão da existência de cadeiras desse ramo jurídico nos currículos das faculdades de direito de todo o País. No entanto, não se pode negar que a codificação do Direito Administrativo apresentaria algumas vantagens, como, por exemplo, maior segurança jurídica nas relações com o Estado, facilidade de acesso e conhecimento de suas normas pela sociedade e previsibilidade das decisões administrativas e judiciais. Como não há um código administrativo no Brasil, torna-se conveniente citar, desde logo, algumas das leis administrativas mais importantes: Lei n.º 8.112/90 (Estatuto dos Servidores Públicos Federais), Lei n.º 8.666/93 (Estatuto de Licitações e Contratos), Lei n.º 9.784/99 (Normas Gerais sobre o Processo Administrativo Federal), Lei n.º 8.987/95 (Lei Geral de Concessões e Permissões), Lei n.º 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa), Lei nº 12.527/2011 (Lei de Acesso à Informação), entre outras. Cada uma delas, a seu tempo, será objeto de minuciosa análise nesta obra. 1.4. FONTES Examinar as fontes de um ramo do Direito significa desvendar suas origens. Significa, em outras palavras, descobrir de onde surgem suas regras e princípios. Nesse sentido, as fontes principais do Direito Administrativo são: a lei (norma jurídica) 7, a jurisprudência, o regulamento administrativo, a doutrina e os costumes. 1.4.1. Lei A norma jurídica é fonte primordial do Direito Administrativo e, por assim ser, o agente público somente pode agir como e quando autorizado pela ordem jurídica ao contrário do particular, que pode agir quando houver lei autorizadora e também quando não houver lei proibitiva (silêncio legal). Sintetizando, a atuação do agente público é limitada à existência de uma autorização ou determinação legal. Conforme lição sempre atual de Jean Rivero: Na norma jurídica, a atividade administrativa encontra ao mesmo tempo o seu motor e o seu limite: o seu motor, porquanto a norma jurídica, ao distribuir as competências, dá a cada agente o título que o habilita a agir, indica-lhe os fins a atingir e confere-lhe os poderes necessários; o seu limite, porquanto a actividade administrativa nada pode empreender contra a norma de direito. 8 7 Conforme será abordado no capítulo seguinte, não só as regras mas também os princípios jurídicos que informam o Direito Administrativo vinculam a atuação da Administração Pública. 8 RIVERO, Jean. Op. Cit., 1981, p. 57. Mauro Sergio -Curso de Direito Administrativo 2ed.indb 30 24/03/2016 10:47:54

Cap. 1 DIREITO ADMINISTRATIVO 31 Ressalte-se, desde logo, que o vocábulo lei é aqui tomado em sentido amplo, ou seja, não é fonte do Direito Administrativo apenas a lei stricto sensu (lei ordinária, lei complementar), mas todo e qualquer ato normativo emanado do Poder Legislativo ou da própria Administração Pública. Em outras palavras, não só a lei mas todo o ordenamento jurídico deve ser compreendido como fonte do Direito Administrativo. 9 Nesse contexto, são fontes do Direito Administrativo: a Constituição Federal, as normas oriundas do Poder Legislativo e ainda os atos normativos editados pela própria Administração Pública (regulamentos, portarias, instruções normativas etc.). Todas essas normas corporificam o sentido amplo do vocábulo lei e, bem por isso, vinculam a vontade administrativa. No capítulo seguinte serão examinados os princípios da Administração Pública, dentre os quais o da legalidade, quando então será enfatizada a importância da lei, tida como fonte principal (primária) do Direito Administrativo. 1.4.2. Jurisprudência A jurisprudência também é, hoje, uma importante fonte do Direito Administrativo brasileiro. A ausência de sistematização provocada pela não codificação desse ramo jurídico reforça a relevância da jurisprudência, pois vários importantes temas relacionados ao Direito Administrativo não têm o adequado delineamento legal e, por isso mesmo, sofrem clara influência da jurisprudência na composição de conflitos. Como se sabe, a jurisprudência é formada a partir de reiteradas decisões judiciais em um mesmo sentido. Como regra geral, a jurisprudência não apresenta eficácia erga omnes nem efeito vinculante, ou seja, em princípio atinge apenas aqueles sujeitos que participaram do processo judicial. Por isso, no Brasil, mesmo que um tribunal edite uma súmula sobre determinado assunto, os juízes que lhe são vinculados não estão obrigados a