O sistema internacional de propriedade intelectual no alvorecer do século XXI: a preponderância da OMC e a retomada da OMPI na agenda de discussões em matéria Resumo: normativa de patentes. Fernando Cassibi de Souza * A Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) possuía, até meados da década de 90 do século passado, o papel de protagonista nas discussões em matéria normativa de propriedade intelectual. Sucessivos fracassos na reforma do principal tratado constitutivo do sistema internacional, a Convenção de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial, de 1883, levariam os países desenvolvidos a conduzir as negociações para o cerne do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT). Contudo, a partir de fins do século XX, a OMPI prepara um movimento de retomada baseado em uma concertação por crescente harmonização em direitos de propriedade intelectual. É quando uma reação é engendrada pelo Brasil e Argentina, que em 2005 ensaiam a necessidade de a OMPI reformar seus objetivos institucionais por meio de uma Agenda para o Desenvolvimento. Palavras-chave: propriedade intelectual; OMPI; Agenda para o Desenvolvimento. Abstract: The World Intellectual Property Organization (WIPO) used to occupy, up until the mid nineties of last century, the leading role in the normative discussions concerning intellectual property. Consecutive unsuccessful measures in regards to reforms of the main treaty of the international system, the Paris Convention for the Protection of Industrial Property, from 1883, lead developed countries to conduct negotiations in the realm of the General Agreement on Tariffs and Trade (GATT). However, WIPO has prepared a recovering movement since the final years of the Twentieth century based on the need of a concertation for increasing harmonization in intellectual property rights. That is when a reaction is generated by Brazil and Argentina, whom rehearse a need for WIPO to reform its institutions goals by the means of a Development Agenda. Keywords: intellectual property; WIPO; Development Agenda. A preponderância do comércio internacional para o desenvolvimento sócio-econômico dos países adquiriu ares paradigmáticos ao longo do séc. XX, sobretudo em virtude da vitória do capitalismo em sua vertente de globalização sobre o socialismo. Com isso, o incremento contínuo das inovações tecnológicas passaria a ser compreendido como fator estratégico para * Bacharel em Relações Internacionais e Mestrando em Propriedade Intelectual e Inovação do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI).e-mail: fcassibi@yahoo.com.br 1
agregar maior competitividade e valor às mercadorias. A importância dos intangíveis cresce em direta medida nesse sentido e o seu grau de assimilação por parte dos países pode ser demonstrado por meio da fase de institucionalização internacional do sistema de propriedade intelectual 1 em fins do séc XIX. Quando nos anos de 1883 e de 1886 são concluídas, respectivamente, as Convenções da União de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial e da União de Berna para a Proteção dos Trabalhos Literários e Artísticos, estão espelhados os interesses dos Estados propositores e signatários em pleno contexto de emergência do liberalismo, sendo esse o panorama de fundo para o advento de tais tratados, cujo objetivo maior era o livre-comércio. É por isso que, segundo Gandelman (2004:103), as negociações que resultam na conclusão dos dois tratados internacionais seriam consideravelmente modestas, dado que não almejavam uma imposição por obrigações que poderiam se tornar entraves a sua aceitação ou a sua imediata vigência entre os países signatários. Tal decorre da sua própria característica universal, pela qual as diferenças eram primordialmente deixadas de lado em detrimento de princípios, normas e regras fundamentais já em larga medida positivadas em leis nacionais. (GANDELMAN, 2004:159). Com isso, pretendia-se que os tratados fossem tornados flexíveis e com maiores possibilidades de que outros Estados aderissem ao sistema. É como tal que o sistema atravessaria a primeira metade do séc. XX. Deve-se salientar que a esse tempo as rápidas evoluções tecnológicas eram fomentadas especialmente em países como os Estados Unidos da América EUA, dada a geração de inovações oriundas da formação de seu complexo industrial militar (NELSON, 1993). A junção entre conhecimento e produção industrial conformam nesse período as bases de uma Terceira Revolução Industrial também conhecida como Revolução Técnico-científica, nas tecnologias de informação, eletrônicos e outras tecnologias, como medicamentos. E será por conta da preponderância do campo patentario que o entendimento ora apresentado sobre as evoluções do sistema será a ele subordinado, inclusive em virtude dos seus efeitos para uma crescente interdependência econômica e comercial. O acesso a tecnologia passa a se tornar variável de suma relevância para a segurança e a contabilidade nacional, gerando dependência tecnológica dos então 1 A propriedade intelectual possui dois sub-sistemas: os direitos autorais e a propriedade industrial. O segundo abarca as patentes, sejam elas de invenção ou de modelo de utilidade, as marcas, os desenhos industriais e as indicações geográficas. 2