cumpri-la. Essa é a regra. Contudo, apesar de não exigir observância obrigatória por parte dos aplicadores do Direito, a jurisprudência brasileira, como fonte de Direito, ganhou novo status a partir da criação do instituto da súmula vinculante, que poderá ser aprovada pelo Supremo Tribunal Federal, de ofício ou mediante provocação, por decisão de dois terços dos seus membros, depois de reiteradas decisões sobre matéria constitucional, com efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e também à Administração Pública direta e indireta (CF/88, art. 103-A, incorporado pela EC nº 45/2004). Como se vê, a súmula vinculante inovou o sistema jurídico brasileiro e agora, tal qual a norma jurídica, deve também ser elevada à condição de fonte principal (primária) do Direito Administrativo, porquanto, inegavelmente, tem o condão de determinar condutas à Administração Pública e ao próprio Poder Judiciário. 9 Conforme lição de ENTERRÍA, Eduardo Garcia de; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Derecho Administrativo. Vol. I. 15. Ed. Pamplona: Editorial Aranzadi, 2011, p. 459. Mauro Sergio -Curso de Direito Administrativo 2ed.indb 31 24/03/2016 10:47:54

32 CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIVO Mauro Sérgio dos Santos 1.4.3. Regulamento administrativo Os regulamentos administrativos, nas palavras de Diogo Freitas do Amaral, são as normas jurídicas emanadas no exercício do poder administrativo por um órgão da Administração ou por outra entidade pública ou privada para tal habilitada por lei 10. Regulamento é, em síntese, toda norma escrita expedida pela Administração Pública. 11 O regulamento se assemelha à lei, em seu caráter geral, impessoal e permanente, mas dela se diferencia por emanar de órgão distinto bem como por ser uma norma secundária e de categoria inferior à lei. 12 O regulamento tem o poder de vincular a conduta dos destinatários e também as atividades desenvolvidas pelo próprio órgão ou ente que o expediu, daí sua inequívoca natureza de norma jurídica e, pois, fonte do Direito Administrativo moderno. Como normas editadas no exercício da função administrativa que carregam consigo um comando geral emanado do Poder Público, os regulamentos administrativos têm por objetivo permitir a fiel execução de determinada lei ou, em casos pontuais, criar direito novo. Com efeito, após a edição da EC n.º 32/01 passou a existir no ordenamento jurídico um novo tipo de regulamento, com contornos próprios, denominado decreto autônomo ou regulamento independente. Diferentemente do decreto regulamentar ou de execução e de todos os demais regulamentos, que são expedidos com a finalidade de explicitar a lei visando sua correta aplicação, no caso do decreto autônomo não há qualquer lei a ser regulamentada. É o próprio regulamento que cria o direito, bastando para tanto que sejam observadas as limitações formais e materiais previstas no art. 84, VI da Constituição. Os regulamentos administrativos serão examinados em detalhes no capítulo 7. 1.4.4. Doutrina A doutrina é fonte secundária do Direito Administrativo. Diz-se secundária porque não possui caráter de obrigatoriedade, tal como a norma jurídica e a súmula vinculante. Não obstante, sua importância é enorme, pois é a partir das lições dos estudiosos do Direito Administrativo que surgem os diversos princípios que o informam e que, futuramente, servirão como alicerces para que o legislador crie novas leis e também para que os membros do Poder Judiciário embasem suas decisões. Como a doutrina não tem poder de decidir, há autores que sequer a reconhecem como fonte formal do Direito, designadamente pelo fato de não 10 AMARAL, Diogo Freitas. Curso de Direito Administrativo. Vol. II. Coimbra: Almedina, 2009. Pp. 151/152. 11 ENTERRÍA, Eduardo Garcia de, e FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Derecho Administrativo. Tomo I, Decimoquinta Edición. Pamplona: Editorial Aranzadi, 2011, 189. 12 SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 6. Ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 57. Mauro Sergio -Curso de Direito Administrativo 2ed.indb 32 24/03/2016 10:47:54