denominados países subdesenvolvidos. De algum modo, o rápido e profundo desenvolvimento tecnológico favoreceria a manutenção do status quo do sistema de propriedade intelectual (GANDELMAN, 2004:185), sendo somente a partir da década de 60 ser possível identificar alguns primeiros sinais de mudança. O nascimento da Organização Mundial da Propriedade Intelectual OMPI, em substituição ao antigo Bureau of the International Union for the Protection of Industrial Property BIRPI reflete um ponto essencial para a fase de modificações que se avizinhava. Sua constituição em Estocolmo no ano de 1967, bem como sua inserção aos sistema das Nações Unidas como agência especializada no ano de 1974 refletiriam um embate significativo dentro da organização que macularia negociações futuras. Em jogo, o interesse por parte dos então países subdesenvolvidos, ou em desenvolvimento, por maior distribuição de forças, ordem e poder, correspondendo a esse último a capacidade militar, econômica e tecnológica, o que se espelharia por meio das discussões entre os estados que faziam parte do BIRPI acerca de qual deveria ser a missão institucional. Países desenvolvidos privilegiavam uma OMPI calcada em atividades de assistência técnica, como treinamento e capacitação com a finalidade de fortalecimento dos sistemas nacionais de propriedade intelectual, ao passo que os países em desenvolvimento vislumbravam uma atuação mais conectada ao desenvolvimento sócio-econômico dos países, havendo como finalidade última a transferência de tecnologia (OMPI, 1973) A primeira proposta seria a ganhadora. Vindo apenas anos mais tarde ser explicitada na OMPI uma tentativa para sua retomada. Ainda em meio a esse processo, os países desenvolvidos ensaiavam em fins da década de 60 a formalização de um mecanismo formal adicional que facilitasse a submissão de pedidos de patentes em escritórios estrangeiros em um cenário de crescente internacionalização do sistema. Assim, ao ser concluído em 1970, o Tratado de Cooperação em Matéria de Patentes PCT possuía como objetivo primordial uma uniformização no campo de procedimentos para a obtenção de proteção legal para invenções. Isso implica economia de trabalho e de recursos financeiros pra ambos escritórios nacionais e depositantes a partir da possibilidade de que uma dada patente seja depositada em mais de um país ao mesmo tempo. (WIPO, 1972: 645). Nesse sentido, deve ser ressaltado que cada escritório 3
realiza o exame com autonomia, sendo por isso que não é possível falar na existência, até os dias de hoje, de uma patente mundial ou internacional. O interesse por parte dos países desenvolvidos em fortalecer os escritórios nacionais para suas atribuições no processamento dos pedidos são melhor expressos em documentos oficiais da OMPI, que apontam para um segundo objetivo (WIPO, 1972: 645) do PCT, qual seja, o de disseminação de informação técnica e de organização da assistência técnica 2. A rigor, contudo, o PCT foi concluído com a finalidade de otimizar a entrada e processamento de pedidos de patentes de maneira concomitante em vários escritórios indicados para tal finalidade. O sucesso auferido pelos países desenvolvidos nesses três processos: o de criação da OMPI; o de sua inserção como agência especializada do sistema das Nações Unidas possuindo uma missão institucional compatível com seus interesses; e a conclusão do PCT auxiliam a compreender o porquê de, em princípios da década de 70, os países desenvolvidos se encontrarem relativamente satisfeitos com os rumos que o sistema havia percorrido. Por outro lado, os países subdesenvolvidos, grandes consumidores de tecnologia, permaneciam insatisfeitos. Segundo Gandelman (2004:184), já ao tempo da assinatura da Convenção de Estocolmo, e durante todo o processo que se seguiu até a revisão da Convenção de Paris, os principais países do grupo dos subdesenvolvidos já adotavam parâmetros domésticos baseados na CUP e, àquele tempo, não havia razões empíricas que sequer condicionassem a falta de padrões mais rígidos de proteção com prejuízos nos resultados inovativos. Pelo contrário. De acordo com Gandelman (2004:185), difundiu-se a crença de que sua participação nesse sistema criava um dilema entre a necessidade do bem estar social em contraposição às obrigações internacionalmente assumidas de conformação aos padrões internacionais de proteção, em alguma medida amparados pela pela resolução 1013 (XXXVII) de 1964 emitida pelo ECOSOC sobre O Papel das Patentes na Transferência de Tecnologia para Países Sub Desenvolvidos. Portanto, a solução que se avizinhava entre os países do Grupo dos 77 era a de iniciar um movimento de revisão da Convenção de Paris, ao passo que os países industrializados rejeitavam essas propostas. Entre os anos de 1980 e 1991, diversas tentativas de revisão da CUP foram levadas a 2 Alguns países em desenvolvimento como o Brasil adotariam objetivos pragmáticos com relação a assistência técnica promovida pelo PCT, entendendo-a como potencial meio para fortalecimento alavancamento nacional no sistema internacional de patentes (MRE, 1979). 4