Cap. 1 DIREITO ADMINISTRATIVO 33 gerar modelos jurídicos, propriamente ditos, que são sempre prescritivos, mas, diferentemente, modelos dogmáticos ou hermenêuticos, o que em nada lhe diminui a relevância, porquanto desempenha frequentemente uma posição de vanguarda, ao esclarecer a significação de modelos jurídicos através do tempo ou exigindo novas formas de realização do Direito. 13 Outros autores, contudo, com quem nos filiamos, sustentam ser a doutrina uma fonte secundária ou indireta, porquanto submete o direito positivo a uma análise crítica e, para além disso, tem vocação para criar novos conceitos e institutos, favorecendo com isso o trabalho do legislador e também, de modo geral, do aplicador do Direito. 14 1.4.5. Costume O conjunto de regras não escritas, mas devidamente respeitadas por determinada comunidade, leva o nome de costume, que também é fonte do Direito Administrativo. O costume, conquanto a cada dia perca importância na sua condição de fonte do Direito Administrativo, ainda hoje é alçado pela maioria da doutrina como fonte secundária deste ramo do Direito. 15 O costume, entretanto, somente pode se considerar exigível se estiver em consonância com as regras ou princípios que informam o Direito Administrativo. Em outras palavras, costumes contra legem não se sustentam juridicamente, sobretudo no âmbito da Administração Pública, cujo principal vetor e base de sustentação é o princípio da legalidade. Deve-se diferenciar o costume que, como dito, traduz um complexo de regras não escritas consideradas obrigatórias por uma coletividade, da prática (praxe) administrativa, que nada mais é do que a reiterada atuação da Administração Pública em um mesmo sentido, como, por exemplo, a práxis existente há várias décadas de rubricar e numerar todas as folhas dos processos administrativos, sendo que tal conduta somente foi considerada obrigatória a partir da exigência contida no art. 22 da Lei nº 9.784/99. Costume e prática administrativa são diferentes, sendo que ambos se aproximam apenas pela sua reduzida relevância no Direito Administrativo moderno e também pelo fato de que, atualmente, somente poderão ser utilizados quando não se incompatibilizarem com as regras e princípios administrativos. Em resumo, pode-se afirmar que são fontes primárias do Direito Administrativo a norma jurídica (regras e princípios) e a súmula vinculante. A 13 REALE, Miguel. Fontes e Modelos do Direito (para um novo paradigma hermenêutico). São Paulo: Saraiva, 1994, pp. 1-10. 14 NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. Rio de janeiro: Forense, 2003, p. 178. 15 Alguns autores, como Lúcia Valle Figueiredo, sequer admitem que o costume seja considerado fonte do Direito Administrativo (FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 46). Mauro Sergio -Curso de Direito Administrativo 2ed.indb 33 24/03/2016 10:47:54

34 CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIVO Mauro Sérgio dos Santos doutrina e o costume, por outro lado, são fontes apenas secundárias, eis que não ostentam caráter de vinculação relativamente à Administração Pública. 1.5. SISTEMAS ADMINISTRATIVOS A complexa atividade administrativa exige que o poder público pratique diariamente um grande número de atos administrativos que comumente afetam a vida dos administrados. Tais atos, quando praticados de forma ilegal ou ilegítima, devem ser corrigidos. Sistema administrativo é justamente o regime adotado pelo Estado para a correção dos atos administrativos praticados em dissonância com as regras e princípios que regem a Administração Pública. Atualmente, dois são os principais regimes de controle de atos administrativos existentes no mundo ocidental: o sistema de jurisdição única e o sistema do contencioso administrativo. 1.5.1. Sistema de Jurisdição Única O sistema de jurisdição única, também conhecido como sistema judiciário ou, dada sua origem, simplesmente como sistema inglês, é aquele em que compete apenas ao Poder Judiciário a resolução definitiva de todos os conflitos (litígios) existentes nos limites territoriais de um Estado, seja nas lides que envolvam apenas particulares, pessoas físicas ou jurídicas, seja naquelas envolvendo as entidades da Administração Pública. O fato de um Estado adotar o sistema inglês não impede que a Administração decida os processos administrativos que lhe dizem respeito ou que exerça o controle de legalidade sobre seus próprios atos. Não é isso! A adoção do sistema inglês indica simplesmente que, embora a Administração possa proferir julgamentos e corrigir seus atos, apenas a decisão emanada do Poder Judiciário terá o condão de produzir a coisa julgada material. Em outras palavras, nesse sistema não se nega à Administração o direito de emitir juízos de valor, mas suas decisões jamais poderão adquirir o status de imutáveis, sendo, por isso, passíveis de correção pelo Poder Judiciário. Por coisa julgada material entenda-se a qualidade dos efeitos de uma decisão judicial de mérito que a torna imutável dentro e fora do processo, 16 em razão da preclusão temporal (quando a parte não recorre no prazo legal) ou quando não cabe mais recurso (por ter a parte percorrido todas as instâncias jurisdicionais). 16 Diz-se que a decisão torna-se imutável dentro do processo porque, naquele caso específico posto em julgamento, não mais é possível rediscutir a decisão judicial, tendo em vista a impossibilidade de interpor qualquer recurso; já a imutabilidade dos efeitos da decisão fora do processo indica que as partes não poderão, por meio de novas demandas judiciais, retomar a discussão sobre o objeto já decidido pelo Poder Judiciário, em virtude de estar a decisão acobertada pelo manto da coisa julgada. Mauro Sergio -Curso de Direito Administrativo 2ed.indb 34 24/03/2016 10:47:54

Cap. 1 DIREITO ADMINISTRATIVO 35 Portanto, quando se adota o sistema de jurisdição única, mesmo que um particular tenha um processo tramitando junto à Administração Pública, ou prestes a tramitar, ou já julgado em todas as instâncias administrativas, ainda assim poderá, respeitados os prazos de prescrição, bater às portas do Poder Judiciário para que este aprecie o litígio e o decida de forma definitiva. De origem inglesa, o sistema de jurisdição única é utilizado na atualidade por inúmeros países, a exemplo dos Estados Unidos da América, do México e do Brasil, entre outros. 1.5.2. Sistema do Contencioso Administrativo Por outro lato, existe o chamado sistema do contencioso administrativo ou da dualidade de jurisdição, conhecido ainda como sistema francês, segundo o qual os processos atinentes à Administração Pública não são levados à apreciação do Poder Judiciário, mas instruídos e julgados por órgãos de natureza administrativa pertencentes à estrutura da própria Administração Pública. 17 Com o advento da Revolução Francesa e também da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, ambas ocorridas em 1789, o contencioso administrativo passou a ser o sistema de correção de atos da Administração vigente na França e assim permanece até os dias atuais. Os franceses, a partir de uma interpretação própria do pensamento de Montesquieu, passaram a entender que a forma mais eficaz de reagir contra os abusos do parlamento seria o respeito absoluto à separação de poderes, com vistas a impedir que fosse confiada à jurisdição comum a tarefa de julgar conflitos que envolvessem a Administração pública. Nesse contexto histórico, a França criou uma jurisdição excepcional, estranha ao Poder Judiciário. 18 Assim, diferentemente do que ocorreu com a maioria dos outros países, os franceses optaram por uma tripartição rígida dos poderes, por meio da qual o controle sobre a legalidade dos atos da Administração deve ser realizado pela própria Administração e não pelo Poder Judiciário. O sistema do contencioso administrativo, nas palavras de Sérvulo Correia, é uma ordem jurisdicional administrativa 19 constituída por órgãos nomeados tribunais administrativos, estruturados e hierarquizados no seio da Administração. 20 17 Importante esclarecer que nem todas as demandas de interesse da Administração Pública são excluídas da apreciação do Poder Judiciário no sistema do contencioso administrativo. Com efeito, os litígios relativos às atividades administrativas de índole privada; ao estado e à capacidade das pessoas e ainda as causas relacionadas à propriedade privada são processadas e julgadas pelo Poder Judiciário. 18 Conforme lição de CHAPUS, René. Droit du Contentieux Administratif. 8. ed. Paris: Montchrétien, 1999, p. 35. 19 SÉRVULO CORREIA, José Manuel. Direito do Contencioso. Lisboa: Lex, 2005, p. 34. 20 Em Portugal, o contencioso administrativo é referido pelo prof. Vieira de Andrade simplesmente como Justiça Administrativa. Para saber mais: VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. A Justiça Administrativa. 13ª ed., Coimbra: Almedina, 2014. Mauro Sergio -Curso de Direito Administrativo 2ed.indb 35 24/03/2016 10:47:55