cabo, porém sem consenso entre as partes. Saliente-se ademais que os EUA manifestavam por sua vez uma mudança de postura, passando de conservadores para revisionistas (GANDELMAN, 2004). Essa mudança decorreria da preocupação manifesta domesticamente nos EUA, especialmente por parte de representantes das indústrias e do comércio 3, os quais pleiteavam padrões mais altos de proteção para direitos de propriedade intelectual. O insucesso contínuo dessas negociações no âmbito da OMPI levariam os EUA a repensar sua estratégia. A OMPI apresentava algumas características institucionais que minoravam o exercício de seu poder de barganha, como sua sistemática democrática de votos, e a independência que a mesma apresentava para sua subsistência, uma vez que a maior parte de seus recursos é garantida pelos serviços que provê, incluindo o PCT. Nesse sentido, é engendrada uma estratégia alternativa, que passaria para o âmbito do GATT- Acordo Geral de Tarifas e Comércio as discussões relativas a propriedade intelectual. Os países industriais chegariam inclusive a argumentar que o sistema internacional de patentes se tornara inadequado uma vez que não previam mecanismos de resolução de controvérsias. Ou ainda, que seus sistemas nacionais previam uma proteção pequena, que não havia mecanismos de observância ou que os setores farmacêuticos e de softwares, emergentes em plena década de 80 do século passado, eram excluídos. É nesse contexto, e com vistas ao preenchimento destas lacunas que se conclui em 1994 o Acordo de Aspectos de Direitos de Propriedade Intelectual Relativos ao Comércio - ADPIC, ou TRIPS, em sua sigla em inglês, no âmbito da Organização Mundial do Comércio - OMC. O TRIPS passaria a prescrever um nível de proteção mínimo mais avançado do que o vigente até então em muitos países em desenvolvimento e impunha garantias de direitos de propriedade intelectual como condição para se tornar membro dessa importante organização internacional. A necessidade de a OMPI resgatar parte do prestígio e da legitimidade de outrora nas questões envolvendo a propriedade intelectual tornam a organização cada vez mais impelida a atuar na administração dos tratados por ela geridos. Novas e antigas propostas se conformam, dentre as quais, em razão da progressão dos debates entre os Estados, a criação do Comitê 3 Essa representação se faria principalmente por meio do United States Office of the United States Representative- USTR. 5
Permanente em Lei de Patentes (SCP) no ano de 1998, voltado àquelas discussões que objetivem a harmonização legal internacional em matéria de patentes. O resultado mais notável no âmbito da SCP foi o Tratado sobre Lei de Patentes (PLT), adotado por uma Conferência Diplomática em 1º junho de 2000, e entrando finalmente em vigor em 2005 4. Os países signatários do PLT concordam em implementar uma estrutura internacional padronizada de requerimentos e prazos, assim como princípios básicos e mecanismos para impedir perdas não-intencionais de direitos. Já as negociações para um Tratado Substantivo em matéria de Patentes (SPLT) se iniciaram durante a quinta sessão do SCP em maio de 2001 e possuem um caráter diferenciado, na medida em que implica harmonização de conceitos e critérios de análise e exame de pedidos de patentes que retirariam a autonomia dos escritórios nacionais. É nesse ínterim que se originou um embate técnico-político no SCP e na OMPI como um todo, impulsionado por dois diferentes posicionamentos. De um lado, os países desenvolvidos e algumas economias em transição. De outro, a maior parte dos países em desenvolvimento, incluindo o Brasil que propõe, dentre outros, uma discussão condicionada a suficiência do relatório descritivo das patentes para que essas sejam melhor replicadas uma vez terminado o prazo das patentes, e a inclusão de uma cláusula relativa a repartição equitativa de benefícios quando constatado que dada patente se utilizou de conhecimentos tradicionais e recursos genéticos, previsão essa que toma como base os dispositivos da Convenção sobre a Diversidade Biológica -CDB, de 1992. Esses são os antecedentes necessários para se compreender o cenário no qual a OMPI se encontrava em princípios dos anos 2000. Os países desenvolvidos estavam firmes em seus propósitos por fazer da OMPI um cenário de extensão do TRIPS. A proposta de uma Agenda de Patentes para a OMPI, apresentada na Assembléia Geral de 2002, sinalizaria essa priorização por uma agenda normativa no campo patentário a servir de orientação para o futuro do sistema internacional de patentes em negociações conduzidas pela OMPI (WIPO, 2002). A reação se dá em fins de 2004, quando as delegações do Brasil e Argentina encabeçariam uma proposta junto a outros países em desenvolvimento que abalaria os 4 É oportuno mencionar que o Brasil ainda não ratificou o PLT, não havendo sequer movimentações no Congresso Nacional nesse sentido até o presente momento 6