36 CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIVO Mauro Sérgio dos Santos Nos Estados que adotam esse sistema por certo também existe o Poder Judiciário, que possui todas as competências que lhe são próprias, à exceção da matéria administrativa, que é reservada a órgãos administrativos próprios que, como dito, não compõem a estrutura do Poder Judiciário. No sistema francês, reforce-se, os litígios envolvendo matéria administrativa são de competência exclusiva de tribunais administrativos, que, não obstante sejam chamados de tribunais, são, não custa repetir, órgãos do Poder Executivo e não do Poder Judiciário. O Sistema francês tem como instância máxima o Conselho de Estado da França (Conseil d État), que possui como principais atribuições: deliberar em derradeira instância nos processos do contencioso administrativo e decidir sobre eventuais abusos de poder praticados por agentes públicos. Além da França, seu berço, também adotam o sistema do contencioso administrativo a Suíça, a Grécia, a Polônia, entre outros países. Portanto, o sistema francês caracteriza-se pela dualidade de jurisdição: enquanto os tribunais administrativos, órgãos alheios à estrutura do Poder Judiciário, detêm o poder de aplicar a lei aos casos concretos em matéria administrativa, o Poder Judiciário tradicional cuida, em regra, de todas as demais lides que não envolvam o Estado. Depreende-se, em face dessa cisão da jurisdição, que as decisões emanadas dos Tribunais Administrativos, findos os recursos eventualmente cabíveis, tornam-se imutáveis tanto administrativa como judicialmente, produzindo, pois, em face disso, os efeitos da coisa julgada material, anteriormente explicitada. 1.5.3. Sistema Administrativo Brasileiro O Brasil, desde a Constituição de 1891, adota o sistema inglês, de jurisdição única ou judiciário. 21 Importa com isso dizer que todos os litígios, sejam aqueles envolvendo interesses apenas de particulares, sejam os que também afetam a Administração Pública, podem se submeter ao crivo do Poder Judiciário. A Jurisdição é uma das funções do Estado e significa o poder de dizer o Direito, de aplicar a lei ao caso concreto, de modo a resolver definitivamente conflitos de interesses entre as pessoas. No Brasil, ainda que fosse editada lei no sentido de transferir parcelas da jurisdição ao Poder Executivo, de forma semelhante ao que ocorre na França, tal lei fatalmente seria declarada inconstitucional pelos órgãos competentes, haja vista o princípio da inafastabilidade de jurisdição, previsto expressamente no art. 5º, XXXV, da CF/88, o qual dispõe que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. 21 Registre-se que a Constituição Imperial de 1824 criou o Conselho de Estado brasileiro, que apresentava algumas semelhanças em relação ao Conselho de Estado da França, muito embora possuísse atribuições apenas de natureza consultiva. Tal órgão foi suprimido de forma definitiva pela Constituição Republicana de 1891. Mauro Sergio -Curso de Direito Administrativo 2ed.indb 36 24/03/2016 10:47:55

Cap. 1 DIREITO ADMINISTRATIVO 37 O fato de o Brasil adotar o sistema inglês, como já explicitado, não retira da Administração Pública o poder de decidir processos administrativos nem de corrigir seus próprios atos, mas apenas ressalva que tais decisões sempre poderão ser revistas pelo Poder Judiciário. Em outras palavras, é possível dizer que a decisão emanada da Administração Pública, depois de esgotados todos os recursos administrativos, torna-se imutável apenas na seara administrativa, tendo em vista que a qualquer momento, respeitados os prazos prescricionais, referida decisão poderá ser revista pelos órgãos do Poder Judiciário, que são os únicos aptos constitucionalmente a produzir o fenômeno da coisa julgada material. Por fim, resta esclarecer que, como a atual Constituição não exige o esgotamento da instância administrativa para a propositura de demanda judicial, via de regra, esta poderá ser ajuizada a qualquer tempo, ou seja, antes, durante ou após a tramitação do procedimento administrativo, desde que não tenha havido ainda prescrição. Observe os exemplos a seguir: 1º João é autuado por determinado órgão público: neste caso, João poderá optar entre impugnar administrativamente o ato junto à própria Administração ou ingressar, desde logo, com a competente ação judicial; 2º João é autuado e ingressa com a impugnação administrativa: a