bastidores da OMPI: a Agenda para o Desenvolvimento. A Agenda... se baseava na dita necessidade de se retomar a um entendimento no seio da organização sobre o papel da propriedade intelectual para o desenvolvimento sócio-econômico dos países. Por detrás da Agenda, devem ser salientados alguns pontos. Inicialmente, ela significa o início efetivo do primeiro governo Lula (2003-2006) refletido na OMPI. Em segundo lugar, a Agenda retoma as grandes discussões e embates que polarizaram a OMPI ao longo dos anos. Ao questionar a concentração tecnológica nas mãos dos países desenvolvidos, evidencia nessa organização internacional sua preocupação com a distribuição de poder tecnológico. Além do que, exibe o temor por níveis de harmonização mais profundos do que TRIPS que funcionariam de maneira deletéria aos países em desenvolvimento, cerceando ainda mais os direitos a que podiam legitimamente exercer no sistema internacional de patentes. Muito além de um SPLT, o que está em jogo é o futuro do sistema internacional de patentes e as dúvidas que rondam os bastidores não apenas da OMPI como também em outros foros, multilaterais tais quais a própria OMC, ou de caráter restrito, como a Trilateral entre EUA, Europa e Japão, para negociações que abram caminho para medidas de harmonização sem precedentes. Atualmente, a posição dos países desenvolvidos quanto ao Brasil têm sido cautelosa, em virtude de receios quanto a uma possível postura radical relativa ao sistema. É o que ficou bastante notável quando da candidatura do brasileiro a Diretor Geral em 2008, quanto perdeu a eleição a Diretor Geral por apenas um voto. Conforme verificado anteriormente, se fossem considerados tão somente a variável quantitativa, os países em desenvolvimento dominariam a maior parte das organizações subordinadas ao sistema ONU. Contudo, as cisões entre esses países, os diferentes interesses e os efeitos de barganha bilaterais ou regionais tornam as relações internacionais um cenário dominado pelas grandes potências. Por um lado, a responsabilidade é conjunta, cabendo aos países em desenvolvimento articularem movimentos de reação que atendam interesses estratégicos, seja por meio de Acordos Sul-Sul, seja por meio de uma abordagem regional ou transregional. Por outro, um efetivo exercício da liderança que não priorize projetos solo é o maior desafio brasileiro. Será por meio dele que se consolidará sua posição de crítico. Ou de defensor desse sistema. 7
Referências Bibliográficas Instituto Nacional da Propriedade Industrial. INPI <www.inpi.gov.br> OMPI. Negociaciones con las Naciones Unidas: Relaciones entre las Naciones Unidas y La Organización Mundial de La Propiedad Intelectual: Comité de Coordinación. Ginebra, 1973. p.299-300. OMPI. Tratado de Cooperação em matéria de Patentes-PCT. Concluído em Washington em 19 de junho de 1970, modificado em 28 de setembro de 1979, em 3 de fevereiro de 1984 e em 3 de outubro de 2001.Genebra, Sem ano. GANDELMAN, Marisa. Poder e conhecimento na economia global. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. Ministério das Relações Exteriores. Relatório 1979. DDO NELSON, Richard R. National Innovation Systems: a comparative analysis. New York, Oxford. Oxford University Press. 1993. WIPO. Assemblies of the Member States of WIPO. Thirty-Seventh Series of Meetings. Geneva, September 23 to October 1, 2002. WIPO Patent Agenda: Options for Development of the International Patent System. Doc. A/37/6. Date: August 19, 2002. Disponível: www.wipo.int/edocs/mdocs/govbody/en/a_37/a_37_6.doc. Acessado em 10 de junho de 2010. WIPO. History of the Patent Cooperation Treaty. IN: Records of the Washington Diplomatic Conference on the Patent Cooperation Treaty. 1970. Geneva, 1972. p.641-644 WIPO. Records of the Diplomatic Conference for the Conclusion of a Treaty Supplementing the Paris Convention as Far as patents are Converned. Volume I: Fisrt Part of the Diplomatic Conference. The Hague, 1991. Geneva, 1991. P. 100 WIPO. Summary and Advantages of the Patent Cooperation Treaty. IN: Records of the Washington Diplomatic Conference on the Patent Cooperation Treaty. 1970. Geneva, 1972. p.645-654 WIPO. United International Bureaus for the Protection of Intellectual Property. Replies to Questions put forward by members of the Committee on Negotiations with Intergovernmental Agencies of the Economic and Social Council of the United Nations. September 12, 1973.page 9. 8