qualquer momento, antes ou depois de a Administração se manifestar sobre tal impugnação, João poderá simplesmente desconsiderar o procedimento administrativo em curso e levar a questão à Justiça; 3º João é autuado e ingressa com a impugnação administrativa; após sucessivos recursos julgados improcedentes, não há mais possibilidade de recorrer na esfera administrativa: ainda que não caiba mais recurso na seara administrativa, esse fato não impede que João ajuíze a competente ação judicial, pois, conforme já explicitado, o Brasil adota o sistema de jurisdição única, razão pela qual somente a decisão de mérito oriunda do Poder Judiciário, de que não caiba mais recurso, produz os efeitos da coisa julgada material, tornando-se, por isso, irreformável. 1.6. REGIME JURÍDICO-ADMINISTRATIVO O Direito Administrativo, como já examinado, pertence ao ramo do Direito Público, tendo em vista que, nas relações jurídicas envolvendo o particular e o Estado, haverá sempre preponderância do interesse público sobre o privado. Nesse contexto, regime jurídico-administrativo é o conjunto de regras e princípios de Direito Público aplicáveis aos órgãos, entidades e agentes que integram a Administração Pública e ainda aos particulares, em suas relações jurídicas com o Estado. Significa, em outras palavras, que as relações jurídicas abrangidas pelo Direito Administrativo, como ramo do Direito Público que é, guardam profundas diferenças em comparação às relações de direito havidas entre particulares, que sempre são norteadas pela igualdade entre as partes. Mauro Sergio -Curso de Direito Administrativo 2ed.indb 37 24/03/2016 10:47:55

38 CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIVO Mauro Sérgio dos Santos As relações jurídicas de que participa a Administração são regidas por regras e princípios próprios que materializam a existência de várias prerrogativas conferidas ao Estado e também algumas restrições, todas de inspiração constitucional ou legal, visando possibilitar ao Poder Público o arcabouço jurídico necessário ao atendimento dos interesses da coletividade. Na lição de Celso Antônio Bandeira de Mello, a expressão regime jurídico-administrativo consagra a união dos princípios peculiares a essa disciplina, que conservam entre si não apenas conexão, mas relação de interdependência. Tais princípios são: supremacia do interesse público sobre o privado e indisponibilidade dos interesses públicos. 22 Em resumo, como todos os atos da Administração devem ser praticados com vistas à consecução do interesse público, a Constituição e várias outras normas esparsas preveem princípios e regras que consagram diversas prerrogativas para a Administração, permitindo que esta possa impor, de forma coercitiva, condutas aos administrados, sempre que o interesse individual destes se contrapuser ao interesse da coletividade (supremacia do interesse público). Por outro lado, os administradores públicos, enquanto meros gestores da coisa alheia, são obrigados a observar inúmeras restrições não previstas na órbita particular, de modo a melhor satisfazer o interesse público. O chamado regime jurídico-administrativo é formado por vários princípios que se contrapõem à igualdade típica do direito privado, dos quais se destacam a supremacia do interesse público e a indisponibilidade do interesse público, que devem nortear a conduta administrativa nas relações jurídicas entre os diversos órgãos e entidades públicas e, sobretudo, nas suas relações com os administrados. Importante mencionar, desde logo, que a alegação de supremacia do interesse público não pode redundar na extinção de direitos fundamentais individuais; nessa linha, a atuação estatal deverá não apenas cumprir o disposto na norma jurídica, mas também pautar-se em critérios de razoabilidade e proporcionalidade, sob pena de o ato não se legitimar juridicamente. Por fim, cabe salientar que o regime de Direito Público não será observado em toda e qualquer atuação estatal, mas apenas quando o Estado atua no exercício da atividade administrativa (função administrativa) que lhe é peculiar. Em outras palavras, quando o Estado brasileiro cria entidades para participarem da atividade econômica e não para o exercício da função administrativa, por certo que essas pessoas jurídicas deverão se submeter a um regime jurídico semelhante ao aplicado à iniciativa privada, sob pena de o próprio Estado violar o princípio da livre concorrência, previsto no art. 170 da Constituição. Em casos assim, tais entidades não se sujeitarão ao regime jurídico-administrativo próprio daqueles que exercem a função 22 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 47. Mauro Sergio -Curso de Direito Administrativo 2ed.indb 38 24/03/2016 10:47:55

Cap. 1 DIREITO ADMINISTRATIVO 39 administrativa, mas a um regime diferenciado, de natureza híbrida, fortemente marcado pela sujeição a normas de direito privado, conforme será examinado no Capítulo 3. 1.7. A FUNÇÃO ADMINISTRATIVA A doutrina reconhece como árdua a tarefa de conceituar e ao mesmo tempo delimitar o real alcance da expressão função administrativa, sobretudo nos dias atuais, em que a atividade desempenhada pela Administração Pública possui natureza dinâmica e se complexifica dia a dia, dadas as novas e contínuas necessidades de caráter público que surgem no cotidiano das pessoas. Leciona Jorge Miranda que por meio da função administrativa realiza-se a prossecução dos interesses públicos correspondentes às necessidades colectivas prescritas pela lei, sejam esses interesses da comunidade política como um todo ou com eles se articulem relevantes interesses sociais diferenciados 23. Já nas palavras de Gordillo, a função administrativa pode ser definida como toda atividade realizada pelos órgãos administrativos e também a atividade realizada pelos órgãos legislativos e judiciais, excluídas suas funções típicas 24. A função administrativa não é monopólio do Poder Executivo, podendo, pois, ser exercida por órgãos e entidades dos três poderes do Estado. É certo que os Poderes Legislativo e Judiciário apenas a exercem de forma atípica enquanto o Executivo atua preponderantemente no exercício da função administrativa ao utilizar suas prerrogativas de Poder Público, tais como os poderes administrativos, que estudaremos em capítulo próprio, para o cumprimento de suas atribuições constitucionais e legais. Nesse contexto, pode-se afirmar que quando o Estado executa qualquer tarefa sob a égide do direito público, ou seja, com base em regras e princípios estranhos às relações privadas, forçoso reconhecer que tal atividade se enquadra no conceito de função administrativa, a menos que, como já dito, seja uma tarefa típica dos outros poderes. A função administrativa do Estado, portanto, pode ser definida como a atividade desempenhada preponderantemente pelos órgãos e entidades da Administração Pública, ou ainda por entidades privadas que lhes façam as vezes, normalmente de natureza concreta, exercida a título individual ou geral, submetida ao regime de direito público e estranha às funções legislativa e judiciária. Podemos concluir dizendo que o Poder Legislativo, ao editar uma lei, materializa a expressão da vontade geral; já o Poder Executivo, por intermédio da Administração Pública, tem como tarefa assegurar a transformação dessa 23 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo V. Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 29. 24 GORDILLO, Agustín. Tratado de Derecho Administrativo. Tomo I. Parte General. México: Editorial Porrúa, 2004. Pp. 204/205. Mauro Sergio -Curso de Direito Administrativo 2ed.indb 39 24/03/2016 10:47:55

40 CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIVO Mauro Sérgio dos Santos lei (vontade geral) em realidade concreta, o que é feito a partir do exercício da função administrativa. 25 1.8. EXERCÍCIOS DE FIXAÇÃO 1. (OAB/CESPE 2009.1) O INSS, em processo administrativo, concluiu, com base em entendimento antigo e recorrente na autarquia, que a servidora pública Kátia deveria ressarcir determinada quantia aos cofres públicos. A referida servidora recorreu e, quando ainda pendente o julgamento do recurso administrativo, o INSS tomou ciência de decisão do STF proferida em sede de reclamação, na qual se consagrava o entendimento de que o servidor, em casos análogos ao de Kátia, não tem o dever de ressarcir a quantia. Nessa decisão, o STF entendeu ter sido violado enunciado de súmula vinculante. Com referência a essa situação hipotética e com enfoque nos reflexos da súmula vinculante no processo administrativo, assinale a opção correta. a. A autoridade responsável pelo julgamento do processo administrativo não se sujeita à responsabilização pessoal caso não ajuste a decisão administrativa reiteradamente aplicada ao comando da súmula. b. Os enunciados de súmula vinculante só vinculam o Poder Judiciário, com exceção do STF, e a administração direta, não abarcando as autarquias. c. O INSS deve seguir o entendimento firmado na súmula vinculante e adequar suas futuras decisões ao enunciado da súmula. d. Ao julgar o processo administrativo, a autoridade pode proferir decisão sem abordar a questão relativa à súmula caso entenda que esta não seja aplicável à espécie. 2. O direito brasileiro adota como sistema administrativo (regime de correção dos atos administrativos ilegais) o(a): a. Contencioso administrativo. b. Sistema francês. c. Devido processo legal. d. Jurisdição única ou sistema Inglês. e. Jurisdição romano-germânica bipolar. 3. (Magistratura/SP-2009) Um dos aspectos primordiais do Direito Administrativo brasileiro é o de ser um conjunto a. de princípios e normas aglutinador dos poderes do Estado de maneira a colocar o administrado em relação de subordinação hierárquica a tais poderes. 25 RIVERO, Jean. Op. Cit., 1981, p. 20. Mauro Sergio -Curso de Direito Administrativo 2ed.indb 40 24/03/2016 10:47:55

Cap. 1 DIREITO ADMINISTRATIVO 41 b. de princípios e normas que não alberga a noção de bem de domínio privado do Estado. c. instrumental de princípios e normas que regula exclusivamente as relações jurídicas administrativas entre o Estado e o particular. d. de princípios e normas limitador dos poderes do Estado. 4. (Magistratura/SP-2009) Compromissos republicanos, liberalismo político e econômico, proteção dos direitos individuais e, especialmente, independência da Administração Pública foram valores postos pela Revolução Francesa que, sob os influxos da teoria de Montesquieu, deram origem ao contencioso administrativo. À vista desses parâmetros, pode-se afirmar que a. no Brasil, adota-se o sistema da jurisdição única visando dar efetivo cumprimento ao regime jurídico-constitucional de proteção e garantia dos direitos individuais contra abuso ou arbítrio do Estado. b. a instalação do Conselho Nacional de Justiça significa a introdução do contencioso administrativo no sistema jurídico-administrativo brasileiro com o efeito de impedir o abuso ou arbítrio dos juízes. c. os Tribunais de Contas produzem decisões com a qualidade de definitivas, próprias do sistema do contencioso administrativo. d. o sistema do contencioso administrativo é o que melhor atende ao atual conceito de Estado Democrático de Direito porque coloca o Estado, no plano jurisdicional judicial, em pé de igualdade com o particular. 5. (Analista Judiciário TRE-PE/FCC) Se o Direito Administrativo for conceituado como: I. O sistema dos princípios jurídicos que regulam a atividade do Estado para o cumprimento de seus fins. II. O conjunto de normas que regem as relações entre Administração e os administrados. III. O conjunto de princípios que regem a Administração Pública. Seu fundamento repousa nos critérios denominados, respectivamente, a. das relações jurídicas, da administração pública e da atividade jurídica ou social do Estado. b. negativo ou residual, da atividade jurídica ou social do Estado e teleológico. c. do serviço público, do Poder Executivo e residual ou negativo. d. da Administração Pública, do serviço público e do Poder Executivo. e. teleológico, das relações jurídicas e da administração pública. Mauro Sergio -Curso de Direito Administrativo 2ed.indb 41 24/03/2016 10:47:55

42 CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIVO Mauro Sérgio dos Santos 6. (Técnico da Receita Federal/2006/ESAF) A primordial fonte formal do Direito Administrativo no Brasil é a. a lei. b. a doutrina. c. a jurisprudência. d. os costumes. e. o vade mecum. 7. (Assistente Jurídico da AGU/ESAF) A influência do Direito Administrativo francês no Direito Administrativo brasileiro é notável. Entre os institutos oriundos do direito francês abaixo, assinale aquele que não foi introduzido no sistema brasileiro. a. Regime jurídico de natureza legal para os servidores dos entes de direito público. b. Teoria da responsabilidade objetiva do Poder Público. c. Natureza judicante da decisão do contencioso administrativo. d. Cláusulas exorbitantes nos contratos administrativos. e. Inserção da moralidade como princípio da Administração Pública. GABARITO 1 c 2 d 3 d 4 a 5 e 6 a 7 c Mauro Sergio -Curso de Direito Administrativo 2ed.indb 42 24/03/2016 10:47:55